O Grande Amor de Jane Eyre

O Grande Amor de Jane Eyre
Charlotte Brontë

Tradução de Leyguarda Ferreira
Edição Romano Torres – Lisboa, 1965

Eis um livro sobre o qual não vou adiantar qualquer comentário, visto ele ter "sofrido" já várias edições (e traduções) em português, das quais, esta deve ser a primeira ou uma das primeiras, além de ter igualmente sido "vítima" de adaptação a filme e série televisiva, ainda que em produção da BBC, coisa séria e de monta, se dirá, embora que pouco séria na montagem, sob o homónimo original de Jane Eyre. Mas sobretudo, e principalmente, porque nela está inserido um texto de Gentil Marques, em jeito de prefácio, a que não resisto à transcrição, por ser um documento de enorme clareza para ajudar a compreender, tanto a obra como a sua autora, tanto a época, a estética e a sociedade que lhe subjazem, além de romper, sem a mínima leviandade, com os cânones da crítica actual, não só pela frugalidade e fazer-de-conta que enferma, como também insatisfação de caldo verde aguado e sem conduto com que nos deixa. Uma crítica de copy pastiche a navegar no oceano dos lugares comuns que, tal como os modelos de horóscopos de revista são passíveis de ser aplicados a qualquer pessoa dando sempre certo, pode igualmente ser aplicada a qualquer livro, independentemente de o ter lido ou não, afirmar por verdadeiro algo que é também verdadeiro para um milhão de outros com romances milionariamente diferentes, e ninguém notar isso.

Breve Ensaio Sobre a Vida e Obra de Charlotte Brontë
por
Gentil Marques

1 – Num certo dia de 1847 surgiu nas vitrinas das livrarias inglesas um romance estranho. Intitulava-se «Jane Eyre». O seu autor assinava Currer Bell. Na primeira página trazia uma entusiástica dedicatória ao famoso W. M. Thackeray.
Começou assim, precisamente, um dos mais curiosos e dos mais fascinantes mistérios literários de todos os tempos...

2 – Quem era Currer Bell? Ninguém o sabia – nem o próprio editor.
E contudo o romance ia conquistando, aos poucos, um interesse deveras invulgar. Tratava-se de uma obra de verdadeira análise humana. Os leitores, habituados aos rendilhados de prosa da época, espantaram-se sinceramente com a ousadia do autor desse livro. «Jane Eyre» valia, de facto, como um romance desassombrado de realismo comovente e de crítica oportuna. Nas suas páginas passava, sem dúvida, um reflexo da própria vida – com o seu cortejo de misérias e de grandezas, de virtudes e defeitos, de bem e de mal...
E, então, não só o público ledor mas também os próprios críticos e até mesmo os literatos se entregaram à tarefa de descobrir esse autor novo e desconhecido que tão ousadamente vinha abrir novos caminhos ao estilo da literatura inglesa.
Não foi nada fácil chegarem a um resultado positivo. Currer Bell continuava na sombra, como que desfrutando o alto interesse criado em seu redor.
E somente um ano depois – o editor conseguiu solucionar o mistério. Mas a solução deixou muita gente de boca aberta...

3 – Porque afinal de contas – Curer Bell era apenas um pseudónimo. O pseudónimo de uma jovem...
Havia razão, decerto, para o espanto dos leitores e dos críticos e dos literatos. Podiam lá pensar que uma rapariga, filha de boas famílias, se atrevesse a publicar uma obra tão revolucionária, no estilo, e, sobretudo, tão genuinamente humana?
Porém – a verdade era essa, e só essa! Currer Bell representava unicamente o pseudónimo literário de Charlotte Brontë...
E quem era Charlotte Brontë?

