Conto da Semana - Os Cêntimos Contados
Tudo Por Uns Trocos
“A ocupação de poeta
É nobre por natureza;
Mas todo o ofício tem ossos,
E os deste são a pobreza.”
Nicolau Tolentino, 1740-1811
Arrumadas as compras no porta-bagagem, apressei-me a sentar-me no lugar do morto, de copiloto na navegação em melhores horas, do pendura ou daquele que à boleia se aventura, mas que ao instante, a primeira função assentava na perfeição, dado que me sentia, à vontade e por defeito no arredondamento, dez furos abaixo de jumento em vias de virar cadáver putrefacto.
«Estás tão macambúzio, porquê… O que é que se passa?», quiseste saber mal nos instalámos no carro, enquanto tua mãe foi estacionar o carrinho das compras entre as baias para o efeito, e recuperar os 0,50€ com que eu entrara para o respetivo frete.
«Não se passa absolutamente nada.»
«Nada?!?», estranhou Shara através do teu sorriso matreiro de gozada expressão ou de circunspecta diversão.
«Pronto» consenti eu, elucidando a jovem inquisidora em que te transformaras momentaneamente. «É que ali a senhora», e apontei para tua mãe que vinha na nossa direção, «também já ganhou a mania, de me chamar de Joaquim Maria!»
«Eh, pá! Então, a coisa foi grave: mas o que é que tu fizeste desta vez??»
«Nada, já disse» uma vez que a tua teimosia é um baluarte, sobretudo quando se trata de arrancar-me respostas indizíveis sobre questões inconfessáveis, e volto agora a repeti-lo para que conste publicamente a natureza do meu martírio e os contornos de tortura pidesca que o enquadram. «Absolutamente nada», mas tu não ficaste pelos ajustes, e logo que D. Catarina se acomodou no banco traseiro, eis que a inquiriste sobre as modalidades de convívio com ela na tua ausência.
«Vá minha mãe, conte lá, que tal lhe decorreu a tarde pelo estabelecimento da sua predileção… Aqui o freguês, portou-se bem?»
«Oh, claro, claro. Aí o pendura, portou-se à altura.»
«À altura?!?», indignei-me defendendo a geração, porém à rasca verifiquei, que a maioria vigente não ligou a mínima atenção à manifestação de protesto com que as brindei.
«Sim, à altura… Das funções. Fez-me muito boa companhia, como qualquer Joaquim Maria»
«Faria», aproveitaste tu, para reforçar a rima, ainda assim não caísse ela em soneto mal escondido e com as sílabas ao léu.
Eu suei, nesse entrementes, que nem um Cristo na subida ao Calvário da Paixão e da Agonia, qual Senhor dos Passos com afrontamentos de andropausa, procurando a todo o custo outro rumo prà conversa que tinha enveredado pelo pior dos piores atalhos nas azinhagas existenciais. Até fiz ouvidos de mercador. Colei os mirantes à risca do centro da estrada e contei carros amarelos, azuis e vermelhos, todavia sem nenhum resultado na abstração, considerando que passavam em vertigem e dado me esquecer da cor de cada um no imediato à sua passagem, cruzando-se connosco nesta viagem de ida (e volta atormentada) ao hipermercado das conduções entre o labirinto das iguarias e demais substâncias nutritivas, calóricas e com 10% de desconto, consumindo-me os tutanos e a paciência, coisa que não afectou minimamente as duas, mãe e filha, que se conheciam há tanto tempo que uma nem precisava de dizer mata para a outra esfolar imediatamente e sem quaisquer contemplações.
Entretanto arquitetei um plano de recuperar a autoestima e galhardia. Não trazia grandes garantias de sucesso, porém estava à mão e, se não me facilitasse um ascendente racional sobre elas, pelo menos, oferecia uma hipótese de ganhar tempo para melhores estratégias na luta pela recompostura face à descompostura sofrida. «Ah, D. Catarina… Não se está a esquecer de nada, pois não? A moedinha do carrinho quem a investiu fui eu… Pode ficar com os juros, mas devolva-me o investimento, se faz favor. Ou será que anda a treinar para administradora do BPN?»
«Não, não esqueci. Só que esta moeda faz-me falta. E ela» apontou para a condutora, «lá em casa, dá-te os cinquenta cêntimos. E os juros!»
«Ai, pois dou. Está descansado. Temos que pôr as contas em dia…»
Mau! A minha alma encarquilhou-se de consternado temor e mau-pressentimento. Apalpei a testa e pareceu-me deveras quente, com sintomas de febre. Estaria a chocar alguma gripinha manhosa? O povo inventou essa de um mal nunca vir só, mas sendo eu povo como sou, desconfio das invenções por defeito, pois que, desde manhã até ao fim da tarde unicamente me aconteceram desgraças.
