Mefisto, de Klaus Mann

Mefisto
Klaus Mann
Trad. Maria Assunção Pinto Correia
400 Páginas

"Obra maldita, romance incómodo, Mefisto é sem sombra de dúvida um dos títulos mais importantes da literatura alemã" do século passado, cujo autor, filho de outro jurássico e consagrado escritor, Thomas Mann, se suicidou em Cannes, a 21 de Maio de 1949, em resultado de várias "causas" e factores misteriosos, embora por demais estudados, conhecidos e vulgares no nosso tempo, por alguns "ainda" considerados estritamente pessoais, como a dependência das drogas duras e da homossexualidade, mas para outros de cariz vincadamente social, ideológico e político, como a crescente desilusão e pessimismo perante os rumos da Alemanha do pós-guerra e a Europa do Futuro.
Nascido em Munique, a 18 de Novembro de 1906, é na sequência da tomada do poder pelos nacional socialistas empurrado para o exílio, em 1933, pelo que sofreu destes, em retaliação, o retirarem-lhe a cidadania alemã em 1934. Atrás de si deixava uma intensa actividade de crítico teatral, muitos textos dramáticos, bastantes contos, e o relato de uma viagem feita pela América e Ásia, na companhia de sua irmã, Erika. Então, Klaus Mann transforma-se numa figura incontornável e central da literatura alemão fora do espaço geográfico da língua, da literatura exilada, e a sua errância pelas grandes cidades europeias, sob os pretexto e intuito de alertar para os perigos do fascismo, assume a militância e a natureza de uma missão de fé. Daí a sua prolífera e ecléctica actividade de vanguardista, que o leva a participar e estar presente em todos os locais onde o futuro da Europa se discuta, nomeadamente nos Congressos dos Escritores de Moscovo (1934) e de Paris (1935), ou onde quer que se travem combates pela liberdade e pela democracia, como o exemplificam as suas reportagens sobre a Guerra Civil de Espanha, em 1938.
Todavia, e não obstante os seus romances mais difundidos e famosos terem sido escritos em alemão – Sinfonia Patética (1935), Mefisto (1936) e O Vulcão (1939), naturalmente frutos do exílio, é em inglês, após se fixar nos Estados Unidos em 1937, que nos anos quarenta escreve as suas obras mais marcantes, do ponto de vista sociológico e estético, como a autobiografia The Turning-Post (1942) e o ensaio sobre Gide, André Gide And The Crisis of Modern Thought, de 1943, ano em adquire a nacionalidade americana. Participa então na campanha dos Aliados em Itália, de onde não resiste a visitar a sua Alemanha natal do pós-guerra, colaborando também, em 1945, com Rossellini, no guião do filme Paisà.
Mais do que um documento sobre uma época, a Alemanha nazi, Mefisto revela-se uma obra intemporal, que hoje, decorridos mais de setenta anos depois da sua primeira publicação, vem notificar e reacender a discussão acerca da (ir)responsabilidade e abdicação dos intelectuais da modernidade na formatação da realidade, transportando-a novamente para a ordem do dia, intensificando-lhe a dramática actualidade, como se pôde observar em obras de similar aspereza de que é exemplo Antes Que Anoiteça do cubano Reinaldo Arenas, aliás adaptado ao cinema por Julian Schnabel, tão badalado em certos meios que raia os foros do fundamentalismo.
Editado primeiramente em1936, em Amesterdão, é porém só em 1981, após um dos processos mais polémicos da Guerra Fria, que o título vem a lume na República Federal Alemã, porquanto o seu protagonista principal é o actor Hendrik Höfgen que, com a chegada de Hitler ao poder trava relações com a amante de Goering, sendo em consequência disso nomeado Director dos Teatros da Prússia, facto que lhe facilita a possibilidade de vir a desempenhar de novo o seu grande papel, o Mefisto, de Fausto. E nos atira para a provocação óbvia... Será Höfgen um retrato fiel do famoso actor Gustaf Gründgens, aliás seu cunhado, porque marido da sua irmã mais velha, Erika Mann, ou, por outro lado, terá querido Klaus Mann representar nele o intelectual típico que todas e quaisquer causas por interesses arrivistas, que ascende pactuando com o poder por mais indignidades que cometa, quer vendendo a alma ao diabo, como acomodando-se na sua cegueira? Será que em literatura, o dístico mural da prostituição é o salvo conduto para o êxito, obrigando-a por isso a falar sempre de outra coisa que não a realidade, e averbando todos os retratos como personagens-tipo, algemadas pelos compêndios da psicossociologia, a que o marketing ideológico anexa invariavelmente a etiqueta vendável do "toda e qualquer semelhança das personagens com pessoas reais é pura coincidência", para assim transfigurar em verdade, por preterição, algo que nunca o foi? Ou tudo isto não passa de mais um enfeite alegórico no folclore da fuga às responsabilidades autorais?
Responder-lhe é, no mínimo a prova de quanto a leitura pode consolidar o processo activo do pensamento, não como simples entretenimento ou ocupação do ócio, ou no capricho das inutilidades afectadas pela moda das ideias, mas sim capacitar-nos para com maior lucidez e disponibilidade ao mundo, também ditos mundos, pois nunca haverá apenas um a que pertençamos (afiançadamente), nos adaptarmos às exigências do nosso tempo. E civilização.

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