Estórias e retratos da História

Conto IA Fábula do Indicador de Comandos

Tempos houve em que a acreditação de um homem, na praça pública, se fazia pela quantidade de burros e camelos que possuía (ou representava). Qualquer gaja boa podia valer, por exemplo, 20 camelos, e no entanto significar excelente negócio para o comprador, já que a sua aquisição certamente acarretaria, por arrasto e transferência de outros pastos, para o seu escore de propriedade e audiência, um elevado número de burros (e até de cavalos!), valorizando-lhe a herdade com subidas de densidade, variedade de malhagem, fixação de genótipos, que podiam chegar a 20% dos totais asininos nacionais, o que inconfundivelmente beneficiaria muitíssimo o comprador em publicidade e capacidade de negociação futura. Incluindo o levantar o preço de venda das suas criações e linha de montagem, com exportações de esperma e órgãos para transplante, clones, enlatados de conserva e enchidos científicos.

Principalmente se a gaja tivesse três tetas, personalidade avassaladora, sofrido violações, abortado quadrigémeos, actriz pornográfica ainda em muito bom estado, raptada, refém de terroristas ou assaltantes de bancos, ex-concubina de magnata ou pedófilo famoso, tivesse crescido sequestrada numa masmorra e amamentada por dragões insaciáveis. Que essas, sim essas, havia quem as pagasse com cem camelos e dez cavalos e ainda lucravam com o transacção, às vezes duplicando e triplicando as mais-valias, para gáudio das burricadas gerais, cáfilas, manadas e poder financeiro com expressão bolsista.

Certo que eram tempos consagrados pelas universidades, ciência, empresas de comércio e produção de tecnologia, à proliferação de asnos, não obstante o seu baixo valor individual, porquanto eram precisos cinco burros para pagar uma mula, duas mulas para um camelo, três camelos por um cavalo e dez cavalos por uma esposa com boa apresentação, ainda virgem (ou quase), personalidade catalisadora, óptima dicção e fluência em várias línguas, carteira de frequência em manicuras e saraus de arte & moda bem preenchida ou inscrição no protocolo dos ginásios e gineceus mais populares da urbe.

Por isso, tudo era feito em função do seu número, gosto, mentalidade, aplauso, procriação, felicidade, bem-parecer, moral e arrebatamento. Os homens sábios, determinados, audazes, empreendedores, competitivos, empresários de sucesso, chegaram mesmo a contratar escribas, pagos em cavalos das mais premiadas ou galardoadas coudelarias, cujo léxico e estrutura congnitiva melhor reflectissem, espelhassem, traduzissem as expectativas e anseios jumentinos, com o objectivo de dificultar a mudança de ferro, sua dispersão por prados e lezírias de charneca duvidosa, pastagens alheias, canais de flutuação e concorrência, directa ou indirectamente adversos aos adventos e missais dos seus patronos. O marketing e linhas gráficas ou/e de design, estudaram-nos em profundidade, instituíram-nos como bitola criativa, supra-sumo de excelência e ideal a atingir, auscultaram-lhe os pareceres, fizeram estatísticas, sondagens, tratados científicos acerca das suas tendências de zurro, características de habitat, necessidades fisiológicas individuais e de espécie, genealogias e migrações; produziram diversos a vedetas, deram-lhe carisma, grupos de fãs, ícones, bandeirinhas, formação e discurso enquadrado em universos semióticos e sinalética de eficácia indesmentível, bem como os cumularam de honrarias e comendas prestigiosas.

Enfim, não fossem estas terríveis saudades por tais eras, a prostração nostálgica em que me abato, eu nunca passaria tanto tempo a ver televisão... Mas assim, os remédios para a depressão e melancolia tão caros, as consultas de aconselhamento e terapia psicológica fora de orçamento, que me resta senão seguir as instruções dos manuais de comandos, para trazer para próximos os longínquos tempos, tornar-me o futuro Noé da arca? Aliás, como as profecias e escrituras, nos recomendam muito bem e a propósito: quem não pode caçar com cão, coça c'o dedo!

"Se a unha deixar...", acrescentam as teorias da moderna ciência, inovando a bem do rigor, da verdade e da irreverência que há-de (re)confirmar a tradição dos ditados, ditames e originalidade com que os céus da popularidade nos sagraram a espécie eleita.

Assim falou a mula da cooperativa à pequenada!

Conto II A Lenda do Provérbio Proverbial

Tal como da mula a graça lhe advém do coice, também o pior veneno dos cogumelos está nos fígados de quem os ingere.

Por cada vez que me deparo com a indigna crueldade de o dia ter apenas 24 horas, sinto-me terrivelmente burlado, defraudado, violentado, e comigo toda a humanidade, que não há destino que me subjugue e não lho faça também. Porque é que o tempo e a vida não existem na razão directa da nossa necessidade de viver? Somos uma espécie assim tão imerecedora do Paraíso e da Eternidade que até a linguiças cronológicas nos aperranhem o fado? Que mal fez a humana espécie ao Criador para Ele se vingar de nós limitando-nos o usufruir de um bem que nem coisa é, e por fartura é de borla – o tempo? Não havia outras maneiras de nos demonstrar a Sua omnipotência e superioridade? Bem...

