Culpas Velhas

Velhas São as Culpadas Culpas


Foi há intermináveis páginas, tantas e quantas, que já mal me lembravam... Contudo, assim que constatei pelas notícias, que andavam a circular e cirandar por algumas bibliotecas públicas da nossa interioridade diversos contadores de histórias, espalhando, difundindo e contaminando bastas dezenas de criancinhas deste torrão caprichoso com o vírus da palavra lúdica, espevitei e espetei as orelhas, pus-me de atalaia e não pude conter-me de sábia indignação: «Olha, lá andam outra vez os adultos a lixar a vida aos mais pequenos! E para seu bem, formação e prazer, dizem eles», como me disseram a mim, sempre que se dispunham a enfiar-me o barrete, pensei eu.
A razão é firme, forte, experimentada e poderosa. É que foi precisamente por aí, pelo continuado ouvir de histórias e lendas que a minha avó me contava à noitinha, quase diariamente, à lareira, se de Inverno, no pátio do Monte, em caso de Verão, sentados ambos à fresca do serão, ela na cadeira de bunho, eu no botaréu da porta, com sessões especiais e encores nas quintas-feiras e domingos, que era quando meu avô Malhadinhas, se demorava na boémia das touradas televisivas ou no jogo do Truco, que calhou ela injectar-me o vício da literatura, como quem me aplica um programa de arranque para a vida, mas que se torna imprescindível e urgente no desfrutar de cada dia, pelo que, sucedendo largá-lo esporadicamente por terapias de choque e desconsolo, ei-lo de retorno cada vez mais incisivo e premente nas recaídas, numa espécie de desgraça sem a qual a existência não teria o menor sentido, excluindo-me continuamente dos círculos sociais e esferas gregárias do meu tempo, faz perder amigos e ganhar inimigos, empobreceu financeiramente mas empoleirou no sonho, como quem pratica trapézio suspenso do nada, ou daquilo que sendo alguma coisa, tem por única consistência a crença em mim mesmo, coisa tão fiável e segura como a auto-estima dos autistas e bipolares que bradam à Lua roucos, rotos, loucos e descontentes nos socalcos da sua depressão, erigindo castelos fantasmas onde anseiam encarcerar e agrilhoar seus íntimos e inventados medos. Hêin!? Diz o quê? Pois foi! Provavelmente transferindo-me o seu gosto pelas diabruras mágicas da palavra que faz história, ou da história pejada de palavras saltimbancas, como uma vingança subtil e sublime, forjada no desacerto do mundo, coisa nela nascida por mor de uma paixão não consumada por um escritor do seu tempo, que a deixou casar com um marialva, sem minimamente o ter impedido, contrariado, rogado que o não fizesse, desânimo que nenhuma mulher perdoa, nem que de tal advenha o mais feliz e próspero dos casamentos, o que não foi o caso, pois aos oito dias consumados lhe foram dadas a provar as ordens de quem mandava nos casais "perfeitos" com respectivo enxerto em corno de cabra, outro senso, adiantarão, mas que eu sublinho com manguito, porquanto me não esqueço de que isso de fazerem coisas para o nosso bem, sem que a gente tenha pedido ou encomendado o feito, nunca me cheirou lá muito são, dando ares de vingança, como essa, exactamente, de andar a repetir às inocentes e imberbes criancinhas, sequiosas de aventura e sonho, as patacoadas moralistas e lamechas dos contadores de casos, obrigando-os a hipotecar a alma e empenhar o futuro em troca de duas ou três larachas, numa hora de arrebatado deleite, êxtase mágico e quieta retouça. Ou seja, se alguém pensa que os estão a favorecer, a apetrechá-los de algo útil para as suas profissões ou felicidade, bem estar e realização pessoal futuros, tirem daí a ideia, pois é uma declarada mentira. Estão, isso sim, a armadilhá-los de ansiedade e insatisfação, e a tramá-los, e a metê-los numa fona, numa frustrante e iludória caminhada, qual carreira irreversível para inaptidão crónica,

(continua, amanhém!)

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