4 – Nasceu em Thornton, a 21 de Abril de 1816. Filha do reverendo Patrick Brontë e de Maria Branwell, tinha mais cinco irmãos, Mary, Elizabeth, Patrick, Emily e Anne.
Em 1820, a família instalara-se no presbitério de Haworth – no mesmo edifício onde hoje existe o já famoso Museu Brontë.
Mas, então, nesses primeiros de estadia – Haworth representou para Charlotte mais do que um pesadelo vivido, quase a própria imagem do inferno na terra.
Aí morreu sua mãe. Aí morreram, quatro anos depois, as suas duas irmãs mais velhas, Mary e Elizabeth, ambas vítimas de uma tuberculose insaciável.
E ficaram assim somente as três irmãs Brontë – Charlotte, Emily e Anne – suportando sobre os ombros frágeis a doença do pais e as impertinências do irmão.
Por causa deste, Charlotte e Anne acabaram por aceitar empregos como preceptoras e governantas. E felizmente que o fizeram. Felizmente, porque da experiência vivida por elas resultaram algumas das obras-primas da literatura mundial!

5 – Foi em fins de 1845 que as três irmãs resolveram tentar, pela primeira vez, o juízo da opinião pública. E publicaram uma antologia de poemas, assinados com os pseudónimos de Currer, Ellis e Anton Bell. Mas o livro passou quase despercebido...
Corajosamente, elas resistiram ao fracasso. Sobretudo, Charlotte, a mais enérgica das três. Queriam ser escritoras – e seriam escritoras, custasse o que custasse. Não se poupavam a sacrifícios para que o irmão se tornasse um grande pintor. Pois também não se poupariam para alcançar a meta dourada dos seus sonhos.
Da estadia na Bélgica, no Pensionato Hèger, Charlotte trouxera uma viva e dolorosa recordação: o seu amor pelo senhor Hèger, director do pensionato. E daí nasceu o entrecho do seu romance «O Professor».
Entretanto, Emily, a irmã romântica e sonhadora, misturava a realidade e o sobrenatural no seu empolgante «Monte dos Vendavais». E Anne Brontë com as esperanças e as desilusões da sua própria existência a história singular de «Miss Grey».
Porém – os três romances tinham contra eles a incompreensão dos editores. Várias vezes apresentados para edição – foram recusados outras tantas.
Era um novo e mais terrível fracasso – mas nem esse, também, as fez desistir!

6 – Para o temperamento aguerrido de Charlotte, esses desaires só lhe trouxeram estímulos de coragem. Foi então que tentou a sorte com um seu outro romance, «Jane Eyre», escrito igualmente com um pouco da sua própria vida e da vida das suas irmãs.
Chegara, finalmente, a grande hora. Um editor leu o livro e gostou. O volume saiu a público. «Jane Eyre» por Currer Bell. De mansinho, o triunfo veio bater à porta das irmãs Brontë...

7 – Todavia, a sombra da fatalidade não lhes largava a porta. Enquanto Emily, no desespero de amores impossíveis, sonhava com «um cavaleiro negro» que a viria buscar, e Anne, flor delicada e campestre, não sabia resistir às intempéries do tempo – o irmão Patrick, semi-louco, semi-bêbedo, semi-génio, partia para um Mundo melhor.
Então, como se fosse um sinal, o grupo começou a reduzir-se, a desfazer-se. A seguir a Patrick, desapareceu Emily, levada decerto por um dos seus sonhos. E depois, Anne...
Charlotte ficou sozinha em frente da vida. Sozinha. Só os livros a poderiam salvar. E salvaram-na, na verdade. Das suas mãos, saíram mais três pequenas obras-primas: «Vilette», «Shirley» e a edição definitiva de «O Professor», já completamente remodelada.

