Muito Pode Quem Não cala


O Poder da Fala

"É preciso um espírito muito especial para analisar o que é óbvio."

– A. N. Whitehead

Entre o provérbio e o verbo pró (ou contra), não há apenas o conceito de espaço-quando, nem sequer a manifesta intenção de acondicionar o saber de experiência feito numa embalagem linguística passível de ser acatada pelo maior número possível de utilizadores – ou falantes –, mas antes a noção ética que reflecte na íntegra o inconsciente colectivo que o gerou, nas mais profundas e arreigadas inspirações da criação engajada numa civilização, demonstrando assim a qualidade semântica de uma tese que, por si só, não obstante os registos "literários" em que eclodiu, detonou também a antítese que lhe corresponde e a síntese que é o produto de ambas. Logo, ao analisar os provérbios de um povo, de uma língua, de uma cultura, de uma região, de uma espiritualidade, nós não obtemos somente o espelho vivo desse povo, dessa cultura, dessa mentalidade, dessa língua, desse território ou desse universo de sentidos e conteúdos, como igualmente a sua capacidade de gerar modelos de pensamento, lições de vida e constructos mentais úteis no futuro, garantindo consequentemente a sustentabilidade da civilização que comporta.

Quem ateia fogo à noite, de manhã respira-lhe as cinzas. E ninguém está fora dos provérbios por mais cursos que tenha e não obstante as áreas curriculares que estes abranjam. Podem tergiversar, argumentar em contrário quanto lhes aprouver, e ainda que esporadicamente a mentira dita, possa ser tão bem arquitectada, em estilo nobre, cimentado, lógico e convincente, que por assim mesmo a consideremos merecer ser verdade, não há de ser por isso que em tal se tornará. Pois não é pelo facto de a sabedoria ser popular que deixa de ser sabedoria, nem um qualquer provérbio que nasceu das práticas e observações milenares por obsoleto fique, e isto aconteça simplesmente porque a nossa modernidade e falta de experiência o não reconhece, nem valor lhe atribua.

Os homens e as mulheres sabem-no, independentemente de lhe ter acontecido, ou não. Principalmente as mulheres, a quem as consequências dos seus actos, lhe ficam vincadas no corpo como na alma, apesar de quantos avisos e contracepções a que tenham recorrido. Ou a Lua as omita da vigilância natural com que lhes ferve as hormonas ao lume brando do mistério na congeminação da vida. Bem como os adultos de todos os continentes que devem aquilo que verdadeiramente são às crianças que foram e educação que receberam, cuja qualidade enquanto seres humanos reflecte o saber fazer e o saber aprender que os habilitou para as suas profissões, é inegável, ou o saber ser e saber estar que lhes providenciou o estatuto social que actualmente estão a usufruir – e desempenhar. E muito mais que uma sentença, uma determinação do destino, uma conclusão inevitável, eis que essa sabedoria geral se lucubra* na multidisciplinariedade (curricular ou envolvente) que lhe dirige o sentido comum, como cliché ou frase feita, é óbvio, não porque o uso a desgaste e o abuso a esvazie de acutilância crítica, porventura diminuindo-lhe a sagacidade, pertinácia e agudeza de espírito, senão porque o seu peso significativo é tão grande que passou a ser aplicada por tudo e por nada, conforme as necessidades de cada um e em resultado do seu limitado conhecimento, ou desconhecimento, já que as pessoas lhe recorrem e a aplicam em lugar de outras e outros de que não se "lembram" ao momento.

Até pode ser consequência directa das derivas polissémicas que fomenta e inspira, uma espécie de boomerang sofrido por almejar estender o seu significado (extensão) muito para além do reduto sémico em que eclodiu (intenção). Caprichou; lixou-se! Todavia, ao prestar-se como metáfora – aquela palavra ou frase que mete o seu significado fora de si, no ainda além da Taprobana da lusofonia –, enxertando a raiz com um garfo que lhe é estranho, embora não lhe seja adverso, explícita exemplarmente a sua riqueza lexical, denuncia o ensejo colonial e expansionista de uma cultura, que reside inequivocamente na tentativa de monopolizar tudo quanto se possa dizer acerca de um assunto, recorrendo-lhe. Obrigando ao reconhecimento geral de que a totalidade das coisas ditas e enunciados sobre aquilo que está em causa, somente o corroboram – e sublinham. Pelo que, imbuirá de idêntico poder ao que detém, o falante que o emprega, transportando para essa pessoa o seu poder, força que lhe advém dos resultados estatísticos, originando com que aquele que fala diga o que um sem-número de pessoas pensa. Porque esse é o mister da democracia, ou quando a vontade de todos é expressa pela boca de um – o seu líder. Em resumo, um provérbio que ecoa repetindo as mentalidades da generalidade pela fala de cada um. E quando cada qual emite o seu parecer, está a partilhar e participar simultaneamente, contribuindo com o seu voto para melhorar as decisões do seu povo ou da sua pátria. Que o mesmo é afirmar, muito pode quem não cala!

*Lucubrar: 1 – trabalhar ou estudar de noite; 2 – meditar profundamente; 3 – dedicar-se a longos trabalhos intelectuais

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Suciadade dos Associais e Assuciados

Herbert Read - A Filosofia da Arte Moderna

Álvaro de Campos: apenas mais um heterónimo de Fernando Pessoa?