Petrarca Reincidente


Assim tinham adormecido: o olhar dele estava fixo nos lírios. Flores que ele lhe tinha comprado a um vendedor de rua no dia antes de aquilo ter acontecido – a purificação das sepulturas. Na semana passada tinham sido as rosas. Rosas vermelhas, enroladas como guarda-chuvas; as rosas têm o cheiro do sexo, disse ela, os lírios têm a forma: ele descobria todas essas delícias enquanto estava com ela. Aproximaram-se um do outro, sob sentidos amplificados.”
In A História de Meu Filho, de Nadine Gordimer, tradução de Ana Patrão

Q uando Shara decide algo sobre mim, não há meio de contornar a questão nem desobedecer-lhe. Ela diz que não é obediência, sequer fidelidade, vassalagem, mas a sensatez que afluiu para reparar os danos da minha obtusidade (momentânea). Não o creio, deveras. E sinceramente; todavia, nunca lho disse abertamente, talvez por temer a contra-argumentação que lhe advirá. Aliás, a experiência recente aconselha-me prudência e tino, caso não queira ver-me espoliado, além dos sonetos e das fotos dela, como já fui, de outras predileções que ainda me restam, por secretas serem e escondidas dela as manter. Tenho as minhas razões…
Por conseguinte, o que importa reter neste àparte, sendo obediência ou não, desta confissão se infere facilmente que a minha vida é um martírio. Se digo que gosto de uma coisa, ela enquanto não me veda o acesso a essa coisa, não descansa. E pelo contrário, se proclamo não gostar de alguém, então faz dessa pessoa a sua companhia favorita e incondicional, elegendo-a como alvo de todos os seus elogios, incluindo os diminutivos mais carinhosos, sempre que se lhe refere, a chama ou a indica como testemunha e cúmplice do seu bom gosto. Por motivos que desconheço e razões que não enxergo, nada lhe dá maior prazer do que contrariar-me e proporcionar-me desprazer.
Com uma particularidade indesmentível: cria armadilhas, encontros, afinidades várias, acontecimentos em que sou obrigado a partilhar a presença e convívio com “essa gente” que, muito atempadamente e bem!, eu classificara de indesejável ou fora de prazo. «É um treino de amadurecimento, queridinho» respondeu-me ela quando corajosamente a interpelei acerca da sua conduta neste capítulo. O que pode ser tão absolutamente verdade como relativamente autêntico, posto que nunca plenamente ou sequer em definitivo, tendo em conta que mal passo a simpatizar com essas pessoas, logo ela lhe encontra defeitos gravíssimos que, saliente-se, «há bastante tempo tinha notado, e esperava pacientemente que também os detectasses; só que, como sempre, andas a leste e a ler por linhas tortas, aquilo que simplesmente se vê nas direitas», reportas tocando em sol maior de discurso avisado, apenas para meu governo, «já que em certos assuntos insistes em ser lerdo e demorado», como gosta de salientar se a oportunidade lhe surge a talho de foice.
Não obstante, se a circunstância surge, o latinório do de gustibus non est disputandum revela-se um importante recurso assim que, por qualquer motivo, enalteço feitos deste ou daquela, atos ou políticas, comportamentos ou silhuetas: «ora, não me apoquentes nem sarrazines a veneta, que bem sabes que os gostos não são discutíveis, embora recentemente, e a este propósito, te tenhas repetidamente manifestado de um mau gosto exorbitante. Como consegues fazer isso? Será que não te ouves? Há prà’i alguma disfunção entre a boca e ouvido, a língua e o cérebro? És disléxico mental? Ou estás unicamente empenhado a lembrar-me que quanto imagino que tens de bom, além de se perder e degradar a olhos vistos, nasceu em mim por falta de ponderação? Arrependo-me!» de lhe pespegar nos acintes e dar-lhe também pela medida grossa, dizer-lhe umas quantas que me andam aqui atravessadas há longa data, todavia as alturas vão-se derreando na inoportunidade circunstancial, remetendo-se invariavelmente para mais tarde, quando estivermos sem ninguém por perto, ou tiver digerido totalmente os reparos, num a vingança serve-se fria que comummente me congela a vontade e o ânimo, adiando-a, adiando-a, adiando-a até finalmente a esquecer – definitivamente.
