Segundo Conto da Saga Petrarquiana

A Curva em Desnível

“Eis aqui se descobre a nobre Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda,
Em cujo senhorio e glória estranha
Muitas voltas tem dado a fatal roda;
Mas nunca poderá, com força ou manha,
A Fortuna inquieta pôr-lhe noda
Que lha não tire o esforço e ousadia
Dos belicosos peitos que em si cria.”

(Luís de Camões, in Os Lusíadas, Canto Terceiro, Estrofe 17)

A inda mal me tinha levantado quando a campainha tocou. Eram precisamente dez horas, e o sol entrava pela janela da sala como se fosse um dia de primavera. Mas não o era. Estávamos no pinho do inverno e, lá fora, a temperatura rondava os dois graus negativos.
Portanto, quando sem pressas me dirigi à porta para ver quem assim tocara, estava longe de imaginar que pessoa metera o dedinho no botão, deixando-o lá esquecido na demora de uma eternidade estridente. Insistentemente. Ansiosa. Porque, se nos propusermos ouvir as tonalidades dos toques, distinguimos perfeitamente o estádio de ânimo de quem carrega do outro lado. Eu distingo, e às vezes até sei quem é, dado que os timbres se tornam caracteristicamente identificáveis.
E ao ver-me, assarapantado, Shara sorriu-me de orelha a orelha, num desafio direto à contrariedade chapada no meu rosto. Porém, não se fez minimamente achada ou arrependida, e estampou-me nas ventas um «então queridinho, ainda de ressaca com as novidades de ontem?», que me arrepiou de alto a baixo num estertor de choque eléctrico, semelhante àqueles apanhados à sorrelfa e na calada da noite, quando se assalta o frigorífico ou tenta arrombar o mealheiro do filho mais novo, e se é apanhado com a boca na botija.
As novidades a que se referia estavam relacionadas com a conversa a quatro que tivéramos sobre a nossa vida a dois, durante o jantar em casa dos pais dela… E diziam respeito ao ter-me posto em banho-maria com o meu claro consentimento. O estranho é que a anuência nem tivera a interferência alcoólica, ou a nota persuasiva de uma fraqueza visível. Não estava bêbado nem fragilizado quando dissera que sim, pondo fim à minha liberdade de solteiro e bom rapaz.
Há coisas que nos sucedem sem querermos, outras porque não queremos mas também não nos importamos, e ainda outras, porque além de as querermos fazemos tudo para que nos aconteçam. O jantar não foi nenhuma delas. E a conversa anexa idem. Como diz o povo, tantas vezes vai o cântaro à fonte até que um dia… parte-se!
É claro que de inesperado não tinha nada. E a complacência que me acompanhara na decisão, também não indicava que fora esperada. Mas isso, de me terem sido “proibidos” os sonetos, acho que foi uma exagerada e elevadíssima pena para tão ínfimo e insignificante falta: a de dizer o que sinto por catorze versos. Há quem o faça mais barato, é claro, como se de um haiku se tratasse, porém estas modalidades não fazem muito o meu género…
Bom: o que é certo, afiançado e garantido, é que ela estava ali na minha frente, com cara de grande divertimento na intenção, clara e declarada, de sondar como tinha eu feito a digestão das novidades sofridas, se tinha feito ou ainda precisava de algum auxiliar – de memória? Farmacológico? Corretivo? – que me facilitasse o engolimento das decisões tomadas acerca da minha vontade e estado civil, como de espírito. «Ora, tu bem sabes, que tudo o que decidires, está decidido, e eu não ponho qualquer obstáculo…», fiz-lhe saber, desviando-me da entrada para que Shara atravessasse a ombreira da porta. Dá mau aspecto esse serôdio hábito oitocentista, essa coisa de se discutirem os sonetos em público…
«Mas nada de fintas, verónicas e chicuelinas, que os meus pais têm muito apreço e estima por ti, e desiludi-los será um duro golpe de que dificilmente recuperarão», remataste tu, aquela que possui o nome que é também a chave do meu destino, cuja sorte foi ditada e escrita muito antes do homem ser homem, ou até do menino ser menino.
