O QUARTO CIGARRO
O
QUARTO CIGARRO
Por:
Joaquim Castanho
Por hábito, ou por vício – que o quotidiano é composto
de rotinas –, a hora da bica tornou-se uma referência quase mítica à minha
maneira de estar em cada dia. Tanto pelo que novo, às vezes conseguia
acrescentar; como pela ausência de novidades. E, porque aquilo que ontem foi
variante à força de repetir-se se transformou em constante, saciando a neofilia,
“assimilar desconhecidos”, pela frequência dos encontros, em conhecidos,
tornou-se irrelevante quanto ao facto de estar presente.
Dito e feito.
Assim, o silencioso mistério que o aparecimento de Inês
provocou, desvaneceu-se, e deixou em seu lugar a tranquilidade duma presença
inequívoca e familiar. O rosto angular miúdo esquadrilhado pelo negro cabelo
curto, arrapazado, servindo de suporte ao olhar sereno das pupilas pretas,
acutilantes e inteligentes, transmitindo passividade observativa, veio ganhando
desnitidez para operar-se em mais um rosto irrelevante entre outros tantos de
igual e indiferente relevância. Quando presente era legendado em off de consciência pelo ecoar interior
de um “cá está”; e, se ausente, por um outro a que se apunha um laçarote
negativo de “não está cá”, alterando a
ordem dos significados e significantes para produzir a diferença, pois que
é isso acima de tudo que está em causa sempre que pensamos em alguém, ou que
alguém nos começa a transmitir algo mais com a sua presença ou ausência do que
a noção exacta e factual do que elas significam. É quando começamos a ouvir
ecos e vozes sinistras, em off. O off do desejo; ou o off da atracção. O off da
prudência; ou o off da aventura. O off da esperança; ou o off do medo.
Falar da personalidade de Inês é falar dum corpo de
menina com a mentalidade de uma mulher de trinta anos. De estatura baixa, entre
o metro e cinquenta e o metro e sessenta, sem ser magra nem gorda, mas polida
de arestas, movimenta-se assentando meticulosamente primeiro o calcanhar no
chão, aparentando mais um deslizar do que um caminhar a dois pés. E no
vestuário, sempre de calças, em ganga ou bombazina castanha ou cinza,
inconfundível e alternadamente castanhas ou cinza, a preocupação de resguardar
o corpo da sevícia dos olhares, principalmente o tronco e os seios pequenos e
gomosos, por uma sequência de camisolas ou camisas abotoadas até ao pescoço, em
cores discretas, mas sempre a condizer com a demais indumentária.
Bonita? Se não achasse que sim, nem estaria a falar
nela.
Contudo, não nos dispersemos.
Ao sentar-me diariamente à mesa do café, entre a bica e
a terceira página de leitura do livro que incondicionalmente me acompanha, ela
chegava. Sentava-se sozinha, fumando um cigarro antes do café, outro depois
dele, e, passado pouco tempo, após duas ou três goladas no copo de água, um
terceiro – e último. Todos os dias. Invariavelmente. Exceto aos sábados, em que
não vinha à noite, mas sim à tarde, logo a seguir ao almoço e até um nadinha
antes do jantar.
Falar... Tão-só o essencial. “Boa tarde” ou “boa noite”
à empregada, que, devido à constância da receita nem sequer lhe perguntava o
que queria; ou algum “com licença” se entrando para sentar-se ou levantando-se
para sair, acontecia invadir o espaço de outro cliente. Nunca a vi rir; apenas
sorrir, e raramente. Uma única vez, quase, que não cabe dizer agora aqui. Mas
também me não lembro de a ter visto triste e melancólica. Ou aparentemente
triste. O seu semblante era o desenho, a máscara perfeita, numa plástica de
serenidade completa e satisfeita.
A vida é um off
infinito interrompido milhentas vezes, até à perpetuidade.
E nós, exímios ases do disfarce e simulação, da camuflagem,
nem sempre conseguimos a contenção suficiente para não deixar transparecer nos
nossos rostos e comportamentos, os sentimentos e ideias que no imo evoluem, os offs ditados e sublinhados por esse
constante e secreto diálogo interior, que mais não é do que a apólice de
garantia por estarmos vivos. Daí que, durante esse ano e tal de presença
assídua, em diária e subtil insinuação, tímida, silenciosa, impercetível, mas
inequívoca, Inês tenha sido o polo aferente, o núcleo duro, à volta do qual
giraram, umas vezes mais tranquilos, outras mais sobressaltados, uma miríade de
offs satelitizados.
