Assim a modos da fala no sentir da gente...


As Maneiras de Dizer

Não vás ao monte, Nise, com teu gado,
Que lá vi que Cupido te buscava;
Por ti somente a todos perguntava,
No gesto menos plácido que irado.

Ele publica, enfim, que lhe hás roubado
Os melhores farpões de sua aljava;
E com um dardo ardente assegurava
Trespassar esse peito delicado.

Fuge de ver-te lá nesta aventura,
Porque, se contra ti o tens iroso,
Pode ser que te alcance com mão dura.

Mas ai! Que em vão te advirto temeroso
Se à tua incomparável formosura
Se rende o dardo seu mais temeroso!
Luís Vaz de Camões

Quando pretendemos meter as mãos nos bolsos de alguém, tripudiar sobre o seu carácter, modos de comportamento ou personalidade, integridade física e moral, dignidade, crenças e valores, afirmamos qualquer coisa sobre essa pessoa que se enquadra naquelas expressões (clichés) a que é comum chamar «maneiras de dizer».

Fazemos de conta que quanto dizemos não é o que queríamos afirmar mas outra coisa muito diferente e ala, cá vai mais uma daquelas que até os cães enjeitam. Alguns dirão que se enquadra no universo das expressões idiomáticas usuais, e que é uma forma de ser comedido, de levar com jeito alguém a escutar coisas que de outro modo não consentiria ouvir, como na Beira Baixa, se costuma indicar, ou que é dar um jeito-maneiras na conversa, à semelhança do que no português do brasil se comete, faltando ainda esmiuçar o que dirão os demais países da Comunidade dos falantes de Língua Oficial Portuguesa, mas que não deve andar muito longe do nosso linguajar.
É um modo de falar, pois então! É um supor, quero eu recomendar, pois quase nunca é assim que sucede. É, é sempre ao contrário… A bem dizer! Aquilo que queremos fazer, na realidade, é atirar lama à parede, sujar com os nossos formulários preconceituosos, a imagem que de si essa pessoa cultiva, autocriou ou fomentou durante a sua existência, ou parte dela. Atiram os petardos e depois fazem-se esquerdos, finos, desentendidos, lucas, alonsos, de novas, de sonsos e inocentes, com rapapés, gagos e gagas, põem manto de seda (parda) sobre o dito, metem-se na moita, dão-se ares de rasoura encarecida, fazem vista grossa à reação de quem não esteve pelos ajustes, chegando mesmo a ofenderem-se, melindrarem-se, vitimarem-se, quando lhes pagam igual moeda.




Fazer orelhas moucas a este tipo de dichotes e seus “dichotizadores”, não me parece a melhor estratégia a seguir, se queremos um relacionamento franco e aberto com os nossos concidadãos, e entre quem em português se entende. Querem lixar o parceiro, estão no seu direito, claro está, mas vão fazê-lo com quem tem obrigação de os/as aturar, vão sarrazinar a pata que os/as pôs. Se fizeram de suas vidas uma aberração ignota e visceral, então que comam as suas tripas envenenadas, abjetas e nojentas. Portanto, na cadeia de sentidos consequente às suas aspirações, digamos, quer dizer: digo eu!, que sejam todas e todos muito felizes, mas que não me incluam como participante, nem testemunha dessa suma felicidade que os inebria e encanta. Exato. Sejam tudo quanto queiram e puderem, mas não me incluam como seus cúmplices na tramoia que edificaram.
As maneiras de dizer refletem invariavelmente as maneiras de ser. É inolvidável que entre umas e outras, não há nenhum diferencial correlativo. Aquele que fala sem se ouvir não existe mentalmente nem em termos de humanidade. Não goza de consciência e responsabilidade suficientes para o podermos considerar «gente». É-se em direto aquilo que parecemos em diferido, por mais que representemos ser de outro jeito. A solução está em dizer quanto queremos sem recorrermos a maneiras e afectações para o fazermos, a frio e sem subterfúgios marginais à humana condição.
No tempo em que os homens e mulheres não sabiam falar, ou não podiam por motivos de poder ou religião, é que era preciso recorrer a esses meios de dizer uma coisa para afirmar outra. Hoje isso está fora de moda, é inútil e apenas reflete a personalidade contorcida e atrofiada de quem pratica tamanha modalidade – asnidade, se faz favor, acrescentarão os mais expeditos e lampeiros. Quer dizer que outra pessoa é assim ou assado, então sujeita-se às consequências da sua afirmação. Não há meio-termo, nem tergiversões maneiristas. O sim é sim, o não é não, e o sopas é sopas. Quem não pode viver sob esta constatação inalienável, então que resolva a situação a favor da humanidade, omitindo-se dela, subtraindo-se a ela, e deixando de a atrapalhar na evolução que merece, e os restantes mortais aliviados das suas manhosices.





Luís de Camões, ainda foi do tempo em que para dizer aquilo que queria dizer, se era obrigado a recorrer a formatos poéticos, épicos ou trovadorescos, e mesmo sendo exímio naquilo que fazia, como o futuro veio a confirmar, foi parar com os costados às Índias e aos cárceres da fidalguia. Camilo Castelo Branco mais tarde não teve melhor sorte. Porém, quando nos vemos com o exemplo de Cuba e somos anticubanos porque havemos de andar de reynaldas às escâncaras?
Agora que a República está a fazer um século, coisa que é já ser velhinha – maneira de dizer! – pese embora sem precisar de bengala, também lhe podíamos acrescentar um transplante de qualidade e transparência, a ver se não adoecia como à porca do Bordalo Pinheiro, por tantos andarem a mamar nela, desde os negócios legítimos com a banca ilícita até aos direitos ilegais com a banca legal. E desguardarmos os bigodes retorcidos ao regime, aonde até as mulheres já montam e fazem o render (da guarda), aconselhando-a como o poeta fez à Inês, que naqueles encómios se chamava Nise: Fuge de ver-te lá nesta aventura, / Porque, se contra ti o tens iroso, / Pode ser que te alcance com mão dura!

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