VOO ININTERRUPTO, a propósito de poema de MARILU FAGUNDES




VOO ININTERRUPTO 

Com a frugalidade estoica dos momentos heroicos, Marilu Gonçalves Fagundes (MF) compartilhou connosco um poema completo, de apenas dois versos, é certo, mas que nunca poderá ser considerado um epitáfio, que seria um fragmento hiperbolizado de qualquer existência que atingira o definitivo termo, numa sinédoque em trânsito, ou pleno voo, de quem dá voz a uma pena, não a da dor, não a do fado, não a do lamento, não a do naufrágio, não a da compaixão, não a da culpa e do remorso, não a do choro carpideiro, mas a pluma branca e imaculada da escrita, e que, despegada, solta, exilada e carecendo de vida e significados próprios, visíveis, efetivos, eficazes, determinados e suficientes, é, todavia, além de parte elementar de um todo, seja ele corpo, ave, organismo, instituição, clã, tribo, grémio, sociedade, povo, estandarte, símbolo, voz, de gente mas, também, quiçá de rua, bairro, clube, distrito, cidade, município, região, geração, arquipélago, nação, continente, globo, constelação, galáxia, ou tão-só unidade de expressão, título de representação ou porta-voz de dialeto, língua, género literário e sigla de teoria existencial, a que não satisfaz a simples exposição da ideia, do enunciado poético, ou da sentença estético-moral, e antes nos interroga... Viver é pertencer a um todo, querer o que ele quer, amar como e quando ele ama, em que pugnar, pelejar, criar, voar, por ele, é igualmente fazê-lo por si mesmo, ou por si mesma, pena sendo. 

Enquanto fiz parte de um organismo vivo, vivi; logo, cumpri a função inerente à minha natureza – amei. Estive acoplada e fui sangue do mesmo sangue, aqueci, elevei, revesti, abracei, cuidei e oxigenei quem disso dependia para seguir em frente em suas travessias e aventuras; depois, desligada da tutela de meu ser, solta por qualquer motivo, e em queda pelo firmamento azul, voando suspensa pelo paraquedas formado por dois versos, praticando asa delta ou parapent, nada mais me resta do que ser metáfora, coisa que significa algo que está fora de si, que a expande ou restringe, conforme os universos que cruza, os buracos negros em que se afunda ou os ideais a que se eleva. Na melhor das hipóteses, outra ave, com voo e existência mais rasteira, me tomará no bico para atapetar o seu ninho, ou aterrarei num canto de jardim onde uma criança me pegará para ser parte do diadema que está a fazer, ou me afiará em bico para escrever num pergaminho intemporal, ou sua mãe me molhará em mercurocromo para lhe pintalgar os arranhões; mas, seja como for, aconteça o que acontecer, serei instante em movimento perene, ininterrupto, cuja prova prima facie, não fora a poesia, o arquétipo, o símbolo, a imagem, o ícone, teria o irremediável desfecho das folhas inanimadas que somente regressam à vida depois de se terem transformado em húmus. 

Porque a poesia suspende o momento. É o seu detalhe, o pormenor, a fatia cristalizada, que o traduzirá para a língua de cada qual que intente olhá-lo, vê-lo, percebê-lo, identificar-se nele (no original ou sob tradução que, literalmente, significa traição). Mas sejamos francos: essa pluma, esse ser branco a pairar, a vogar, no azul do cosmos alguma vez tocará o solo? Hummm... Creio que Ícaro (e Zenão) anda por perto... E ela, tão abruptamente quieta, deve estar a esperá-lo, tal e qual a poesia, que mantém os sonhos da humanidade a sobrevoar céus e oceanos...  Sempre a cair, mas sem nunca aterrarem, perderem sua natureza astral e humana.
Obrigado por no-lo lembrar desta ímpar forma, minha amiga _/|\_ Namastê _/|\_  
https://www.facebook.com/PoesiasDaNaturezaDeMariluGoncalvesFagundes/photos/a.440340856010035.113052.440202506023870/1126941660683281/?type=3&pnref=story  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Herbert Read - A Filosofia da Arte Moderna

Cantata de Dido

Álvaro de Campos: apenas mais um heterónimo de Fernando Pessoa?