8 – Acabou por casar. Por casar com um homem de quem Emily gostara e que, por sua vez, sempre gostara de Charlotte.
Ele chamava-se Arthur Nicholls e viera para Haworth a fim de ajudar o pai Brontë nos inúmeros afazeres do presbitério.
Estranho romance de amor unira essas: Emily, Charlotte e Arthur. De tal modo que certo dia, ao ler os manuscritos de «Jane Eyre» e do «Monte dos Vendavais», Patrick gritara bem alto a sua descoberta:
– Vocês, as duas, amam o mesmo homem!
Talvez só nesse momento tivesse compreendido a terrível verdade. Mas, de qualquer modo, passaram-se anos antes que a verdade se encontrasse a si mesma. De facto, Emily apaixonara-se por Nicholls, Nicholls apaixonara-se por Charlotte. E Charlotte julgava que Nicholls amava Emily...
Quando um dia, finalmente, as suas mãos e os seus corações se uniram para sempre – aos ouvidos de Charlotte devem ter soado, com certeza, aquelas palavras que Emily escrevera no «Monte dos Vendavais»:
«
Ninguém deve imaginar que tem um sono inquieto. O amor virá aquietar-lhe a alma.»
Ou então as palavras que ela própria confessara na boca de Jane Eyre:
«
Que nunca sejas um instrumento de morte para o ser que mais ames no mundo».

9 – Dizem certos críticos – e nós estamos de acordo com eles – que «Jane Eyre» é o mais autobiográfico dos livros de Charlotte Brontë. E, também, o mais sentido.
Por exemplo: a figura magnífica de Saint-John Rivers deve ter sido inspirada por Henry Nusser, o primeiro grande pretendente ao coração de Charlotte. Os retratos de Diana e de Mary têm forçosamente como modelos as figuras de Emily e de Anne Brontë. E a própria casa dos Rivers não é mais do que a reprodução exacta do presbitério de Haworth...
Mas, sobretudo, o que salta à vista de qualquer estudioso do romance de Charlotte Brontë – é a semelhança espantosa entre a autora e a protagonista. Mais do que semelhança – total identidade de carácter.
Por isso mesmo, talvez – a obra conseguiu despertar tal interesse à sua volta. Continha um depoimento vivo, humano, sincero. Era o testemunho leal de alguém que vivera, sofrera e amara. De alguém que confessava em público as suas fraquezas e as suas revoltas. De alguém que tinha uma história comovente e impressionante.

10 – E, acima de tudo, a rebelião contra os padrões estabelecidos pela literatura inglesa. Até então – as heroínas dos romances eram todas talhadas pelo molde clássico de cativar os leitores pela sua beleza, pela sua aristocracia, pelo seu ambiente familiar inacessível aos leitores.
Pois, muito bem, a heroína de «Jane Eyre» – nem era bonita, nem tinha sangue azul nas veias, tratava-se de uma rapariga banal, filha de gente pobre, vivendo quase na intimidade dos próprios leitores.

11 – E agora – a propósito – permitam-nos uma observação meramente pessoal: estamos em acreditar que a grande base para o êxito universal de «Jane Eyre» foi precisamente a aceitação que encontrou por parte das leitoras. Sim, das leitoras! E porquê? Porque todas as mulheres sem beleza e sem fortuna viram na aventura e no amor e na felicidade de «Jane Eyre» – o eco dos seus sonhos mais íntimos.
Quanto a nós – foram elas, principalmente, que lançaram o romance, como brado de emancipação, para os tempos vindouros. E são elas, ainda, estamos certos, que mantêm hoje a celebridade da obra de Charlotte Brontë. E serão elas, afinal de contas – que não mais deixarão apagar-se a projecção humana e social de «Jane Eyre».

12 – Repetimos: a projecção humana e social. Humana – porque contém, por assim dizer, a odisseia física e moral de uma pobre rapariga, na sua luta de existência. Social – porque reflecte naturalmente os erros, as imperfeições – e também as virtudes – de certos meios que são de sempre. Aliás – Charlotte Brontë teve a seu favor esta grande força: molhou a sua pena na verdade. Foi com a verdade que ela escreveu este magistral e inolvidável volume que se intitula na edição portuguesa: «O Grande Amor de Jane Eyre». Um nome e um símbolo. Jane Eyre. Como ela própria confessa: «Eu digo simplesmente a verdade».

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Herbert Read - A Filosofia da Arte Moderna

Álvaro de Campos: apenas mais um heterónimo de Fernando Pessoa?

Cantata de Dido