Deitar-me-ei em casa e fingirei estar doente

TESES EM CONDOMÍNIO FECHADO

6. Há diferenças entre escribalismo, literatura e propaganda

"Deitar-me-ei em casa
e fingirei estar doente.
Entram os vizinhos para me ver
e lá vem a minha amada com eles.
Ela fará os médicos supérfluos
pois entende bem o meu mal!"

(VI poema, do Papiro de Harris 500)

Em primeiro lugar, convém que se esclareça que escribalismo não tem nada, mas absolutamente nada, a ver com qualquer espécie de canibalismo e, muito menos, com as referências fundamentalistas dos escribas das sagradas escrituras, do livro dos livros, emparedado na sinonímia comum de Bíblia, tábua de acomodação discursiva para a fleumática dos profetas e dos semióticos guerreiros, dos esotéricos e dos monásticos. É sim o reduto teórico daqueles que através dos tempos usaram a escrita (cuneiforme, hieroglífica, hierática, ibérica ou silábica), nos mais diversos suportes (pedra, barro, madeira, ferro, papiro, tela, tecido de seda ou algodão, pergaminho, papel ou word electrónico) para expressar o diálogo, intercepção, conflito, fusão ou dispersão, que a sua voz interior experimentava no contacto com a sociedade, tanto para melhor se conhecer a si mesmo, como para se dar a conhecer aos seus semelhantes, ajudar a que estes melhorassem o conhecimento que de si tinham, ou dos demais, bem como a forma pela qual se implementaram partes essenciais da estrutura civil (e estatal) ou cognitiva de qualquer povo e país, desde os tempos egípcios antigos até hoje, relatando-se e, consigo, as particularidades do meio social em que viveram.

Além daquela maneira de revelação original que gere, modifica, analisa, expõe e avalia a verdade, ou universo de conjecturas supostas como tal, no âmago da sua opção discursiva e com que pejaram de pontualidades (sempre) subjectivas a universalidade humana: poética ou narrativa.

Nesse sentido o escribalismo é também uma fórmula eficaz para o escritor se afastar, se separar, se aboletar em condomínio fechado, onde não será permitida a entrada aos membros do clã dos críticos paroquianos do provincianismo que confundem arte com bosta moral, que normalmente se debruçam sobre a literatura mas são marginais a ela, e em seus excelsos canudismos a enrolam num emaranhado de rebuscados conceitos (aquilo que as cabeleireiras denominam de permanente) estruturais, camisas de forças com que tentam manietar e domar a livre criação dos escribas, numa panóplia de fundamentos adversos às definições não belicosas de literatura, ou atribuindo-lhe motivações, funcionalidades e préstimos que lhe são especialmente alheios, normalmente especulativos e afectos àquilo que chamam correntes ou doutrinas estéticas, mas que mais não é do que um subtil artifício político e de propaganda na tentativa de obrigar determinados escritores a enfileirarem no batalhão dos seus soldados, raposinhos adoradores do chumbo que se lhes cravou sob a pele após o tiro crítico, alinhados correligionários do seu bandeirismo artístico, adeptos fervorosos do quem não é por mim é contra mim, que tanto prejudicou a literatura e seus intérpretes ao longo dos tempos, dizendo-lhe definitivamente que basta de arrazoados simiescos de quem é falho de talento para criar e se vinga apreciando, qualificando, envenenando e torcendo os textos literários com o pretexto da sua divulgação, pois aqueles que realmente fazem literatura são suficientes para além da criticarem, promoverem e divulgarem sem as bastardias dos arruaceiros da praça pública, legendando cada crítica sua com o epitáfio molecular de
«Parabéns. Ganhaste... Alguém perdeu.
Só que desta vez não fui eu!»


Dado ser inegavelmente fantástico o prazer que algumas pessoas sentem em elogiar livros que não prestam de autores tão medíocres, cujas obras não passam de meros palimpsestos mal assimilados e pior digeridos, só pela esperança de que com isso consigam arreliar alguém. Não esclarecem os méritos seja do que for, a não ser que com eles possam denegrir outrem.

