A Rabaça e o Agrião
"Uma meada, que se saiba, tem sempre duas pontas."
Carlos de Oliveira, in Casa nas Dunas (p. 72)
Normalmente as minhas investidas na horticultura, ou visitas à horta, quando ainda achava que o trabalho era uma brincadeira divertida, coisa comum a quem cresce e nem nota, eram feitas com o meu avô paterno ou o meu tio Garranchinho, e terminavam quase sempre com um lacónico «sai daí, ventas de penico!» mais ou menos elucidativo da qualidade da acção desenvolvida durante a estadia entre as hortaliças, do posto em que me amesendara ou do poleiro em que me instalara para melhor dirigir as operações. Se a lembradura não carecia de gravidade suplementar nem orçava danos às novidades e mimos de época, então o respectivo «sai daí» tornava-se coisa fina de cozedura apurada para o intelecto em subtilidade, na brandura dos apodos, e transformava-se num «sai daí, ventas de abrunho!» cuja doçura ainda reflectia ocasionais destemperos, mas já sem apontar para solturas de terrível desfecho. Porém, a que mais impressão causava, pela pujança da imagem, e a que só o simples imaginar causava, provocava uma dor insuportável, pior que antevisões do inferno a que certamente iria parar se não fizesse, ou não parasse de fazer, isto ou aquilo a que a minha tia Inês não descortinava mérito algum, era o «Ah, malandro, que esgarro-te uma perna da outra!!...» com que o meu homónimo avô punha termo a qualquer pendência, ou celeuma, que entre ambos se levantasse por mor de pensamentos e acções menos consentâneas como seu modo de ver e avaliar a realidade comum. A diligência não era para tanto, está bom de crer, e sempre suspeitei de exagerada dramatização dos resultados, todavia perdia invariavelmente a lucidez de análise e julgamento, mal sentia serem passíveis de separação duas peças tão queridas ao meu corpo, precisamente num encaixe e região por demais preciosas, frequentemente acarinhadas por mim, como pelas filhas dos caseiros que assim demonstravam, não obstante serem muito novas para funções próprias a estremecimentos superiores, possuírem já um talento especial e inato para manuseamentos miraculosos. Portanto, desnecessário é dizer que o «ah, malandro: esgarro-te uma perna da outra!», quer viesse acompanhado com o salientar encarniçado das veias do pescoço como do mostrar apoplético do branco ocular, ainda não tinha sido acabado de proferir já estava a fazer efeito, doendo-me cruelmente só de pensá-lo, mesmo que o reportasse para o universo das figuras de estilo deveras inviáveis e obscuras.
(Continua amanhã)
Carlos de Oliveira, in Casa nas Dunas (p. 72)
Normalmente as minhas investidas na horticultura, ou visitas à horta, quando ainda achava que o trabalho era uma brincadeira divertida, coisa comum a quem cresce e nem nota, eram feitas com o meu avô paterno ou o meu tio Garranchinho, e terminavam quase sempre com um lacónico «sai daí, ventas de penico!» mais ou menos elucidativo da qualidade da acção desenvolvida durante a estadia entre as hortaliças, do posto em que me amesendara ou do poleiro em que me instalara para melhor dirigir as operações. Se a lembradura não carecia de gravidade suplementar nem orçava danos às novidades e mimos de época, então o respectivo «sai daí» tornava-se coisa fina de cozedura apurada para o intelecto em subtilidade, na brandura dos apodos, e transformava-se num «sai daí, ventas de abrunho!» cuja doçura ainda reflectia ocasionais destemperos, mas já sem apontar para solturas de terrível desfecho. Porém, a que mais impressão causava, pela pujança da imagem, e a que só o simples imaginar causava, provocava uma dor insuportável, pior que antevisões do inferno a que certamente iria parar se não fizesse, ou não parasse de fazer, isto ou aquilo a que a minha tia Inês não descortinava mérito algum, era o «Ah, malandro, que esgarro-te uma perna da outra!!...» com que o meu homónimo avô punha termo a qualquer pendência, ou celeuma, que entre ambos se levantasse por mor de pensamentos e acções menos consentâneas como seu modo de ver e avaliar a realidade comum. A diligência não era para tanto, está bom de crer, e sempre suspeitei de exagerada dramatização dos resultados, todavia perdia invariavelmente a lucidez de análise e julgamento, mal sentia serem passíveis de separação duas peças tão queridas ao meu corpo, precisamente num encaixe e região por demais preciosas, frequentemente acarinhadas por mim, como pelas filhas dos caseiros que assim demonstravam, não obstante serem muito novas para funções próprias a estremecimentos superiores, possuírem já um talento especial e inato para manuseamentos miraculosos. Portanto, desnecessário é dizer que o «ah, malandro: esgarro-te uma perna da outra!», quer viesse acompanhado com o salientar encarniçado das veias do pescoço como do mostrar apoplético do branco ocular, ainda não tinha sido acabado de proferir já estava a fazer efeito, doendo-me cruelmente só de pensá-lo, mesmo que o reportasse para o universo das figuras de estilo deveras inviáveis e obscuras.
(Continua amanhã)
Comentários