Fisgada certeira

Nocturnos Mensageiros


É muito caprichosa, a noite...
Tem mistérios inauditos.
E em cada luar que acoite
Brilhos pálidos e expeditos.

Às vezes, sei-o eu – e bem!...
Possui-nos através dum sorriso;
Através do recordar preciso,
De tanto desejarmos alguém.

A mim, acontece-me frequentemente...
E acordo a beijar os ares, além
De deitar a língua de fora, contente.
Porque vivi; e vivendo, vivi-te também!



A l m a
Manuel Alegre
(1995)

Paródia de formação é um típico cervantino de estilo, autêntico romance de cavalaria de quem atravessa a infância montado no cavalo de pau da família considerada, honrada, por bastos pergaminhos justificada, e generosa, do establishment provinciano. É aquele olhar distante sobre a guerra de 42-45, mas interessado, aproveitado politicamente pelos clientes da Loja, que fisicamente tanto é estabelecimento comercial e de convívio, como igualmente centro espiritual da república, ou da sua laicizidade maçónica e da resistência clandestina. Confirmação de como Quixote deambulou por cá deixando geração apreciada. E uma breve história da sonegada participação com os situacionistas do Manholas, aos botas de elástico e aos solas Ceilão, que iam sustentando o regime à custa do atraso e do medianismo supersticioso aldeão.

Romance numa só voz para o adolescer em Alma, reflecte contudo nela a expressão e peculiaridades das gerações de 50/60, assentes nos pilares da família, escola, loja e retouça com a natureza, também esta repartida por quantos elementos a compõem (rios, caça, pesca, pássaros, como natureza humana: política, esotérica, sexual, bélica, desportiva e relações de amizade), que perfizeram um homem e seus valores, implantando nele o respeito pelos demais, a necessidade de alterar a ordem, principalmente quando ela está errada, o apreço pela justiça, liberdade e democracia, sempre inspirada nos itens da solidariedade e coesão social para despeito da caridadezinha regimental e canasteira.

Embora raramente me convençam os textos literários dos rabequistas, sobretudo se saídos da filarmonia partidária e/ou ideológica, o que é certo é que esta novela não se atém a ser aquilo que parece. Daí que me sinta na obrigação de a ressaltar como excepção, considerando que o seu autor, além de poeta combatente, democrata de torna-viagem pelo 25-A depois de ter exercido significativa acção revolucionária no exílio, emprestando dedicação e voz a veículos de comunicação, nomeadamente na Rádio Argel, foi (quer dizer: é) também escribalista, conforme a definição de escribalismo que aqui se sustenta, não obstante o seu campo de ficção se estenda para lá da estrita conjugação narrativa, prolongando-se nele enquanto modo de intervenção social.

Porque excepção justificada, além de obra que carece de atenção cuidadosa e destacada, não obstante esse jeito de contrabandear deus e demais obscuridades relativas através da tonalidade dos provençais e gentis-homens que povoaram o universo cavalheiresco em contos, romances, cantigas e novelas, na formação de quase todos os aspirantes a principezinhos deserdados da monarquia, que alimentava a fadação com que as mães predestinavam seus filhos para arautos da esperança, anexando-lhe sempre a distinta marca do eleitos para missões superiores, nobres, semelhantes às que inspiraram os cavaleiros do ciclo arturiano, combatentes do bem e da justiça que, sob o pendão da cruz, defenderam o santo sepulcro ou se amuralharam em Malta, de onde demandaram o pronunciamento da uma nona ordem terrena.

Acima de tudo por ser Alma o lugar inicial para o cúmplice entrosamento na grande loja que é o mundo. Este e o outro, se o houver. Pois nunca o homem acontecerá neles por acaso. Que normalmente isso, a humanidade e humanismo que forjam o indivíduo, são atributos de pelejada conquista, frutos por poda tida nos anos antecedentes à formação académica, que aliás a prepararam, por mais completa e importante para a sobrevivência da pessoa que esta se venha a revelar vida fora. Há quem prefira usar o termo podar trocando-o pelo seu eufemismo de educar, na esperança de dar aquela pincelada de civilização em algo tão vegetativo, como o processo de aprendizagem; porém, em termos de Alma tal equivaleria a desvirtuar por ró-có-quismo maneirista a formação de qualquer personagem tão empenhadamente perto da natureza ancestral humanóide.

Portanto, este livro é a visão adulta, avaliada, perspectivada, parodiada de uma poda que resultou bem, prescindindo de enxertias extemporâneas a fim de manter entroncada a genealogia da geração que se empenhou em sobrevier ajustando a realidade aos seus ideais, promovendo e multiplicando as possibilidades de vida em liberdade aos seus vindouros, sob a interpretação de alguém que deveras lhe pertenceu, mas sempre, incluindo quando nela participou activamente, a viu, a observou, se lhe apresentou predestinadamente distanciado. Quem provavelmente melhor saberá os porquês de tal postura e atitude, anda à hora por paragens alheias ao mundo, e talvez se mantenha absorto falando de caça com entusiasmo ou apontando a mira a alguma lebre celestial ou perdiz astral, que se lhe levantem na frente, quiçá na companhia de Aquilino Ribeiro, que também se perdia acostumadamente nesse género de miragens calcorreando as fragas e serranias, sem receio de comprar a Alma com quaisquer cinco réis e gente.