Portanto, assolapei-me. O trânsito, pelas horas que eram, demonstrava o frenesim típico do fim de um dia de trabalho, embora o tráfego fluísse com desenvoltura e sem contratempos, nem precisão de manobras perigosas ou desvios suplementares. E como a distância entre a casa de Shara e o hipermercado rondava o par de quilómetros, a viagem resumiu-se apenas a alguns minutos de cu tremido, sobretudo na Estrada da Ponte, onde os paralelos formam socalcos notórios e uma trepidação constante. Mas finalmente aportámos, termo aliás exato, uma vez que tu estacionaste precisamente em frente à portas de casa, isto é, no nº 32 da Rua da Igreja, paredes meias com o Tonel Bar, que é a melhor tasca de Casal Parado, terra de tradição tasqueira, e localidade onde tudo acontece daquilo que não sucede em nenhum outro lugar (nacional ou estrangeiro). Porque não querem, ou porque não podem, essa será outra questão que não é prà’qui chamada.
No transporte dos produtos do carro para casa cruzámo-nos os três diversas vezes com o vaivém, sem que nenhum pormenor de monta mereça ser contado, excepto quando me lamentei acerca do fato, de quer uma, como a outra, deixarem sempre os sacos mais pesados para mim, lamento esse que D. Catarina ouviu muito bem, aproveitando a ocasião para renovar as suas suspeitas quanto à maneira com que costumas tratar-me das frescuras, aconselhando-me «’tá com essas lamúrias, ‘tá, que se ela ouve, arranjas a fresca!», o que resultou de pleno, porquanto durante o resto do acarreto jamais abri o bico, nem sequer para bafejar as mãos que esfriaram no balanço.
Porém, o petisco já estava ao lume de há muito, brandamente congeminado pela tua cabecinha maquiavélica e maléfica, e não tive que esperar “demasiado” para que me fosse servido com esmero e requintadamente.
«Mãezinha, arrume isto como só você sabe, que aqui apenas atrapalhamos, e nós vamos para a sala conferir as faturas, ok?»
«Vai lá, vai lá, que isto agora, até ao jantar, ainda demora na arrumação. Esta vida é mesmo um tirar e pôr… Foi primeiro das prateleiras prò carrinho, do carrinho prò carro, do carro prà cozinha, e agora da cozinha para os armários e estantes. Nestes dias pareço uma fiel… de armazém!»
Fomos. Quer dizer, ela foi para a sala, e levou-me a reboque. Ainda tentei resistir, mas para não agravar o contencioso, fi-lo com pouco convicção e sem empenho na refrega. Sentámo-nos à mesa redonda, tu puseste o porta-moedas entre os dois, com a mão direita sobre ele, como se estivesses a jurar sobre a Bíblia, e começaste a prédica mais arrevesada que alguma vez te ouvi: «Meu menino», conforme a tua fórmula habitual para os puxões de orelhas, «meu menino, a minha amiga X9», e aqui confesso ter retirado ao discurso dela o nome próprio que mencionou, apenas para salvaguarda dessa pessoa, diga-se a propósito «veio contar-me, que uma amiga dela lhe contou que lhe enviaste um soneto, por sinal muito expedito, escorreito e galhardo, onde lhe retratavas excelentemente o sorriso e as covinhas das faces – entre outros dotes “espirituais”. Foi obradura de qualidade e preceito a que ninguém pode botar defeito. Porém, uma coisa tinha já sido esclarecida e definida entre nós: que tinham findado os sonetos. O que tu prometeste fazer, com evidente relutância, é óbvio, mas que te comprometeste a cumprir em nome da harmonia, salutar e agradável convivência entre nós. Esse conto que a minha amiga me contou, é só fantasia ou tem algum fundamento verídico?»
De sístole em diástole o meu sistema circulatório convulsionou-se confusamente, dando àquilo a que chamamos vulgarmente por ritmo de pulsação, uma espécie de tempestade sob controversos e contraditórios movimentos dos elementos naturais, com suores frios e quentes, que me invadiam avassaladoramente, e que me atirou num mar de aflições que nunca julguei possível existir, nem mesmo nas minhas deambulações literárias pelo géneros fantásticos do suspense e do terror, da aventura e do misticismo paranormal. Portanto, de tanto querer fugir dali o corpo colou-se à cadeira, a língua colou-se ao céu-da-boca e a vermelhidão facial, característica de uma pele em brasa, latiu que nem mil cães infernais num ardor demoníaco. E, claro, não respondi.