«Claro» garanti, «podes ficar descansada, que nunca da minha parte haverá a menor razão de queixa, e tudo farei para continuar a merecer a confiança e apreço deles», tentando dar um ar oficial ao juramento para melhor me livrar do teu olhar acutilante, perscrutador e irreverente. Quase irónico, e veladamente ameaçador…
É óbvio que a tua intenção, quer dizer, a intenção de Shara era outra, de subtil natureza e contorcido engenho, que nestas coisas da vontade o feminino não pode passar nunca sem aquele requinte de matreira índole que os incautos e desprevenidos tomam por sedução. Por perspicácia. Salero. Coquetearia. O vos estes sal terrae sem o qual os dias nos seriam tediosamente sonsos. Imagino! Porque é apenas um supor, considerando que até quando não estás me anda inquieta a alma por entre os destroços em que me fica a existência se tal sucede…
Assim, tentei desviar a conversa para outros destinos, visto que a fatalidade me pusera a cabeça à roda, com o fito de equilibrar as ideias e o ânimo num degrau acessível ao amor-próprio sem me esticar muito. «Olha: já reparaste que limpei a casa e arrumei os livros quase todos? Não notas a diferença?» Mas na ânsia de a encaminhar para outros azimutes, descurei milimetricamente a guarda, mostrando-lhe as prateleiras onde eles se enfileiravam, embora que com as lombadas tapadas pelas inúmeras fotografias tuas, quer dizer: dela, nas mais variadas circunstâncias, trajes, fundos, poses, que ao longo dos anos fui colecionando, emoldurando e expondo, desde que houvesse algum espaço vago, ou que ainda não tivesse sido ocupado por uma. Uma vez chegaste mesmo a ironizar, perguntando-me se a figura que se via por toda a casa, tão insistentemente decorativa não seria «alguma Santa a que és devoto, a que prestas culto… Não te sabia tão dado às coisas da fé e da religião!», fazendo-te desentendida sobre quem era essa que somente Shara encarna sem se notar qualquer desacerto nas linhas, suturas e reminiscências.
Lembro-me que te paguei na mesma moeda e não afectei o toque, sem remoque e indiferença. Foi então, enquanto recordava a situação, que me atiraste outro balde água fria, ainda pior do que a proibição dos sonetos, coisa que eu pensava ser a mais terrível e desafortunada que me podia acontecer, e isto depois de teres passado revista aos móveis e estantes, avaliando a decoração, o estado de preenchido anafórico, de onde brotavas como um refrão que se repete a esmo por toda a glosa, sem curvas de desnível, de forma a esfregar com detergente eficaz outra nódoa que ainda me maculasse a alma, o comportamento e a motivação, determinando que «isto não pode continuar assim, durante muito mais tempo. Trata de desfazer, de arrumar esta tralha toda. Faz um álbum, mete-as numa caixa de camisas ou sapatos que tenhas prà’i, no quer que seja. Desenrasca-te. E se tivermos filhos, onde vamos pôr as fotografias deles? És tonto, ou quê?»
Na boca, a língua entaramelou-se, quando tentei ripostar, e nem um pio me saiu dela mal a abri, deixando-a à banda. Ficara de rastos, a corda partida, a pilha gasta, a alma num esfregão. Tudo quanto eu mais temia me estava acontecer. Um tsunami não teria provocado maior devastação. A cara devia ser o espelho da consternação e tempestade que se abateram sobre mim, todavia Shara não evidenciara a menor comoção, pena e dó. Olhei as alturas implorando socorro a todas as divindades, mas nenhuma me atendeu. Fitei o abstrato de nada que é ponto aceso a brilhar no vazio infinito, e nem uma luzinha me piscou no pestanejar da esperança, precisamente no momento em que até um pirilampo me consolaria. Mas nada. Da desfaçatez do cosmos não vieram quaisquer grânulos luminosos ou grãos de pó… o mínimo sinal de esperança ou réstia de razão.
E dada a evidência, contrito e aflito reconheci, que tudo quanto para Petrarca fora somente maldição, calhava-me a mim a dobrar – é que um soneto nunca vem só!

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