Tanto assim que, ao chegar, ou logo que chegasse, antes
mesmo que a tivesse visto ou ouvido, ainda que o café estivesse a abarrotar e o
som da televisão num volume fora do comum, cujos ruídos se impusessem e me
solicitassem a atenção, eu aperceber-me-ia e saberia da sua entrada, numa
constatação indubitável, e tão vincadamente certa, ou até mais certa do que se
a estivesse realmente a ver e ouvir, quando nem estivesse nesse momento a fixar
a porta.
Não digo que o desejar vê-la funcionasse como um
chamamento para a sua aparição, como se fosse a efetiva materialização duma invocação,
nem que a coincidência do espaço-quando entre o aperceber-me da sua chegada e o
ela chegar, tivesse relevância ou fosse sintomático de tendências para o
misticismo, para o reconhecimento mágico, da minha parte. Mas acontecia. Fatal
e irremediavelmente. Sem que ao menos tivesse consciência disso. O “cá está” em
off soava, e eu levantava os olhos do
livro, em soslaio para a porta, e lá estava ela a entrar. Sempre. Sempre.
Sempre. Sempre.
É esse diálogo em off
que nos mantém ímpares, expectantes e sobreviventes. Sem ele, a solidão nada
teria de aventureiro e fantástico, mas sim de mortífero e doentio. Senão de
desumano, até. De monstruoso. Reconhecer que Inês tinha aparecido nesse dia
dois minutos mais cedo do que o habitual, era uma vitória proustiana; dois
minutos mais tarde, uma catástrofe e uma calamidade. Dois minutos que podiam
ter o efeito de um obus. Ou de um fogo-de-artifício maravilhoso e sublime. E,
afinal, dois minutos que em vinte e quatro horas, nada mais são do que a milésima
parte do dia. Mas que eram sem sombra de dúvida, um reconhecimento intensamente
sentido por essa brecha da alma em carne viva, que é a certeza de resistirmos sempre
muito para além dos limites.
Adriana, provavelmente, não veria as coisas de idêntica
forma... (Ou será que via?...) E paradoxalmente, na sua passividade, era a
cavilha, a espoleta, o fulminante, o rastilho, para o fogo e atividade em que
me ardia a existência, numa cozedura de furna vulcânica. Num consumir impercetível.
Eu lia. Mas que ninguém me inquira sobre o que estava
escrito nessas três ou quatro páginas que duravam a sua presença. Ainda que tivessem
sido sempre as mesmas. Repetidas quinhentas e tal vezes. Que eu não saberia
honesta e sinceramente responder; a não ser que inventasse. Ou se no café
também estavam fulano ou sicrano. Seria igual. Branco sobre branco.
Até que um dia, faz hoje precisamente dois anos, não
dei por mim a reconhecer a sua entrada; todavia, ao erguer os olhos do livro,
para a frente, ela estava a puxar a cadeira da minha mesa, e a sentar-se nela.
Fronteira a mim, à exata distância de um tampo de mármore, de uma mesa, qual
tumba branca e fria, a separar-nos. E senti que dentro de mim se rebentara um
saco de águas, uma borbulha de soro vital, que se alastrava por todo o corpo,
até ao mais ínfimo e recôndito pormenor, exalando, transpirando, emitindo, uma
profusa sensação de calma e tranquilidade. Que, aliás, se repetiu, embora
perdendo gradualmente a intensidade, nos dois ou três meses que se lhe seguiram.
E em que a sua presença à minha mesa ganhou foros de dado adquirido e conquista
irrevogável.
E assim foi, até ao ano passado, todos os dias. Todos.
Todos. Todos. Todos.
Sentava-se. Fumava um cigarro. Chegava o café, e
adoçava-o; então, bebia-o serenamente, em três goladas precisas e rigorosas.
Fumava novo cigarro. Dava dois ou três golos no copo de água (não tão precisos,
mas não menos exatos). Fumava outro cigarro; e partia.
Todos os dias o mesmo ritual. Inconfundível e
inalterável.
Entretanto, eu lia. Mas não lia. Mentalmente
perseguia-lhe cada gesto, adivinhando-o antes de acontecer.
“Sentava-se. Fumava um cigarro. Adoçava o café e
bebia-o. Fumava outro cigarro. Dessedentava-se. O terceiro cigarro; e saía.”