«Sim, que dizes?», insististe. E eu continuei de bico fechado.
«Ora, é verdade, não é? Quem cala consente.»
Filosofias!
E reiterou: «Mas considerando que foi uma obra bem esgalhada, vou abrir a exceção que se impõe. Em vez do castigo que mereces, vou antes brindar-te com um pequeno tesouro, que não duvido estimarás, amealhando-o para piores dias. Aqui tens – e porque é de um soneto que falamos, passo a especificar o valor de estrofe na estrutura: pela primeira quadra, 15 cêntimos, em moedinhas de um cêntimo cada; pela segunda quadra, outros 15 cêntimos, sendo seis moedinhas de dois cêntimos, e as restantes três de um cêntimo cada; pelo primeiro terceto, quatro moedas de dois cêntimos e duas de um; e finalmente, porque a melhor das estrofes é indubitavelmente o segundo terceto, como que a fechar com chave de ouro, que neste caso é níquel de primeiríssima qualidade, cinco moedas de dois cêntimos. No todo, perfaz exatamente os 50 cêntimos que a minha mãe te devia. E agora, mais estes três cêntimos de juros pelo investimento que fizestes. Satisfeito com o conto das contas? Hum?!?»
A contabilidade tinha água no bico, disso não me restava a menor dúvida. Peguei nas moedas sem levantar ondas, e enfiei-as no bolso. Punhada a punhada, a farpela ficava-me cada vez mais pesada. A minha faceta petrarquiana tinha sofrido forte abalo, e reconheci como é dolorosa a incompreensão da arte e dos artistas. Até as pessoas mais chegadas a tratam com desprezo. Todavia, o pior mesmo, foi o ter consciência, que catorze versos não valiam mais que 6% de €, o que vistas as condições e os juros sobre a venda da dívida portuguesa, ainda lhe ficam muito aquém. É como um fado camoniano – nenhum engenho e arte vai além da Taprobana por mais esforçados que os poetas da portugalidade sejam, ou perigos e guerras que atravessem. E a história repetia-se, enfim…
Tanto mar, tantos mundos ao mundo, ao desbarato de três tostões. O que equivale a dizer, tanta sílaba soletrada, tanta métrica perfeita, tanta música perdida… e tudo, só por uns trocados!
“A ocupação de poeta
É nobre por natureza;
Mas todo o ofício tem ossos,
E os deste são a pobreza.”
Nicolau Tolentino, 1740-1811
Arrumadas as compras no porta-bagagem, apressei-me a sentar-me no lugar do morto, de copiloto na navegação em melhores horas, do pendura ou daquele que à boleia se aventura, mas que ao instante, a primeira função assentava na perfeição, dado que me sentia, à vontade e por defeito no arredondamento, dez furos abaixo de jumento em vias de virar cadáver putrefacto.
«Estás tão macambúzio, porquê… O que é que se passa?», quiseste saber mal nos instalámos no carro, enquanto tua mãe foi estacionar o carrinho das compras entre as baias para o efeito, e recuperar os 0,50€ com que eu entrara para o respetivo frete.
«Não se passa absolutamente nada.»
«Nada?!?», estranhou Shara através do teu sorriso matreiro de gozada expressão ou de circunspecta diversão.
«Pronto» consenti eu, elucidando a jovem inquisidora em que te transformaras momentaneamente. «É que ali a senhora», e apontei para tua mãe que vinha na nossa direção, «também já ganhou a mania, de me chamar de Joaquim Maria!»
«Eh, pá! Então, a coisa foi grave: mas o que é que tu fizeste desta vez??»
«Nada, já disse» uma vez que a tua teimosia é um baluarte, sobretudo quando se trata de arrancar-me respostas indizíveis sobre questões inconfessáveis, e volto agora a repeti-lo para que conste publicamente a natureza do meu martírio e os contornos de tortura pidesca que o enquadram. «Absolutamente nada», mas tu não ficaste pelos ajustes, e logo que D. Catarina se acomodou no banco traseiro, eis que a inquiriste sobre as modalidades de convívio com ela na tua ausência.
«Vá minha mãe, conte lá, que tal lhe decorreu a tarde pelo estabelecimento da sua predileção… Aqui o freguês, portou-se bem?»
«Oh, claro, claro. Aí o pendura, portou-se à altura.»
«À altura?!?», indignei-me defendendo a geração, porém à rasca verifiquei, que a maioria vigente não ligou a mínima atenção à manifestação de protesto com que as brindei.