Precisamente porque depois da Alma visitada mais fácil se torna compreender a estirpe dos homens que a edificaram de rústica pedra, a teceram nos vilares da transformação operativa, tal qual as terras do despertar fizeram e onde tudo o que nos acontece, em que participamos ou vemos, nos marca para sempre, de forma definitiva, balizado por datas inesquecíveis, interregnos de tempo a partir dos quais nunca mais voltámos a ser apenas "aquilo" que antes éramos.

Fisgada certeira


Aquele pedrada atirada à janela
Que partiu o vidro do meio,
Transtornou quem morava nela
A ponto de lhe tumescer o seio.

Três dias o mamilo lhe inchou.
Três noites lhe sentiu palpitações.
E quando ansiosa à mãe contou,
Esta apenas lhe disse serem sezões.

E assim andou semanas ensimesmada
Até que uma noite o vento nela entrou,
Trazendo consigo o rapaz da pedrada.
Mas ela nem um pouquinho se assustou...
Gemeu, contorceu-se, gritou – e ficou calada!


Estórias e retratos da história

Conto IV
– A parábola do V de Vitória

A minha eternidade pequena não é lá grande coisa. É certo que cada um tem a eternidade que merece, mas eu merecia melhor. Levanto-me todos os dias cedo – cedo! Que digo eu...? Cedíssimo! –, sou mal pago, alombo diariamente com os desquilates do patronato, e sempre que saio um tantinho antes do toque de finados não me livro sem levar roda de doidivanas, estroina, irresponsável e refractário. Se não fossem aquelas reuniõezinhas, ainda que raras, com os meus confrades, embora as mais das vezes esteja em desacordo com o que aí se diz, isto de vida não tinha nada e seria uma peeira pegada!

Por exemplo, na confraria do coice, afirmam, com acérrima frequência e redundância, que o burro é um animal literário por natureza. Ná! Não me convencem!... Aliás, essa qualidade dos peremptórios arrasta sempre marosca consigo. Um tal Platero, que o Ramón Jiménez elevou a nobel; outro que fez o sacrifício de transportar o soneto ao Sá-Carneiro, num caixão batendo em latas e aos pinotes; o da moleirinha no toque-toque do João de Deus, estrada fora; algum jumento de padre na arribação serrana da extrema-unção; o do Shrek e mais uns quantos, que se alambazam na retouça ibérica, a acompanhar aios de quixotes e arautos das esperanças de cortesãs, vá que não vá... Agora os mais, não me cheira! São asnares sem tirar nem pôr. Escarrachadinhos!

Literário mesmo, é o cavalo. Sei que pode parecer faccioso, estar a beneficiar a própria genealogia com a conjectura, porque é uma mula que o confessa. Mas juro que não: pileca seja eu!

Todavia, passo a explicar.
Vejamos: quem lida com toiros enraivecidos e lhe faz piruetas nos cornos? Quem se estampa em todas as cartas, desde as notificações judiciais às ridículas de amor? Quem domestica os gnr's por essas charnecas fora e os faz apear para urinar detrás da moita, envergonhados, inferiorizados perante a poça de espuma e polegadas da torneira daqueles que bucolicamente os transportam? Quem se caga na parada do dez de Junho, nas trombas de presidentes e generais? Quem sente no dorso os húmidos prazeres das virgens de lantejoulas e equilibristas de circo? Quem é perito em métricas de passo, trote e galope nas rimas do picadeiro? E exímio nas correntes de estilo das escolas de quitação? Quem se dá bem com deficientes? Quem acompanha com mulas de má porte e as torna amazonas ou princesas? Quem voa do Olimpo à Terra e serve de taxi aos deuses sempre que estes querem vir às maganas? Quem é o Pégaso frontispício dos modernistas? Quem puxa o trenó à bailarina e lhe ouve os lamentos de discriminação depois dos saraus aristocráticos? Quem é o motard da lezíria e esvoaça as crinas sem sombra de capacete nas correrias do todo-o-terreno? Quem com a mesma galhardia atura tanto índios como cowboys, talibans como cristãos, campinos como jograis? Se afoita nas pradarias das cobras e lagartos como nas liças de presbíteros e Viriatos? Quem cobre qualquer burra com igual esmero e resultado que nem égua fosse égua de passarela? Julgam que nasci por acaso ou geração espontânea?... Quem é que o Camilo José sela? E o já sinto do Eça? Ou assoma à desfilada no sangue das glandes dando-lhes a temulência própria para transformar crateras apagadas em autênticos vulcões de lava e grito, palavras ordinárias e corriqueiras em metáforas sublimes? Montaria sem ele é caçada; cortejo a que falte, romaria; e peregrinação, caminhada. É destes pormenores que ninguém se pode olvidar, nem deixar-se confundir pelos cascos, que se não fosse o V de cavalo, nenhuma aguardente chegava a brandy. Vá: toma!!...

Porque é esta letrinha que marca a diferença no caalo. E mais do que isso é a literatura? Desvio que dá ao erro a arrebatada perfeição do certo? Não é daí que advém a natureza artística do calo (experiência) que não se cala? Não é esse o V que põe o silêncio a dizer? Pois sem ele a literatura nunca chegaria a literária, e a narrativa ou a poético, simples reportagens, apontamentos, da história, da filosofia, ideologia, memórias descritivas, arrolamentos contabilísticos da variedade vocabular na conta-corrente do dia a dia e da gramática. E ecolalia, quando muito!...

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