Na minha frente os gestos aconteciam imediatos e reais.
Mas eu revia-os em replay,
saboreando-os gulosamente. E se calhava levantar os olhos do papel era para
fazer a sobreposição do fotograma sobre o instante real, e reconhecer que não
havia qualquer disjunção, qualquer desvio, qualquer assimetria. Que a cópia e o
original se encaixavam perfeitamente. O que sempre sucedeu durante um ano, como
já afirmei.
Em dois anos consecutivos somente houve uma alteração,
com um ano de antes e outro de depois dela: O quarto cigarro. Após um ano ininterrupto
a sentar-se, fumar o primeiro cigarro, beber o café, fumar o segundo cigarro,
beber água e fumar o terceiro cigarro, para seguidamente se levantar e sair,
passou a sentar-se, fumar o primeiro cigarro, beber o café, fumar o segundo,
beber água, fumar o terceiro, beber novamente água e fumar o quarto cigarro,
para partir consumido este, no decurso do ano seguinte. Nem mais. Ou menos. Exata
e exemplarmente assim.
Mas essa alteração, menor, como afinal o foram antes
desse ano os dois minutos de antecipação ou de atraso, arrastou-me para um
turbilhão de sentimentos e ideias e dúvidas e contradições, inconcebível. Para
uma tempestade interior de onde tinha que sair a nado e a pulso, sem qualquer
suporte ou auxílio, em solidão total, esforçada e exaustivamente conseguida.
Respirar era uma batalha. Perceber que continuava vivo depois dela ter partido,
uma vitória. Nunca a minha vida valeu tanto, nem tão pouco!
Talvez seja a este prazer de torturado que alguns
autores aludem, em suas obras de personagens ou temáticas sadomasoquistas; ou
esse contentamento descontente dos poetas. Não sei. Contudo, se cada dia
tivesse mais um ou dois segundos dessa parca meia hora em que ela permanecia na
minha mesa, tenho a certeza de que morreria. Sucumbiria, fulminado.
Naufragaria. Indubitavelmente, sem esperança nem recurso. O Inferno de Dante
parece uma piada ridícula e idiota face àqueles trinta e tal minutos.
Acreditem.
Há pessoas que são capazes de se matar pelos outros. Há
mortes e suicídios por amor. Nem era estritamente necessário que alguns shakespearianos
no-lo tivessem lembrado em literatura, para que o soubéssemos e
reconhecêssemos. Outros, de morrer. E eu, convencido que estava, e estou!, que
se Inês ficasse alguma vez mais esses fatídicos minutos, por cada dia, eu
morreria... Mesmo assim, chegava a desejá-los. Não percebem?... Não importa; eu
também não – embora seja a mais pura das verdades.
Todos os dias, ela vinha e sentava-se; e eu restava
ali, abatido, prostrado, naufragando sem debate, nesse remoinho tempestuoso de
milhares de offs e pesadelos alucinados,
aflições, letargias e expetativas. Irremediavelmente só, até aos infinitos
limites de eu próprio, invocando religiosamente a pírrica frase por cada
vitória de cada dia a que sobrevivia. Trezentos e sessenta e seis dias escritos
por extenso e em brasa na página mais secreta do meu ser.
Mas valeu a pena, meus amigos. Porque hoje, inconfundivelmente
hoje, precisamente um pouco antes, um nadinha quase nada, da primeira página
destas linhas, ela concedeu-me esse minuto em que residia o limiar da minha
resistência. O derradeiro. O fatal. O fatalíssimo, em érrimo grau.
E eu, em desespero, ansioso, febril,
seguramente convicto de que iria morrer na sequência dele, consequentemente,
ergui os olhos para os dela, implorante e grato, acabado, vencido, a fim de lhe
ouvir dizer, sorrindo em condescendência e num lamentoso oscilar de cabeça:
«Tonto!... Claro que te amo. Ou achas que se não te
amasse eu teria fumado mais um cigarro, por cada dia e durante um ano?! Por
cada bica?... Aumentando assim as minhas possibilidades de cancro, hãn?!...
Tonto!»
E saiu. Reportando-me a existência
para uma arte bastante estranha de entender as coisas e a vida. Mas ficara
convencido: ninguém, em seu perfeito juízo, se destrói por nós, se nos não ama
verdadeiramente, seja lá o que isso for da verdade e do amor... Ninguém!
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