Amélie Nothomb

TEMOR E TREMOR
Amélie Nothomb

Sobre os japoneses terá afirmado Wenceslau de Moraes (1854-1929) que só tardiamente compreendera/reconhecera quanto se "iludira e que os sorrisos deste bom povo de Tokushima, arisco, conservativo, detestando cordialmente o europeu, traduziam simplesmente escárnio e aversão pelo homem branco, então, confesso, muito desfavoravelmente representado no grotesco exemplar que eu era", facto aliás sublinhado na caricatura que deles faz Amélie-san relatando as nuanças pícaro-escatológicas do quotidiano hierárquico de uma empresa grande, desse país ilhéu que foi edificado e gerido sempre como uma grande empresa da ordem ternária, baseada no honroso orgulho da servidão. Porque à distância de um século algo se mantém inalterável, e de tal forma evidente, que qualquer escritor dos nossos dias o nota, mas não só o nota como o realça e deixa transparecer em palimpsestos e originais, não caberá porém neste alinhavo crítico, pois nele se atendem mais aos liames literários do que aos culturais e sociológicos. O que vem corroborar a ideia que, como é típico de todos os mediavelismos que resistiram à mudança no progresso e conforme o evoluir dos tempos, o imperialismo esclavagista japonês não se limita, à semelhança do nazismo, a exercer o seu poder de intolerância e/ou ostracismo sobre as classes internas, mas pretende estender-se a todos os povos que lhe sejam diferentes na filosofia e cultura, a começar pelos vizinhos e por ordem crescente de desprezo na justa medida do seu afastamento, pelo que quanto mais afastados e diferentes mais desprezíveis lhe serão, sendo a raça branca o expoente máximo dessa distância, o que a torna a seus olhos a mais execrável do planeta – e arredores. No entanto, do ponto de vista da identidade e das migrações, nunca será demais salientar os vincos caracterológicos e típicos de uma atitude cultural e hierárquica que atravessa a história de um povo sem ser permeável ao evoluir dos tempos, não obstante o faça para económica ou politicamente, os acompanhar e tomar sério ascendente sobre a conjuntura global. Sobretudo porque em súmula, e à primeira vista, as narrativas desta autora, filha de diplomata belga no Japão, onde cresceu e viveu alguns dos principais anos da sua formação como pessoa e como escritora, se assemelham a autênticas e ousadas persiflages, na medida em que não pretendem ser mais que conversas fiadas, ligeiras ou frívolas, balizadas pela simplicidade da anedota, da gradação, do silogismo e da parrésia, que transforma cada um dos seus (quase) romances naquela espécie anfíbia entre o género escatológico, pustulento, escarafunchoso, de Céline, e o light lógico-silogista do policialesco de Simenom ou do realismo existencialista huguino-proustiano, com ou sem Sartre, segundo e conforme nos localizarmos sob a luz vocabular de entre ou pós Grandes Guerras.
E isto por duas razões, três perspectivas e cinco características: as novelas Temor e Tremor e A Higiene do Assassino; o parodiar hilariante do romantismo, a crítica social e o canibalismo narrativo ou personalista do eu; a trivialidade aparente do underground, a ironia iluminista e cartesiana, a insustentável força da fraqueza, a controversa inversão dos valores e o dualismo despido de ambiguidades da nova geração de escritores europeus.

1ª Razão – Temor e Tremor
(A parábola do Arco...) (As Relações Paradoxais...)

2ª Razão – A Higiene do Assassino

"Quem pelas cartilagens mata, pelas cartilagens morre"

Eis um assassino em fuga há quarenta e dois anos. Os seus crimes foram sempre ignorados e tornou-se um escritor célebre, laureado com o Nobel da Literatura. Longe de se acomodar à situação, lança-se numa doentia e não menos absurda demonstração de culpa, porquanto não tem absolutamente nada a ganhar e tudo a perder – excepto a inocência.
Aos oitenta e três anos, depois de ter escrito intensivamente até aos cinquenta e nove, e tê-lo deixado de fazer nos últimos vinte e quatro, é-lhe detectado um cancro nas cartilagens, cientificamente conhecido por síndroma de Elzenveiverplatz, algo tão terrível quão invulgar, supostamente extinto em Caiena, como a morte dos presidiários em que tivera origem, e que o deixa apenas com mais dois meses de existência, que no caso podemos dizer, assim: ficou com a vida por um fio.
Fio esse que Amélie Nothomb vai estendendo ao longo da narrativa, servindo-se de um carreto exemplar – o jornalismo. Por conseguinte, nesses dois meses que restam ao seu protagonista, tempo assaz curto para contar oitenta e três anos de um sedentário adiposo, octogenário paralítico, desprezível e arrogante, de seu nome Prétextat Tach, que só de pronunciá-lo nos sentimos em contacto com vísceras infectas e balofas, não obstante a canonizada santidade que o inspirou, nado e curtido na estética da náusea e provocador do vómito existencial, bebedor de alexanders, género de cocktails nojentos, gordurosos e intragáveis, seduzido sedutor apetrechado de talentos vários reunidos pela intertextualidade em Dostoievsky, Sade, Hugo, Céline, Simenon, Proust, Diderot, cujos títulos (Margaritas ante porcos) se enleiam (barrocamente com preciosismos e rococós) do gótico ao surrealismo com escala obrigatória no policial (de cordel), designam já maravilhosamente a trajectória desse anti-Ulisses da modernidade, exemplificando a via sacra da exposição confessional como uma espécie de Crucificação Sem Dor, Apologética da Dispepsia, Violações Entre Duas Guerras, Gente Suja, O Caso Girassol, Pérolas Para Um Massacre, Atentado à Fealdade, Buda Num Copo de Água, A Desordem da Jarreteira, A Prosa da Depilação, Rebentar Sem Advérbio, Urbi et Orbi, As Escravas Oasinas, Geração Concomitante, A Higiene do Assassino, Três Alcovas, ou A Sauna e Outras Luxúrias, e a quem a gordura serve de napalm e o alexander de arma química.
Imperiais, devastadores, alexandrinos, os assassinos incompletos precisam, contudo, de testemunhas habilidosas e indesmentíveis, cúmplices de glória e extorsão, para passarem definitivamente do arco do guerreiro ao arco do triunfo. Portanto, este escritor execrável e arredio da comunicação social resolve, ao contrário do que até então proibira ao seu agente, conceder algumas entrevistas a jornalistas, não a todos que o solicitam, mas apenas a alguns, pelo que os demais os aguardam (pool) num café (bistrot) fronteiro, onde partilharão a gravação do eleito, que aliás é a prova inequívoca de suas execuções sumárias, exímias, pelo meticuloso método do bisturi que é a metáfora, acompanhada e servida com as mais diversas gradações e lítotes, enfim, a palavra, enquanto matéria-prima e plástica da literatura, elástica nos conteúdos, subtil nas sugestões, contundente e arrojada, mas pertinaz, nas invocações. A peculiar exigência técnica na arte da mentira, da ficção, e da verosimilhança. A exemplar coreografia para um crime perfeito.