«Sim, à altura… Das funções. Fez-me muito boa companhia, como qualquer Joaquim Maria»
«Faria», aproveitaste tu, para reforçar a rima, ainda assim não caísse ela em soneto mal escondido e com as sílabas ao léu.
Eu suei, nesse entrementes, que nem um Cristo na subida ao Calvário da Paixão e da Agonia, qual Senhor dos Passos com afrontamentos de andropausa, procurando a todo o custo outro rumo prà conversa que tinha enveredado pelo pior dos piores atalhos nas azinhagas existenciais. Até fiz ouvidos de mercador. Colei os mirantes à risca do centro da estrada e contei carros amarelos, azuis e vermelhos, todavia sem nenhum resultado na abstração, considerando que passavam em vertigem e dado me esquecer da cor de cada um no imediato à sua passagem, cruzando-se connosco nesta viagem de ida (e volta atormentada) ao hipermercado das conduções entre o labirinto das iguarias e demais substâncias nutritivas, calóricas e com 10% de desconto, consumindo-me os tutanos e a paciência, coisa que não afectou minimamente as duas, mãe e filha, que se conheciam há tanto tempo que uma nem precisava de dizer mata para a outra esfolar imediatamente e sem quaisquer contemplações.
Entretanto arquitetei um plano de recuperar a autoestima e galhardia. Não trazia grandes garantias de sucesso, porém estava à mão e, se não me facilitasse um ascendente racional sobre elas, pelo menos, oferecia uma hipótese de ganhar tempo para melhores estratégias na luta pela recompostura face à descompostura sofrida. «Ah, D. Catarina… Não se está a esquecer de nada, pois não? A moedinha do carrinho quem a investiu fui eu… Pode ficar com os juros, mas devolva-me o investimento, se faz favor. Ou será que anda a treinar para administradora do BPN?»
«Não, não esqueci. Só que esta moeda faz-me falta. E ela» apontou para a condutora, «lá em casa, dá-te os cinquenta cêntimos. E os juros!»
«Ai, pois dou. Está descansado. Temos que pôr as contas em dia…»
Mau! A minha alma encarquilhou-se de consternado temor e mau-pressentimento. Apalpei a testa e pareceu-me deveras quente, com sintomas de febre. Estaria a chocar alguma gripinha manhosa? O povo inventou essa de um mal nunca vir só, mas sendo eu povo como sou, desconfio das invenções por defeito, pois que, desde manhã até ao fim da tarde unicamente me aconteceram desgraças.
Portanto, assolapei-me. O trânsito, pelas horas que eram, demonstrava o frenesim típico do fim de um dia de trabalho, embora o tráfego fluísse com desenvoltura e sem contratempos, nem precisão de manobras perigosas ou desvios suplementares. E como a distância entre a casa de Shara e o hipermercado rondava o par de quilómetros, a viagem resumiu-se apenas a alguns minutos de cu tremido, sobretudo na Estrada da Ponte, onde os paralelos formam socalcos notórios e uma trepidação constante. Mas finalmente aportámos, termo aliás exato, uma vez que tu estacionaste precisamente em frente à portas de casa, isto é, no nº 32 da Rua da Igreja, paredes meias com o Tonel Bar, que é a melhor tasca de Casal Parado, terra de tradição tasqueira, e localidade onde tudo acontece daquilo que não sucede em nenhum outro lugar (nacional ou estrangeiro). Porque não querem, ou porque não podem, essa será outra questão que não é prà’qui chamada.
No transporte dos produtos do carro para casa cruzámo-nos os três diversas vezes com o vaivém, sem que nenhum pormenor de monta mereça ser contado, excepto quando me lamentei acerca do fato, de quer uma, como a outra, deixarem sempre os sacos mais pesados para mim, lamento esse que D. Catarina ouviu muito bem, aproveitando a ocasião para renovar as suas suspeitas quanto à maneira com que costumas tratar-me das frescuras, aconselhando-me «’tá com essas lamúrias, ‘tá, que se ela ouve, arranjas a fresca!», o que resultou de pleno, porquanto durante o resto do acarreto jamais abri o bico, nem sequer para bafejar as mãos que esfriaram no balanço.
Porém, o petisco já estava ao lume de há muito, brandamente congeminado pela tua cabecinha maquiavélica e maléfica, e não tive que esperar “demasiado” para que me fosse servido com esmero e requintadamente.
«Mãezinha, arrume isto como só você sabe, que aqui apenas atrapalhamos, e nós vamos para a sala conferir as faturas, ok?»
