Olho Neles, de Margarida Oliveira

Olho Neles


Margarida Oliveira

134 Páginas






Embora exista uma enorme diferença entre pessoas e personagens, porquanto as pessoas sejam reais e vivam concretamente, com dignidade e integridade respeitáveis, em liberdade e livre-arbítrio, mas as personagens se vejam apenas confinadas ao universo estético, no caso da literatura ao condomínio da artificialidade criativa, em que o enredo, o conteúdo e estrutura narrativa as justifica, o que é certo, é que há formas tão legítimas das pessoas viverem as personagens como das personagens reviverem as pessoas, pelo que se umas saíram das outras, estas só serão totalmente compreendidas e respeitadas se criadas elas mesmas a partir delas próprias. É aqui que reside, portanto, o núcleo fulcral, da literatura viva...
Dito isto, o livro que ora aqui vai, cuja autora não é famosa nem tem nome reconhecido nos anais do palimpsesto nacional ou universal, não é filha do Jet Set intelectual nem pivot de proa em qualquer canal televisivo, não é nenhum exemplar da literatura de supermercado, mas antes o produto de uma genuína intenção de escrita sob as desacomodadas páginas da transparência. E fala de emoções, de sentimentos, de arrelias e contratempos quotidianos, de quem vive na província, mas não abdica do seu direito de viver, nem atira com a toalha ao chão, a não ser por motivos de força maior, doença mortífera se dirá, por exemplo, para destrinçar entre as demais doenças terríveis, por serem algumas terrivelmente dolorosas, mas outras, além da dor insuportável, serem também terrivelmente mortíferas, porque incuráveis, sem todavia enveredar pelas sinuosas falésias da pieguice, da lamechice saloia e provinciana, a narradora, homónima da autora, e provavelmente seu alter-ego, descreve a saga de uma família perante a morte anunciada da figura paterna, vítima de um temor cancerígeno, cujo nome empertigado do glossário patológico, só por si mesmo nos corta o fôlego, como se anunciássemos a entrada em cena de um aristocrata do crime com firma e brasão: Glioblastoma Multiforme de IV Grau.

Aos sessenta anos, Jorge, pai de Margarida, Marco, Gustavo e Catarina, homem simples e trabalhador, emancipado e autónomo, consciente e responsável, que não bebe nem fuma, não é estróina nem anda na rambóia, extremado esposo e socialista ferrenho, agricultor, apicultor, comerciante, administrativo da EDP, biscateiro de bricolagens domésticas, pintor de pratos e azulejos, "pai" de neto, porquanto como seu avô desempenhou, na sua formação, também o papel de entidade masculina que a superintende, passa, num só golpe de asa do destino, a ter a sua vida dependente do ténue fio da esperança, das idas e vindas ao IPO, das avaliações dos exames e prognósticos cuja terminologia não domina, de medicamentos a que, quando não produzem o efeito desejado, apenas se pode redobrar a dose, de uma família antes forte e segura, mas agora seriamente fragilizada pelo choque da perda tutelar, porto de abrigo e farol de navegação sempre que alguma intempérie lhe agitava as águas do quotidiano. Longe da Anatomia de Gray ou das séries onde a ficção se alinha pela bitola das Salas de Urgência, aqui o lema para quem anseia vencer, é que primeiro tem que resistir. Resistir às contrariedades e adversidades de um Sistema Nacional de Saúde centralizado, esgarçado de acessos e hiperdepenente de serviços exteriores, desde o transporte de doentes às acções e agentes complementares de diagnóstico. Resistir ao desgaste anímico e biológico que a doença gera e o tratamento exagera, porque além dos seus efeitos secundários obriga ao corte definitivo com as teias de equilíbrio e sociabilidade anteriores. Resistir às facilidades, das quais, a mais comum e sedutora, é desistir para não sobrecarregar a família com o incómodo fardo da sua existência. Mas sobretudo resistir ao temor e angústia que a incerteza pelo dia de amanhã alcantila no zénite das horas sempre que os sessenta minutos do percurso se cumprem, abrindo novo labirinto onde tão-só a dúvida serve de corda de Ariadne. Resistir para além dos limites quando até já a palavra resistência ganhou o significado de mais dor e maior sofrimento. E desilusão.
Portanto, como qualquer família não é apenas o somatório dos indivíduos que lhe pertencem e usam os mesmos apelidos, mas essencialmente um espírito e dinâmica que os reúne e congrega, naquela que é maior ousadia das espécies, que é a de pretender eternizar a vida, arregaçar as mangas perante os dissabores é, não só uma maneira de principiar a contorná-los, como igualmente uma forma de consolidar esse espírito agregando os seus componentes à volta de uma vontade comum: salvar aquele que se encontra mais aflito. Salvá-lo da doença, salvá-lo da morte, salvá-lo de si, salvá-lo do pessimismo, salvá-lo da imagem com que os outros o pintam, salvá-lo do tempo e seus efeitos perniciosos, aquiescer-lhe a memória e garantir-lhe a sobrevivência do sonho, mas já sem a ilusória paleta de cores com que se matizam as ilusões. E isso não é fácil... Pelo contrário. É que além das dificuldades adjacentes ao estado de saúde, há ainda distâncias e adaptações a transpor, bloqueios de comunicação a sanar, expectativas que tropeçam na realidade, insuficiências farmacológicas, científicas, sociais e económicas, complementares a essa interioridade típica dos ambientes interiores, nomeadamente nisenses, onde se desenrola a grande fatia da acção, como em Portalegre ou Beira Baixa e Vale do Tejo que lhe tocam de resvés.
Daí que este livro, como exemplo daquilo que é a literatura viva, aquela que nos obriga a contar as histórias nas quais somos os primeiros envolvidos, nelas nos vemos reflectidos e nelas queremos entrar até inomináveis consequências, mesmo quando para isso não vislumbramos razão alguma, ou havendo-a, nos seja ela, de todo em todo, desconhecida, embora nem sempre a pertinácia do conteúdo esteja acompanhada da exigência técnica que lhe subjaza, sobretudo na transcrição dos diálogos ou na escolha de termos, onde a sinonímia se faz por proximidade e não assertivamente, se evidencie nos dias de hoje, uma obra imperdível para todos os que não pautem a sua conduta pelos ditames da esquizofrenia social e o autismo personalista. Enfim, que entendam a arte, neste caso a literatura, como uma excelsa forma de informar, formar, socializar, dar prazer e entrosar cada vez mais o ser humano nas relações com outros seres humanos, com os demais seres vivos e o ambiente, com as coisas e o conhecimento, com a natureza e as ideias, com as emoções e sentimentos que nos entrelaçam com o Universo, que se quer inequivocamente equilibrado. Porque ele, este livro, contribui a cada página mais e mais, positivamente mais, para o seu equilíbrio e harmonia – e quem dá o que pode, a mais não é obrigado!

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