Conto da Semana -- Entre os Rios, a Memória

Entressonhando nos Mundos Paralelos

“Teu nome, só para mim,
Sabendo-o conhecido de toda a gente […]


Sei-o de trás para diante
Anterior ou partindo do meio,
Repetido como refrão constante
Atreito ao brilho do diamante
Como às espigas do trigo e do centeio. “
In Joaquim Castanho, Nova Razão: Velha Aliança



Temos sete sentidos e não apenas cinco, como nos admoestaram no ensinamento da escolástica. Além da empatia e propriocepção, há os comuns cinco das sebentas: visão, tato, gosto, audição e cheiro. Normalmente, esquecemo-nos dos dois primeiros porque os temos como garantidos ou incómodos. A propriocepção que faculta levarmos o garfo à boca quando comemos um bom bife, em vez de o metermos nas orelhas ou nos olhos, por exemplo, que tal como o equilíbrio e o ar, só lhe notamos a existência quando lhes sentimos a falta, se os perdemos; e a empatia, ou reconhecimento do outro, apenas se o outro demonstra não nos reconhecer (como devia), pela via sinuosa do melindre e narcisismo frustrado ou, então, quando nos sucede algo cujo efeito minorámos aos demais, no trajeto natural de um arrependimento fora de prazo. Todavia, porque fiquei com umas contas pendentes contigo, alterei a ementa do almoço, dando-lhe aquele toque provinciano que te havia de torturar na digestão: prato único – migas de pão com costado e linguiça fritos, cenouras cozidas cortadas às rodelas em vinagre e sal, azeitonas retalhadas e cebolinhas em vinagre, vinho tinto (e aí o esmero agudizou-se, porque na parte da tarde irias trabalhar e darias pela pertinácia da graduação…) com 14,5 º, marca Monte Maior; por fruta, uma manga madura, bem cheirosa, de polpa aveludada e sumarenta; o café, imprescindível nestes momentos de vitória, de máxima intensidade, um Qalidus fumegante e vulcânico da Delta Q, a rematar com dois Bombons de Figo com Chocolate, para te contorcer de remorsos pela afronta que me dispensaras de manhã e a frieza com que te despediras na saída. E tudo isto a provar que nem sempre a melhor vingança se serve fria!
Shara havia de rubescer irada quando reconhecesse o valor calórico do almocinho, e de como ele se propunha a derrubar pela base a dieta de emagrecimento que se impusera para adelgaçar a silhueta. (Hhhuuuau!, cá se fazem, cá se pagam.)
Portanto aprimorei-me nos detalhes, pus a mesa com a simetria perfeita, para um tete-à-tete de que não queria perder pitada, com apenas uma jarrinha ao centro, onde coloquei três rosas rubras cujos debruns nas pétalas raivam o negro, a fim de não interferir minimamente no frente-a-frente coreografado: só nós dois, ante uma refeição altamente reconstansubstancializadora. (Pimba: vai buscar!!)
Sei que nunca é difícil, quer a Shara como a ti, “adivinhar” o que penso nem quais são as minhas intenções, a propósito seja do que for. Conheces-me demasiado bem e nestes últimos nove anos apuraste a técnica, tornando-te numa exímia mestra da antecipação acerca de mim. Reconheço que facilitei bastante nesse sentido, pese embora, ainda que tardiamente, tenha treinado exercícios de escapar-te às infiltrações e invasões de "espionagem" existencial. E consigo-o de forma sofrível, principalmente quando andas ocupada com algo absorvente e fundamental, como a saúde da tua mãe, as questões laborais, as exigências do curso. Contei com esses aliados para dissolver a tua acutilância…
Quando chegaste acabara de descascar as mangas, guardando-as no frigorífico para não oxidarem. A conversa andou pelo blá-blá circunstancial e servi-te as migas, fumegantes e aromáticas, numa mescla de alho, loureiro, azeite e pão. Depois de umas garfadas, verti o vinho com subtileza, pondo menos no teu copo do que no meu, dando-te oportunidade de notar a ocorrência. Tu, caíste no visco da encenação, ingerindo-o de um só trago, e renovaste a dose, desta vez ao nível daquilo que tinha deitado no meu copo. E entraste no assunto da celeuma.
«Quim, está na hora de saber porque sonhei contigo ontem, a tentar dobrar aquela esquina entre as palavras ditas e as por dizer. O que se passou realmente ontem, antes de te deitares? Vá!»
«Ora, nada. Foi assim: tocou a campainha, fui ver quem era, pediu-me emprestados poemas sobre Arina e na devoção À Deus, e eu voltei a casa, tirei um exemplar dos dez que imprimi anteontem e dei-lho. Quando acabar a leitura dar-me-á a sua opinião sobre o que leu, o que duvido que faça, como é costume com toda a gente. Podia ter debatido a possibilidade de o oferecer a alguém, mas suponho que isso estava subentendido no fato de ter imprimido mais que dois, um para mim, outro para ti, conforme seria se estivesse estipulado que o livro não era acessível a terceiros. E pronto, foi tudo. A seguir deitei-me, dormindo até pouco antes de teres chegado.»