Portanto, das duas, uma: ou são tão aparelhadas de visão como as mulas de puxar carroça, em que as palas do cabrestão as não deixam ver para os lados nem para trás, tendo que fantasiar enredos que lá poderiam estar mas quase nunca estão; ou o seu empenhamento em fazer má figura é tanto, que não se importam de correr qualquer risco para o conseguir.

Admitamos a melhor das hipóteses, a segunda, que é a menos perversa das duas e se apresenta com alguma dignidade e honestidade naif, embora ambas sejam características de quem está deficientemente formado, atrofiado moral e muito mal intencionado em literatura, com o fito de compensá-la pela coragem demonstrada, acerrimamente cristã, feudal, de nobre cruzada contra os infiéis, fundamental, missionária, kamikaze ou de suicida bombista, de quem morre por autocrucificação para salvar a sua tribo, porquanto seja uma atitude primária é também falha de invenção esquizofrénica ou paranóica, logo igualmente destorcida da realidade mas não tão insana quanto a primeira. O que, diga-se para abono da verdade e salvaguarda da sanidade estética ou justificação condigna ao seu papel socializador, não é, nunca foi e jamais será literatura, nem sequer jornalismo ou crítica literária, antes abnegação pura, cujo mérito, a tê-lo se esforçadamente o quisermos encontrar, se pode atribuir ao âmbito arturiano da busca do Santo Graal, e da esotérica defesa da Terra Santa e Santo Sepulcro com que o esclavagismo medieval e religioso se apetrechou para vencer os seus demónios interiores e aquilo que denominou de barbárie exterior.

Há assim que discernir entre o que é literário, então matéria e reflexo de uma técnica que se prende exclusivamente ao modo de produção de pensamento e ideias através do exímio tratamento da palavra, depuração silábica e metamorfose lexical, e o que é indubitavelmente propaganda do eu, uso da palavra para expressar uma teoria de vida, uma cosmogonia ou ideologia, onde alinham simultaneamente muitos fenómenos da polissemia, da subjectividade narcísica e condicional do niilismo, como diversos recursos escolásticos, de efeitos florísticos e retóricos, ou de embelezamentos barrocos da frase, da estrofe e do parágrafo, também por alguns erroneamente apelidado de estilo. Porque o corpo, visto como motivo estético, promotor de literatura, qualquer que ele seja, só pode ser anatomia (animal, vegetal, mineral) ou pornografia, se dele seccionarmos partes, pudendas ou não, se delas fizermos grandes planos descritivos, fixarmos obsessivamente nelas a narrativa (ou poética), quer ele pertença ao eu que escreve ou ao tu a quem este se supõe dirigir-se, o que faz dele veículo de mensagem mas não literatura, já que se não pode considerar uma voz de si, palavra surgida da moldagem na expressividade própria e significado ímpar, mas uma aplicação ou adaptação para que diga a nossa intenção determinada, aquela que sustém e motiva esse escrever. Ou enunciado. Ou exposição. Ou tese que se quer confirmar e demonstrar argumentando.

O escriba está, é, emite-se no que produz. O propagandista demite-se, utiliza-se para se vender ou àquilo que apregoa. E essa não pode ser somente uma diferença residual insignificante: é toda a essência opcional entre escribalismo e diletantismo intelectual, como costumava referir Eça de Queiroz.