Perspectiva AO parodiar hilariante do romantismo

Perspectiva BA crítica social

A leitura metafória, a leitura carnívora e os leitores-rã

Perspectiva CO canibalismo narrativo ou personalista do eu

Quando o escritor-assassino se denuncia tão abertamente perante os seus leitores num livro incompleto como A Higiene do Assassino – o de Prétextat Tach e não o Amélie Nothomb, convém esclarecer, uma vez que um está dentro do outro, à semelhança da bonecas russas ou matriosckas –, que nenhum leitor por mais inteligente e desconfiado, detectivesco e atento aos pormenores, o consiga perceber, notar a insanidade e criminosa índole do autor, então este executa com tal forma e mestria a edificação da máscara, da persona, da personagem, da ilusão, que quase impossível se nos torna detectar a capacidade mortífera da narrativa, que, embora longe da natureza beligerante da literatura, do seu grau de engajamento ou melitancia política, religiosa, doutrinária, racial, sociológica, dizia, enfim veicula, atinge a perfeição do criminoso que sente tanto prazer em matar que se profissionaliza como carrasco, um matador legal e autorizado, profícuo e universal, que pode esconder o seu crime na prática pública, ceifando vidas por imperiosidade legal e à vista de todos, na presença e sob a directa cumplicidade dessa humanidade que era a primeira a condená-lo, mas elegendo-o simultaneamente perito e mártir. Deus do crime e do castigo. Senhor, servo e autor de si. Que melhor se exibe quanto melhor se devora e omite.


Característica 1.A trivialidade aparente do underground

Característica 2.A ironia iluminista e cartesiana

Característica 3.A insustentável força da fraqueza

Sempre que obsessivamente tememos ou receamos que algo nos aconteça, estamos invariavelmente a aplanar o caminho para que isso se verifique.

Característica 4.A controversa inversão dos valores

Será a literatura esse patíbulo excelentíssimo onde podemos esconder as nossas maiores taras, os crimes inauditos, as mais subterrâneas faltas, pecados mais profundos e inconfessáveis? Entre o Inferno de Dante e a geena, o martírio, a provação peregrina de uma trabalhadora estrangeira na sede de uma multinacional, mega empresa dentro de outra empresa maior que é essa nação, circunscrita por uma ordem masculina, quase militarizada e sem dúvida medieval, via sacra de Amélie-san na descida ao mais baixo e raso patamar da hierarquia laboral, aliás eleita dezoito do quadragésimo quarto andar, se lhe dermos o número que era igualmente dado aos limpadores de latrinas da tropa, recrutas incapazes de tirar qualquer especialidade e sem aptidão para outra coisa além do limpar a porcaria dos demais? Ou apoucamento, flagelação voluntária da Amélie-jornalista, única mulher entre repórteres, entrevistadora de celebridades como assassinos moribundos, profissional exímia e documentada mas condenada cobaia para as terríficas experiências da má-fé e pior língua, perversão e pestilência caracterial dos entrevistados, que a remetam incondicionalmente para a defenestração, metáfora de fuga em queda, alegoria de chegar ao cimo através do caminho mais inviável e difícil de o conseguir, que é ir indo afundando-se pelo fundo do fundo, até este ser tão baixo e fundo que toca o seu contrário, como analogia de suicídio purificador ou homicídio libertador de conspurcação? Haverá alguma parcela da humanidade cuja herança de pecado, ignomínia, erro, culpa, seja tão grande e monstruosa que por mais esforçada, penitente, exigente, que venha a ser a sua expiação, confissão, sacrifício, nunca o será suficientemente redentora para almejar a absolvição? Haverá em realidade alguma coisa, cometimento, com ou sem advérbio, que a humanidade possa fazer para corrigir esse defeito, essa fealdade congénita que é o crescimento, a maturidade, a tendência procriadora, que é a puberdade, apenas suspensa e interrompida pela infância pré-pubescente? Será o Paraíso esse universo de sexualidade incestuosa e sem consequência dos hierofantes?

Característica 5.O dualismo despido de ambiguidades da nova geração de escritores europeus

A postura dualista dos escritores actuais reside fundamentalmente numa visão positiva da diferença que consiste em diluir as assimetrias e realçar as intercepções comuns ou características de aproximação na identidade de povos tão distintos como os que compõem a Europa, num primeiro plano, como entre continentes, num segundo plano que se quer global e globalizante.

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