«Vai lá, vai lá, que isto agora, até ao jantar, ainda demora na arrumação. Esta vida é mesmo um tirar e pôr… Foi primeiro das prateleiras prò carrinho, do carrinho prò carro, do carro prà cozinha, e agora da cozinha para os armários e estantes. Nestes dias pareço uma fiel… de armazém!»
Fomos. Quer dizer, ela foi para a sala, e levou-me a reboque. Ainda tentei resistir, mas para não agravar o contencioso, fi-lo com pouco convicção e sem empenho na refrega. Sentámo-nos à mesa redonda, tu puseste o porta-moedas entre os dois, com a mão direita sobre ele, como se estivesses a jurar sobre a Bíblia, e começaste a prédica mais arrevesada que alguma vez te ouvi: «Meu menino», conforme a tua fórmula habitual para os puxões de orelhas, «meu menino, a minha amiga X9», e aqui confesso ter retirado ao discurso dela o nome próprio que mencionou, apenas para salvaguarda dessa pessoa, diga-se a propósito «veio contar-me, que uma amiga dela lhe contou que lhe enviaste um soneto, por sinal muito expedito, escorreito e galhardo, onde lhe retratavas excelentemente o sorriso e as covinhas das faces – entre outros dotes “espirituais”. Foi obradura de qualidade e preceito a que ninguém pode botar defeito. Porém, uma coisa tinha já sido esclarecida e definida entre nós: que tinham findado os sonetos. O que tu prometeste fazer, com evidente relutância, é óbvio, mas que te comprometeste a cumprir em nome da harmonia, salutar e agradável convivência entre nós. Esse conto que a minha amiga me contou, é só fantasia ou tem algum fundamento verídico?»
De sístole em diástole o meu sistema circulatório convulsionou-se confusamente, dando àquilo a que chamamos vulgarmente por ritmo de pulsação, uma espécie de tempestade sob controversos e contraditórios movimentos dos elementos naturais, com suores frios e quentes, que me invadiam avassaladoramente, e que me atirou num mar de aflições que nunca julguei possível existir, nem mesmo nas minhas deambulações literárias pelo géneros fantásticos do suspense e do terror, da aventura e do misticismo paranormal. Portanto, de tanto querer fugir dali o corpo colou-se à cadeira, a língua colou-se ao céu-da-boca e a vermelhidão facial, característica de uma pele em brasa, latiu que nem mil cães infernais num ardor demoníaco. E, claro, não respondi.
«Sim, que dizes?», insististe. E eu continuei de bico fechado.
«Ora, é verdade, não é? Quem cala consente.»
Filosofias!
E reiterou: «Mas considerando que foi uma obra bem esgalhada, vou abrir a exceção que se impõe. Em vez do castigo que mereces, vou antes brindar-te com um pequeno tesouro, que não duvido estimarás, amealhando-o para piores dias. Aqui tens – e porque é de um soneto que falamos, passo a especificar o valor de estrofe na estrutura: pela primeira quadra, 15 cêntimos, em moedinhas de um cêntimo cada; pela segunda quadra, outros 15 cêntimos, sendo seis moedinhas de dois cêntimos, e as restantes três de um cêntimo cada; pelo primeiro terceto, quatro moedas de dois cêntimos e duas de um; e finalmente, porque a melhor das estrofes é indubitavelmente o segundo terceto, como que a fechar com chave de ouro, que neste caso é níquel de primeiríssima qualidade, cinco moedas de dois cêntimos. No todo, perfaz exatamente os 50 cêntimos que a minha mãe te devia. E agora, mais estes três cêntimos de juros pelo investimento que fizestes. Satisfeito com o conto das contas? Hum?!?»
A contabilidade tinha água no bico, disso não me restava a menor dúvida. Peguei nas moedas sem levantar ondas, e enfiei-as no bolso. Punhada a punhada, a farpela ficava-me cada vez mais pesada. A minha faceta petrarquiana tinha sofrido forte abalo, e reconheci como é dolorosa a incompreensão da arte e dos artistas. Até as pessoas mais chegadas a tratam com desprezo. Todavia, o pior mesmo, foi o ter consciência, que catorze versos não valiam mais que 6% de €, o que vistas as condições e os juros sobre a venda da dívida portuguesa, ainda lhe ficam muito aquém. É como um fado camoniano – nenhum engenho e arte vai além da Taprobana por mais esforçados que os poetas da portugalidade sejam, ou perigos e guerras que atravessem. E a história repetia-se, enfim…
Tanto mar, tantos mundos ao mundo, ao desbarato de três tostões. O que equivale a dizer, tanta sílaba soletrada, tanta métrica perfeita, tanta música perdida… e tudo, só por uns trocados!
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