A TRAGÉDIA


 
 
A  TRAGÉDIA
Por
JOAQUIM MARIA CASTANHO
 

 

Juvêncio Pernas nunca foi homem de falas desperdiçadas, nem palavras sabidas em ró-có-cós e caganeirices. Mas deu-lhe a vida, por mor de muita andança e surpresas várias, aquele semblante desconfiado e o cenho franzido de olhar os outros sob a pala do boné de bombazina castanha, que só tirava para dormir, e as mais das vezes nem para isso, pondo-o sobre a fronte, se de alguma sesta à sombra de árvore mais frondosa o calor e cansaço lhe impunham. As pressas o não impediam. E à companha dava jeito.

Nado e curtido nas charnecas de outrora, nunca se adaptara solidamente às sociedades que a longevidade lhe fez atravessar: na de produção negou-se à prisão condicional dum emprego fixo e horário rígido; à de consumo, recusou a corrida sem tempo de olhar os campos, as aves, os riachos e os arvoredos; e tão-só da de comunicação quis aproveitar mais do que alguma musiquinha brejeira nas noites de sábado em rádio portátil. E ao mundo, queria-o pequeno, para que lhe pudesse dar a volta num dia, de cão coelheiro preso ao eixo da carroça puxada pela arisca e finória “Boneca”, uma mula e tanto, picaça, que ainda prometia muitos e aturados anos de atafais. Em toda a vida tivera quatro para a lida, mas aquela era de todas a que mais lhe enchera as medidas, pelo porte fino, esguio, nervoso temperamento e maneiras de madame exigente nos mimos e no trato. Altiva, que nem uma soberana; folgazona e lesta, que nem uma alvéloa. Assustadiça, porém, se não se tivesse mão nela e uma palavra de acalmia. 

Por ganha-pão agarrara-se vida fora ao ferro-velho. Essas azinhagas e carreteiras foram-lhe o chão da casa, e por piores que estivessem os seus pisos, desde que lhe cheirasse a ferrugem nalgum casal ou monte de confins, nunca lhe impossibilitaram de fechar negócio. Um faro danado que detectava os oxidados a milhas, e nos olhos de medir a disposição do vendedor, sem dúvidas nem lambanças, uma acuidade e concentração que assustaria os psicólogos mais expeditos, forjaram-lhe sério e avultado pecúlio, que deixou a forrar juros de ano para ano, sem precisão de mexidas por doenças e desafortunas.

O casamento durara-lhe e tivera na vida dele o mesmo desassombro de uma trovoada de Abril, morrendo-lhe a companheira na primeira prenhez, levando com ela a cria, que nem do tempo era. Coisas que um homem não desmisterializa, nem a natureza concede desvendação. Bastando-lhe a experiência, não sem antes afogar as mágoas, frequentando intervaladamente algumas casas menos religiosas, mas mais iniciáticas, embora que doutros credos e catecismos.

Foi à tropa quando devia ter ido e não ganhou nem perdeu nada com isso. Se anteriormente, por trabalhar, era mal pago e pior considerado, quando lá, continuaram a pagar-lhe mal, trabalhou de igual modo e a consideração também não subiu. Infantaria, escolhera ele, por ser um nome pomposo e de realeza, que deveras o fascinou e o seduziu: meteram-no a limpar cavalariças e tratar de cavalos.

Aprendeu o negócio com um tio que o explorou de sol a sol, e que o empregou por extraordinário favor familiar, materno, por imploração da mãe, e a quem haviam nascido os dentes no ofício. Três anos, foi quanto durou o idílio!... Um dia, pelo S. Martinho, atirou com os aparelhos ao ar e mandou os favores do tio pràs urtigas, que era de onde nunca deviam ter saído! Estabeleceu-se com três contos de réis, a que foi acrescentando outros, somando aos três de cada vez, até que, ao casar possuía de seu o albergue e a viatura. O primeiro muar foi a meias com um comerciante de gado, que lhe aproveitou as voltas para fazer propaganda à mercadoria. Não fora grande coiseca, mas vendeu-se com lucro para os dois, a um vinicultor a quem dava bastante jeito, pela moleza e obediência, únicas qualidades que evidenciara em dois anos de trato.

Quis o destino que, na sexta-feira santa de l990, às seis da tarde, lhe fosse a sorte arredia na desfeitura do produto de sessenta e dois anos, bem conservados e nutridos, sem moléstia de maior, num molho de ossos quebrados, além de umas dores danadas, que por certo, nem às parideiras era dado ter, se não, nem no mundo haveria geração.


Andara durante o dia pelas bandas de A-dos-Tansos, zona encarapelada de morros e vales, alguns a pique, deixando ravinas de alto lá com elas!... E ao fundo das quais, o Rio Tramóia, que na sua terra, Casal Parado, mal passava dum ribeirote, mas que para os sítios, engrossado por uns quantos riachos e ribeiras, de fracos recursos em pleno Verão, corriam à data sem descaro nem licença para dentro dele. E, em determinados locais, se o declive o propiciava, em cascatas espumosas de água pardacenta dos esgotos e pecuárias que lhe desaguavam.

O caso dera-se sem apelo, não obstante as suas destras mãos na exímia condução da Boneca, tivessem recorrido a toda a mestria acumulada nos ininterruptos e idos anos de domar os ânimos e desquites às alimárias do seu sustento. A estrada serpenteava encaracolando-se à volta do morro, dando-lhe pela esquerda frondosa mas pedregosa fasquia, e pela direita, inclinado precipício, esgalhado à mão podoa, de piornos, xaras, carapetos e zambujeiros, entremeados de morouços de pedras e menires naturais que aos celtas da zona não ofereceram qualquer utilidade. 