Ireneu Passouvite, famoso alentejano a quem o tempo sempre escasseou, conhecido por andar rápido, o que é iníquo oxímoro que estigmatiza qualquer indivíduo, pior ainda que aquele do correr devagar, de ascendência belga, nascido nos alqueives da beira do Alqueiva, num dia assim-assim, confrontou-se pela primeiríssima vez com a morte quando se despistou nas azinhagas de Borba, ao volante do seu dois cavalos, máquina à época apreçada por 60 burros, mais coisa menos coisa, dependendo das oscilações da bolsa e custo do barril, baptizado com preceito arturiano de Roxinante, conforme era sabiamente identificado no grafite das portas, onde, em garrafais pop-arte o mecânico das tabuletas lhe afixara o designo. Quiçá em homenagem (ou desfeita, que o protocolo peninsular é basto e avezado neste género de equívocos...), a essoutro astronauta ibérico, piloto de jericos em segunda mão, que por trigo limpo assobiava repinocante acompanhado ao cavaquinho pelo desmascarador de gigantes que se disfarçavam de moinhos para melhor nos moer o juízo, lidador pela honra das dulcineias do reino, pelejador de causas justas com camisas largas, furadas na esgrima das traças, eis que o nosso herói Ireneu de louro celta e sardenta tez, visitava dia sim, dia sim, a sua conversada num monte tipicamente convicto, a que não faltava a choupana de rodapé azul nem a azinheira mendicante dos viçosos sonetos, onde se denúncia a exagerada gula de água aos chaparros de tão rala sombra, como rezam as floribelinas escrituras antigas.

Ora, cabeceou o navegante no regresso do namoro, por falta de sesta, e baldeou o faval numa curva a direito de quem vai aos tortulhos, cruzando o restolho na gáspia até afocinhar no trancão dum sobreiro com a cortiça tirada de fresco, o que não lhe almofadou nadica o estatelanço no secular madeiro, espécimen de "quercus" na glande e montado, de encarniçada derme com o nove cabalístico caiado nos trombis, de importância e valentia, orgulhoso da catalogação, por exibir o maior dos números da escala decimal, que nunca dali arredara pé desde que nascera, e não estava pelos ajustes com os ditames doutrinários dos 60 burros que lhe impunham a mobilidade e intentavam assim inverter o curso da história e tradição!

Portanto Ireneu se a ressonar vinha, mal acordou, de pronto adormeceu, resultado da violenta acometida entre as feras desses trancos e barrancos, a árvore e as bestas do Roxinante, cuja estocada lhe amolgou a chaparia, e deixou o condutor em lastimoso estado, de frontaria escaqueirada e bacia quebrada, ilíaco, sacro e cóccix enlatados compactamente, num molho fundido à pressão, sob a força dos milhares de anos com que a história aportou ao cais da civilização, fazendo-se testemunha privilegiada do conflito entre progresso e natureza. Valeu-lhe, ao caso, o estrondo do embate, que soou ainda para lá das encolhas da planície, dado o sossego e calmaria da hora, que desinquietou carraceiros, moscas e moscardos, mas principalmente espantou a Famel ao moiral, que retornava da vila onde se fora aviar de tinto e kenthukys, e não obstante o capacete sobre o boné, lhe permitiu ainda ouvir o estrepitado «pum!!!....», que o fez duvidar das qualidades VQRD do carrascão que bebera, se mistura de zurrapa teria ou não, e tendo-a que género seria ela, que o punha a ouvir «puns!!!...» num cu de judas daqueles sem vivalma à vista.

Atentou na poeira que estas coisas levantam sempre, e viu adiante, no meio-caminho entre o monte e a vila, a escultura surrealista que o sono de Ireneu esculpira na calada da tarde. Aproximou-se. Identificou o sinistrado e sacou do telemóvel para avisar a vizinha conversada do desmando, que acorreu logo, depois que comunicou aos socorrismos de serviço, tendo-lhe contudo chegado muito antes. Esbaforida e suada, mas lúcida como nunca, viu o que viu e a gente já sabe, abriu como pode, primeiro a boca em seguida a porta da viatura, malmente é claro, mas quanto bastasse para, de mãos nos quadris, esclarecer as dúvidas motivadoras do sucedido, sem minimamente desconfiar do desacordo do desacordado nomaradeiro ou sequer duvidar que ele a não pudesse ouvir, e arrefinfou-lhe de enfiada valente ensaboadela, que mulher séria se não tem ouvidos também nada obsta a que não tenha língua, de preferência com palmo: «Oh, Ireneu!! Mas eu não te disse, que aos tortulhos, se não fosses tu, ia eu???...»

O moiral de soslaio compungido, apenas abanou a cabeça pesaroso, enfatizando a legenda para o quadro, como quem repete estribilho em moda há muito cantada... «Mas estes janotas da cidade, nunca se acreditam das razões c'os da terra lhe dão!....», onde se notava choroso lamento, principalmente pelo pastoso arrastar de sílabas característico de quem muito lhe dá dó.

O que é verdade. Que isto de ir aos cogumelos é enganador, pois tem ciência e regras puras, que não é lá por os verem quietos e paradinhos, de cabaça ao léu ou de gurda-sol aberto, que a coisa se torna mais fácil e se pense que até a dormir se apanham... Sobretudo quando o tronco é grande e duro, que ninguém se espete nele, porque o melhor mesmo é pedir licença ao armário ou passar ao lado, que tal como diz o ditado, "Quem sem mexer o cu quer comprar, é com ele que depois vai pagar". O que quase todos os gestores da coisa pública bem sabem, embora inúmeras penas tenham sofrido para o aprender e decorado, uns com mais prazer e cuidado, que outros é claro, mas todos no comprimento da constituição e compenetrados da grossura da liça.

Os pequenos sorriram, enfim. Não bateram palmas, mas depois, mal parou de chover e enquanto se preparavam para soltar os cascos à desfilada no rectângulo húmido e escorregadio do relvado, num prado de louvres repleto, disseram uns aos outros que das mulas, até na graça vem coice, o que era a prova proverbial de que nem todos os provérbios seculares eram para esquecer depois das notas tidas e testes feitos.

Após o que a mula da cooperativa se recolheu aos seus aposentos, de onde, através da vidraça lhes observou os pinotes!

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