Ademais, de pouco me serviria… Cada qual nasce prò que nasce, e a minha vida tem sido um tormento inglório. Tento chamar-lhe a atenção para a sua falta de decoro em relação à forma como me trata, a indelicadeza dos seus apartes, as notas de rodapé imerecidas que me aplica por dá cá aquela palha, a inconveniência e inexatidão da maioria das suas críticas, mas a debalde: se mal estava, pior fico, e caiem-me as prédicas no saco roto dos maus ouvintes, daqueles que fazem questão em escutar de cabeça muito direitinha, para que mal as palavras entrem por um ouvido possam sair, à mesma velocidade senão maior, de imediato pelo outro.
Por exemplo, ainda antes de sairmos de casa, após o raspanete que me pregou sobre as fotografias, todas dela, pois: todas tuas!, não se coibiu de judiar do meu semblante cabisbaixo e consternado, triturando-me o ânimo com outro discurso sem fim acerca das mesmas, onde vociferou entredentes sem pundonor, num sussurro azedo que «tudo o que é demais, é moléstia. Meu menino: Uma, duas, quanto muito, três fotografias minhas, selecionadas e atualizadas, ainda vá que não vá, e eu até te podia ajudar na escolha. Algumas são fidedignas, e espelham extraordinariamente bem a minha personalidade, com discrição e qualidade. E uma vez que vais, que vamos, continuar com esta casa, por estar mais perto do meu serviço, e onde tu tens a tua tralha de intelectual, não vejo nenhum obstáculo a que me sintas por perto e atenta, nos períodos em que estejamos “desencontrados” desenvolvendo as atividades profissionais sem as quais nunca poderemos passar. Não somos ricos, nem cultivamos o ócio. Portanto, começa a pensar nas fotografias que preferes manter à vista e dá sumiço às restantes. Ok?»
Meneei a cabeça fazendo «tsche-tsche» com a língua a bater no palato, como quem coça o céu-da-boca duma comichão insuportável, despreguei os olhos do chão, com que varria o soalho à procura de insectos, poeira ou nódoas libertadoras do recado, suspirei atrapalhado e tentei sossegá-la prometendo «fica descansada, que amanhã, assim que aqui chegar, vai ser a primeira coisa que faço. Quando vieres almoçar, já podes escolher aquelas que preferes que tenha de ti. Eu gosto particularmente de duas ou três, mas depois, durante a refeição, faremos a nossa “acareação” de pareceres. Vais ver, que os nossos gostos não diferem tanto como supões…»
Sai-me bem. Não é para me gabar, mas vislumbrei-lhe na face um tique, um breve estremecimento, de quem sustém um sorriso. Apeteceu-me dar um pinote e socar a atmosfera num «Hhhuuuaaaaauuuu!!!!!...» reconstansubstancializador mas evitei-me, sim, apenas para lhe fazer notar que a birra ainda não tinha passado totalmente, e que quando se prende o burro não se desata a corda de repente.
Abri a porta para sairmos com a respiração em suspenso, e desviei-me subtilmente para ela passar. Fê-lo lentamente, muito lentamente, demorando cada gesto da passada, esticando-os até aos limites do suportável, o braço direito a rasar-me o peito, quase a tocar-me sem tocar, contudo obrigando-me a sentir o calor de um contacto pré-anunciado, desejado, embora que na pronúncia acesa das palavras supérfluas e indizíveis. E eu tremi, estremeci sem controlo, tentando esconder a constatação inequívoca de que não me pertenço. Que a vontade que me anima, que essa ideia cujo melhor nome que encontrámos para nomear chamamos “alma”, pode ser a minha, mas habita outro querer. Num amplificado reconhecimento, a que se acrescia a noção exata da minha impotência para contrariar este estado, esta tomada de sentido em toda a sua consciência!

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