«Isso sei eu, pateta. O que quero saber agora, é o que sonhaste!»
Prontifiquei-me a renovar o vinho nos copos de ambos. Mastigando, mas sem tirar os meus olhos dos teus, avaliando-te o grau de concentração e contrariedade. Mantinhas-te serena e confiante…
Repetiste a pergunta salientando a pessoa inquirida pelo «que sonhaste Joaquim Maria?», o que me pôs alerta quanto à gravidade da inculca.
«Hum… Mal me lembro! Umas fantasias quaisquer sobre ambientes exóticos, meio árabes, meio ciganos, meio espanhóis, sei lá! Estava escuro, e era de noite!»
«Graçolas, não, meu menino. O humor é despropositado neste enredo. Humor deriva do latim, e significa humidade no olho. Portanto, revela esse filme.»
Engasguei-me. A coreografia desmoronou como um castelo feito com baralhos de cartas. Ela sabia. O meu esforço tinha sido em vão, e esconder-lho uma ousadia inglória. Arrefinfei-lhe o copo duma assentada, sem sequer me preocupar em reencher o dela. Planeara com sofisticado empenho a evasiva, a manobra de diversão, contudo a debalde, ela – ou Shara, vá-se lá saber! – atalhara e cortar-me a retirada. Porém contar-lhe o que sucedera estava fora de questão. Morreria no campo de batalha mas jamais lhe entregaria a bandeira. O estandarte. A divisa indivisível. Nunca!
«Diz.»
«Diz.»
Garfada a garfada as migas e o costado sumiram-se. A garrafa do vinho evaporou-se – por minha resumida influência, confesso. A fruta deslizou pelo palato imergindo na garganta. Mas ela não arredou pé da intenção, reiterando com intervalos regulares o «diz» que não admitia qualquer tergiversão.
«Diz.»
E eu disse.
De uma só vez.
Como se disparasse de rajada.
E estivesse numa esquina sem tempo a perder.
«Sonhei que estava no palácio de Entre-os-Rios (Mesopotâmia) onde decorria um baile de letras, todas trajadas com sedas e tules, com adereços de ouro e prata, pulseiras, coroas, colares, diademas, contorcendo-se como mulheres em ritmo indo-iraniano, persa, turco, de feiticeiras muito antigas, de cujas, as principais eram quatro letras minhas conhecidas, muito minhas conhecidas, que estão no pórtico da eduba de Uruk, alinhadas aleatoriamente formando étimos a que desconheço a significação, na minha frente, hipnotizando-me, encantando-me quase, distorcendo-me os sentidos, ouvindo com olhos e vendo com a língua, nada era comum ao que acontece no dia-a-dia, nada estava no seu lugar reservado, próprio e determinada, convecional, até que essas letras entraram num frenesim descomunal e me arrastaram para o meio de si, nessa babel incandescente, e fizeram comigo quanto nem a própria brisa consegue. Voei. Voei. Voei. E perdi o sentido da mortalidade, do tempo, da consciência de mim. Fui para lá do lá e voltei numa só noite. Que mais posso dizer?...»
«Vês, não doeu nada. Porque estavas com tantas fintas e esquivas? Depois do café, hoje vou querer três figuinhos achocolatados. Ainda há que cheguem?»
«Claro. Guardei dois para cada um, mas bebi tanto vinho, que dispenso um.»
«Ok. Depois de lavares a louça vai ter comigo ao serviço, para irmos buscar a minha mãe, para ires ao hipermercado com ela. Fazes-lhe companhia e ajuda-la nas compras. Passamos o serão com ela, que o meu pai regressa tarde. De Lisboa a Casal Parado ainda é um esticão, e ele só sairá de lá depois das dez.»
Nem retruquei. Sair de fininho destes enredos destorce as inquietações e põe-nos fora de outras aflições. Principalmente comigo, a quem as letras perderam todo o respeito e às vezes se insurgem criando palavras, sobretudo nomes, a dançar, a gingar, a despirem-me da névoa loquaz da realidade. Correr mais riscos, para quê?
«Tá», respondi. Só enfim, quando a acompanhei ao carro, reparei que a janela estava com as persianas corridas. Tu acompanhaste o meu olhar, reparaste no que reparei, e resumiste: «põe-te a pau, que estamos atentas ao que fazes e sentes. Eu, e elas
Então vi, tive a certeza, que [não] tinhas sido tu quem almoçara comigo, mas ela. E ela que, por sinal, durante a noite disfarçara seu nome numa dança de letras maravilhosamente inebriante. Ao que os meus sete sentidos, de sobreaviso e com intensa acuidade, bastaram para reconhecer,como excecionalmente reais e autênticos, superiormente reais do que foram a própria realidade.
Somos tão pequenos e distraídos neste mundo de lugares, que não raramente esquecemos a importância dos não-lugares. Mas a lição marcara-me…

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