«Ah, mundo cangalheiro!...» Responsava consigo próprio, num resmungo de medir-lhe os cômoros e declives, contabilizando os espécimes da flora até ao rio, no fundo, a borbulhar cachões. «Arre, que até arrepias!!...»

E impressionava mesmo. Dava vertigem, a quem se debruçasse da estrada para lhe espiar o leito, sumido as mais das vezes, encoberto pela vegetação.

De santa a sexta-feira não tinha tido nada, prò negócio. Umas aduelas, relhas partidas, duas camas de ferro carcomidas de ferrugem e uns quilos de arames vários, fora quanto abichara. Mas pronto!, para a broa sempre havia de dar... Sem conduto, é claro, que as carnes não se mercam com ninharias!...

Cogitava nas contas do que reunira semana fora, em termos de remessa, visto que no dia seguinte, sábado, era dia do camião da metalúrgica, que lhe ficava com os pesos, passar pelo estaleiro a carregar. Feitas por alto, não excediam as três toneladas – o que era pouquíssimo!... Noutros tempos, chegara a juntar sessenta e setenta de sábado a sábado. Mas os costumes mudaram-se, e o ferro da lavoura, que fora do que mais lhe viera parar ao lastro da carroça, sucedera substituído nos tratores e demais alfaias sem propensão para metal, ainda velho que fosse.

A estrada é apertada, mal permitindo passagem, no cruzar-se, a dois carros. E nas ultrapassagens via-se obrigado a entrar com o rodado no piso de chão da valeta, a facilitar a manobra aos outros viaturantes. Apercebeu-se perfeitamente da natureza e porte do veículo que se aproximava pela retaguarda. “Um pesado de grande curso”, pensara ele.

E era. Nada mais que um TIR, transporte longo e de manobra difícil, de assustadora envergadura, no seu comprimento de doze rodados. Mas o motorista, cruelmente brincalhão, sobremaneira o quis ultrapassar, fazendo da buzina de ar um instrumento de tortura para os serôdios do progresso, mandando-lhe duas estrondosas bufadelas no cachaço, ecoantes de estrépito civilizacional nos orelhões do muar. Bbbrrrhhhuuummm!!... Bbbrrrhhhuuummm!!...

Resultado: o bicho embraviscou-se, deu dois cangotes, entrando em pânico pelo alvoroço, desobedecendo ao arreatar do freio e serrilha, investindo-se de teimosia bárbara e diabólica, levando o rodado da carroça a saltar a valeta, que, num ápice se resvalou – zás, pás, catrapás, pás, zás – precipício abaixo aos trancos e tamancos, de cangalhas às avessas, num pandemónio que dificilmente ao sarraceno lembraria. E o energúmeno nem parou, ainda assim o não chamassem a contas pela brincadeira!...

Porém, não eram decorridos dez minutos após o desacato, quando um residente daqueles ermos, dirigindo-se a casa, vindo do trabalho, na sua motorizada de 50 cc, apercebendo-se do desastre parou a traquitana e constatou nada poder fazer além de ir a casa telefonar para a GNR e Bombeiros Voluntários de Casal Parado. Que foi o que fez, à ligeireza do enquanto o diabo esfrega um olho imposto na distância.

Os primeiros a acorrer ao local foram os Gê Nê Rê, nas pessoas do cabo e dois praças, que, pé ante pé, e à custa do pretexto da demora dos soldados da machadinha, desceram a ravina.

O tio Juvêncio Pernas fora o que caíra mais longe, esgalhando piornos e xaras, até se quedar, de braço direito e clavícula esquerda partidos, as costelas a multiplicarem-se em duas por cada uma, tíbia e perónio esquerdos em fratura exposta, e duas brechas no toutiço em que cabiam à vontadinha dois patacos de Euro, no arejar-lhe do cérebro por um par de vinténs. Antes dele ficara a besta – salvo seja, que se no desaguisado alguma houvera, fora outrossim o fitipaldi dos camiões –, de espinha partida em dois lados, escoriações na cabeça, e a pata dianteira esquerda quebrada em duas secções. E na superior da superfície, acamarotado de primeira, o canzote coelheiro, que inúmeros laparotos lhe havia trazido à mão, se acaso o soltava onde visse que era chão deles e sem perigar de ser autuado pela venatória, com o pescoço traçado pelo cordel que o prendia ao eixo da carroça, sustendo a cabeça ao corpo por um fio de carne e pele, patas traseiras partidas ambas e outras feridas menores. O resto da carroçaria e carga, foram parar espalhadas encosta adiante, conforme o peso e os obstáculos.

Ao GNR, o cabo Sabino quanto apurei, deparou-se primeiro com o cão. Meteu-lhe dó o animal, naquele estado, ganindo e gemendo de cortar a alma às postas de meio arrátel. Sacou da pistola, e não esteve com demasias: assestou-lhe um tiro de misericórdia, acabando-lhe de vez com o sofrimento.

Encontrou seguidamente a mula Boneca, cujo estado de graça não era para menos, e processou-lhe igual tratamento. Pum!!, mesmo de cano enfiado no interior da orelha do bicho.

Finalmente deparou com o tio Juvêncio Pernas, escarranchado num carapeteiro, que crescera aprumado sobre um desabrido morouço de calhaus, ainda com a arma em mãos das anteriores utilizações. Este visionou o guarda, o cinzento pardo da farda a aproximar-se, e logo que o teve perto de si, esboçou um sorriso de quem estava num dos melhores sofás do salão de chá, e afiançou-lhe:

«Oh, Sr. guarda: tal foi a tragédia!... E eu, nem um arranhãozinho apanhei!!?»

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