Em Reconhecimento do Primaz Valor dos Finalmentes

Finalmente, além da famigerada crise, Portugal acompanha a Europa em qualquer coisa que, sendo supostamente uma constatação boa virará arrelia, isto é, na tendência de envelhecimento com sucesso garantido, quer pelo escore da baixa fecundidade como pelo aumento da longevidade, porquanto os seniores com mais de oitenta anos, espécimen rara nos meados do século passado, passarão a ser uma das maiores minorias na sociedade portuguesa, o que sem dúvida lhe facilitará a formação de um lobby poderoso, contando com mais de 450 mil recenseados em causa própria, mas cujo número deverá triplicar até 2060, altura em que se prevê serem uma parcela de 13% da população, o que resultará, evidentemente, na banalização e perda de comoção – portanto um considerável decréscimo na lamechice saloia e pacóvia do Zé-Povinho –, o facto de pessoas como José Saramago, Mário Soares, Eunice Muñoz, Manoel de Oliveira, José Hermano Saraiva, Ruy de Carvalho, Nella Maissa, Júlio Resende, Almeida Santos, Maria Barroso, Eduardo Lourenço, Vitorino de Almeida, Odete Santos, Marcelo Rebelo de Sousa, Agustina Bessa-Luís, Maria de Lourdes Rodrigues e Bagão Félix serem motivo de notícia pela idade que têm e ainda se manterem no activo, embora não seja nada de qualidade aquilo que fazem, nem o seu provecto pensamento melhore minimamente o presente nacional e humano, assim como deixarão de poder preencher os buracos no macadame programático das vias de comunicação, quando a braços com a falta de assunto, facilitando que essa deslumbrante ideia de serem uns velhinhos que ainda dão muito bem conta do recado passe à história, como aliás eles também hão-de passar, mas sobretudo entender-se-á mais claramente o que significa para um geração o facto da sua predecessora se manter activa e inoportuna, atrasando a civilização para que se não sinta tão notoriamente ultrapassado pelo conhecimento e actualidade, esvaziando-lhe o gás dessa declarada intenção de continuar a fazer as mesmas travessuras magníficas e talentosas e geniais de que toda a gente fala mas ninguém usa, ninguém vê, ninguém lê, ninguém ouve, ninguém se serve, embora haja quem considere que isso tem uma gracinha especial, outros dirão, menos atreitos aos contágios das caganeirices maneiristas, piadinha arqueológica do anedotário universal, que pode vir a ser um excelente motivo para algumas famílias normais aparecerem nos écrans e parangonas, como prémio por os terem aturado tanto tempo, sem sequer se suicidarem nem sucumbirem ao stress, facilitando assim a imediata subida nos escores/rankings de audiência, ou venda ao público, de alguns dos órgãos de comunicação mais expeditos da nossa desalegre praça, de tão enegrecido empedrado à portuguesa.
Até porque o Finalmente Morreu Fulano Tal pode tornar-se o título mais frequentemente usado e recorrente na garantia de chamar a atenção geral, coisinha menos que original para quem tem assistido paulatinamente às aventuras dos Simpsons amarelos, cuja icterícia mental se propaga tão eficientemente como a malária, deng e leishmaniose nos pântanos globais, podendo este título passar a slogan político e indicativo dos principais blocos noticiosos (telejornais, jornais e noticiários), prima donna dos grupos de merceeiros e multimédia continentais, com garantida exportação para África, Américas e Ásia nos planos éco-colonialistas das TIC de sexta geração elaborados por copy past em retiros ultramodernos como freeports do ocultismo regular inglês e offshores em Madeiras paradisíacas de forte crescimento e proliferação infiscal, a fim de melhor captar a atenção das famílias ensimesmadas e distraídas com os acepipes enlatados ou acabamentos fumegantes dos aromáticos pré-cozinhados, ainda com rótulo de promoção da caridosa e beneplácita cadeia de hipermercados, tão oportuna e conveniente como a fome de cada um, dizia, título ou indicativo, capaz e suficiente de nos captar a atenção nas horas das refeições, esses momentos familiares excelsamente propícios às bombas políticas, boatos difamatórios e contundentes, anúncios de crise, prisão preventiva, comunicados de imprensa, discursos à nação e breefings de última hora, porquanto essas novidades o já não sejam nem suspendam ninguém dos quadradinhos mágicos, que era o modo mais eficaz de comer e calar que a democracia vigente inventou para nos fazer o ninho detrás da orelha, alcançar o céu (da boca) ou mergulhar na esperança dum sarapatel bem condimentado, alvitrando quanto a vida pode mudar, e que por mais infelizes que sejamos não nos podemos queixar, pois neste mundo ainda há muita coisa para além dos comezinhos vociferados das promulgações polémicas, das mensagens ecuménicas de profanidade relativa, dos conselhos patriarcais para a evitação de sarilhos, coisa que aliás os seus progenitores não ouviram, pois, se o tivessem feito eram, agora, de Dos Rostos ao Landal, duas parcelas do território nacional orgulhosas dos seus filhos. Assim, embora o possam ser por alguns deles, o que é certo é que nunca o poderão ser acerca de todos, visto haver um sobre quem recaia a maior vergonha que há no mundo: a de brincar com as fezes dos demais.
Isto é, a expressão popular de nem o pai morre, nem a gente almoça ganhará novo e superiormente expressivo sentido, maior pujança semântica, obrigando-nos a reconhecer definitivamente quanto um povo pode deveras ser sábio, sobretudo nas sentenças, ditados e provérbios que cria, precisamente por os tornar evidentes e indesmentíveis, não obstante em alguns a acutilância e excelência divinatória nos escape esporadicamente, mas lá vem aquele dia inegável em que não falham, batem de frente na nuca do nosso entendimento, se fazem luz vista claramente vista, e como um simples, convicto e convincente "vai chover" que não é prà'gora, e eis senão quando numa bela manhã em que nada o fazia prever, ao abrirmos a janela, levamos com a poalha nevoenta nas ventas, que nos arrepia que nem constatação sobrenatural, nos eriça os desagrados, embacia os tutanos, deveras ressequidos por não lhe acertarmos o passo e fulgor com o clima, alterado que está, obrigando-nos, finalmente, a enfiar as galochas se queremos ir à garagem pensar as rolas ou ir ao lugar da esquina comprar agriões para acompanhar a farinheira assada que destináramos como refeição principal do dia.
Caso para afirmar que o ditado curdo kem bijî, kel bijî (vive pouco mas vive quente, ou melhor dito, intensamente) virou treta de aliviar terrorismos breves, coisa de convencer quem ainda conta poucos anos, ainda acredita em sonhos e intenções benfazejas,empresta à realidade os semáforos de uma navegação sempre pronta a confundir fantasias com objectivos.

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