Ou seja, tal como é visível no VI poema do Papiro de Harris, finge-se uma doença para demonstrar uma paixão, mas não se finge uma paixão para esconder uma doença. Não embeleza a realidade mas antes se lhe entrega e lhe sucumbe, ainda que para isso tenha que ficcionar (ou mentir). E isto nunca serão, torça-se o que se torcer, duas vertentes, perspectivas da mesma definição de literatura. Pois não há como meter duas coisas tão diferentes no mesmo cabaz, a não ser que o crítico e a pessoa seja míope para uma e para outra, e nas duas incapaz. Nunca. Ok?
Por outro lado, o gesto artesanal da escrita enquanto actividade sem a qual o escriba nunca poderia ser quem deveras é, quer do ponto de vista da resolução do seu conflito, quer do da forma como ele se reflecte na realidade que o circunda ou na visão que porventura dela tenha, deve – ou pode, conforme estejamos do lado operativo, criador, de agente, ou do lado crítico, do observador e do usufruto do bem cultural –, ser efectivamente visível na maneira de agilizar e encadear o discurso, independentemente da opção que tomou como definitiva, acaso o tenha feito, considerando que para muitos isso não tenha sido assim tão fácil nem claro, a fim de estabelecer nele, como em si mesmo, a "utopia" do equilíbrio genérico. Porque nunca é suficiente matar o outro (poeta ou narrador) que no íntimo habita para se conseguir a definição pacificadora em que ciranda a utópica harmonia, nem tampouco revelar as regras instituídas acerca do pacto unificador, se o houve, e que não raras vezes são confundidas já como literatura, ou da enunciação das quais podem resultar textos muito próximos daquilo a que chamamos literários, genuínos e eivados de quase todos os desvios e características desses textos, pois não nunca será totalmente líquido que regras são essas que vigoram, se imperam em ambos os sentidos, nem que tipo de influência exercem para engendrar essa convivência e coabitação possíveis, ainda para além dos limites do desejável. É igualmente necessário que o poeta reconheça o narrativo como testemunha essencial, ou vice-versa, e quase farol, margem de navegação à vista, em função do qual, enquanto resposta directa às exigências, expectativas e alinhamentos criteriosos, ele, o discurso eleito, o género escolhido, enfim a obra, o texto, se erige. O que, no fundo, equivale a reconhecer que um escriba, ao contrário do simples escritor, indiferentemente de ter optado por fazer poesia ou romance, faça o que fizer, o fará sempre sob a acutilante vigia, sageza, flexibilidade vocabular, destreza gramatical e insinuação oratória do outro. Porque é esse diálogo que os veicula e de cuja intensidade depende a justificação, generosidade, proliferação e fertilidade de uma obra. Incluindo o tamanho! A extensão e alcance!...

CHEONG-SAM: A Cabaia
Deolinda da Conceição
Instituto Cultural de Macau – 1995

A autora não é nova, o livro não é recente, o género não é original e a problemática milenar: as diferentes formas de se ser humano, principalmente mulher, numa sociedade patriarcal. Ou duas: a chinesa e a portuguesa.

E são contos, senhores; pequenas histórias, pequenos quadros, excelentes apontamentos do empalhamento social, da tecedura (trama) em ponto de cruz colonial, desse ver a ser-se visto a observar o que nos rodeia, cuja primeira edição é datada de 1956, que reflectem o ambiente multifacetado sino-português da época sob a perspectiva de quem o viveu e lhe assistiu simultaneamente. Falam sobretudo das preocupações e estádios do quotidiano feminino, cerzidos em malha limpa, escorreita, tricotada cuidadosamente em linguagem concisa e sucinta, mas emotiva, com meticulosa pormenorização de tipos e entrançado das sílabas, de alguém que vai bordando no papiro da alma os motivos da sua vida, para o registo da humanidade em tranches fatiadas de modos no tempo.

A espelhada visão de quem é duplamente colonizado, quer pelo ocidente (os sai iong cuai – demónios do ocidente, como eram conhecidos os europeus), como pelo oriente, sem que possa interferir mais nesse processo do que assistir-lhe, conviver conjugalmente com ele desconfiando acuidadamente não haverem muitos motivos para sublimá-lo, uma civilização que tem tanto de milenar quanto de primitiva e supersticiosa, terra de letrados, adivinhos e feiticeiras, cujo contacto com os estrangeiros se fez mais pela invasão do que pelo câmbio cultural, amuralhada na tradição, nos traumas de guerra, resultantes das experiência nipónica, inglesa ou portuguesa, e mesmo assim aceita o destino com humildade e obediência, bate cabeça aos seus deuses, os celebra com generosas oferendas e festejos de elevados colorido e duração. A China das mulheres reduzidas à sua missão familiar de mães e esposas, mais valorizadas pelo número de varões que dão ao seu senhor, que partilham com as demais mulheres que este desposou, do que pelos seus talentos, humanidade e consciência cívica, onde o casamento se estabelece como espécie de contrato de compra e venda através de dotes, se vêem garantia de cumprimento de promessas e vinganças, ou se matam para não trair os seus sentimentos, mas também se arrastam em desgraça esmolando, vítimas de fome como de difamação, de abandono ou consequência por terem tido a coragem de romper o ciclo de fados que pelas famílias lhe fora traçado: a china da civilização com elevado teor narcótico, na cultura das lanternas vermelhas e dos dragões, dos pagodes, bonzos, códigos de honra; das tríades, do chá, dos rituais, mitos, ópio, prosperidade e ostentação, obediência e gerontocracia; das sedas, dos cetins, das cabaias, dos jardins secretos, do jade, das óperas, das sombras, das tabuinhas e dos bambus; da trágica sorte dos desafortunados como das paisagens idílicas da terra da promissão e arquitecturas celestiais. Enfim, do fatalismo oriental como da beleza inocente, a porcelana sonhadora das adolescentes que aspiram à felicidade tendo por único veículo a paixão e o amor. Uma China genuinamente chinesa com gente dentro, tão profundamente igual e diferente a todo o mundo, no martírio quanto no privilégio.

Deolinda (do Carmo Salvado) da Conceição não é apenas mais uma escriba que resolveu pela prosa, pelo conto, a sua necessidade de expressar a "poética narrativa" que lhe ia na alma e no corpo de filha de macaense com europeu. Era também a secretária executiva e administrativa de jornal – o Notícias de Macau –, que dirigia a Página Feminina desse órgão de comunicação, que tinha por línguas além da portuguesa, a inglesa e diversos dialécticos chineses, casada em segundas núpcias com o chefe de redacção mas porta-voz da dupla fragilidade característica da mestiçagem genérica, de corpórea e cultural. Era o cruzamento de imensas possibilidades que soube fazer as suas escolhas sem nunca arrepiar caminho, e os seus contos pela minúcia dos pormenores, pelo escalpelizar dos sentimentos, pelo background em que se estampam as acções e (a)venturas, personagens e valores, são disso o magnífico exemplo, onde não há nenhum rebuscar de frases feitas, de clichés, de enquadramentos em correntes e ismos da estética literária da altura, mas sim o depoimento, o relato do escriba que fixava os acontecidos instantes de si e do meio onde vivia: a portugalidade fora da Barra.

Falecida um ano depois da edição do livro, visitou pela primeira vez a metrópole, designação dada então a Portugal continental, em 1955, ano anterior à publicação, editando-o aqui, sim, mas com capa de Bernardino Senna Fernandes, artista macaense, demonstrativo da tempera afirmativa da sua autenticidade mista, da presença de quem não arreda pé de ser quem é, e como foi desse condomínio que julgou, viu e descreveu o fenómeno humano, principalmente feminino. Aliás narrativas carregadas de experiência pessoal, de sentimentos íntimos, profundas dores e alegrias, transposição da sua vida como da alheia, tipicamente chinesa, onde o sangue e a geografia sentimental da escrita vigoram, imperam e se impõem signo de resistência e liberdade.

E não será essa a justa definição de eternidade? Aquele espaço-quando ímpio e sem lamechices, apenas acessível aos que transpõem a transparência do que são naquilo que fazem e dizem? Muito obrigado, Deolinda, pela concepção dessa alma que ainda perdura em cada conto...

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