Conto para os dias úteis


Quando a Razão nos Observa

“E daí? – Daí, a história
Não deixou outra memória
Dessa noite de loucura,
De sedução, de prazer…
Que os segredos da ventura
Não são para se dizer.”

In Aquela Noite!, Folhas Caídas, de Almeida Garrett

13.
"Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
E vejo o que não vi nunca, nem cri
Que houvesse cá, recolhe-se a alma a si,
E vou tresvaliando, como em sonho.

Isto passado, quando me desponho
E me quero afirmar se foi assi,
Pasmado e duvidoso do que vi,
M’espanto às vezes, outras m’envergonho;

Que, tornando ante vós, senhora, tal,
Quando m’era mister tant’outr’ajuda,
De que me valerei, se a alma não val?

Esperando por ela que me acuda,
E não me acode, e está cuidando em al,
Afronta o coração, a língua é muda."

Sá de Miranda – Coimbra, 1481 – S. Martinho de Carrazedo, 1558


A cada qual o seu suplício, mas não há ninguém a quem seja alheio (e desconhecido) o meu martírio: não tenho vontade, que não seja influência sua; sou falho de sentir felicidade, desde que não seja ela a contribuir e determinar a sua existência; e de onde quer que seja que Shara se omita, se desinteresse, eu aí, simplesmente, torno-me nulo e insignificante. Sem o mínimo brio ou talento para o mister em causa, falho de capacidades e competências nessa área (e funcionalidades). Se sofre, sofro; se alegre e contente, rejubilo de satisfação e contentamento. Uns, podem chamar-lhe vício e dependência, outros, até obsessão; contudo, reclamo e pergunto: se viver não é isto, então o que é? Há outra maneira de viver que melhor se coadune com a natureza (humana) e a vida? Vá, digam lá: há? Pois. Era o que eu pensava!
Quando sorris assim reconheço-a em ti, aberta e espontânea, sem enigmas nem cuidados supérfluos. As aspas laterais aos lábios, a alegria espelhada como um desafio que não queres ocultar, os olhos a romperem o castanho das lentes dos óculos de sol, como se estas não fossem capazes de conter e filtrar a intencionalidade brilhante das pupilas pertinazes e cintilantes. A testa marmorínea e ogival sob a franja de onda a enformar tubo, o pescoço esguio mas forte, confiante e de porcelana, onde a sombra dos cabelos caídos de corda húmida, rasgam o outeiro da paisagem alentejana amputando-lhe a solidão rupestre e ancestral. Era eu quem queria estar sempre do outro lado da objetiva a registar cada segundo, cada instante, em que ambas vivem numa só pessoa. E nisso, até dela sinto ciúmes, por poder ser-te como se em si mesma ela fosse tu própria. O segredo, todavia, é esta espera de vê-la assomar, emergir num insight, espreitar a realidade através das tuas ações, esgares, gestos, atitudes, e capturá-la se para tanto me permitirdes no abraço a sofreguidão imperiosa do indizível e inaudito, a vencer, a diluir a indiferença do socialmente correto. É a ventura e o milagre da síntese, ante a eclosão da circunstância ocasional. Diária. Desatenta. Frugal. Desprevenida. Sem pose estudada nem jogada intencional. Clic de detalhe que tudo altera, que apaga a escuridão dos momentos de tédio e os ilumina transformando-os no incontornável cintilar que suspende na surpresa que nos faz esquecermo-nos de nós, de agir, de respirar, de falar, de pestanejar, enfim, de ouvir o tempo a marcar-nos o ritmo da pulsação à desfilada. Scherzando sobre as páginas vertida e convertida em melaço com significado translúcido dos fios das linhas (e dos cabelos castanho-escuros) escritas em sinapses que crepitam (e faíscam) arrebatamento. Como sinais. E como hinos de condão.
Foi dessa forma que sorriste quando cheguei ao teu serviço. “Exatamente assim”, precisamente com a desentupida manifestação de quem vê confirmadas as expectativas criadas. E desmentidas quaisquer suspeitas ou contrariedades.
Por conseguinte, sob o descaramento inerente aos vitoriosos, declaraste que «sempre soube do prazer que sentes em cumprir o que te ordeno. Mas hoje caprichaste» também em sublinhá-lo, fazê-lo notado, pondo-o em relevo de comprovada verificação perante as tuas colegas de trabalho, para que registassem quiçá que o quanto afirmaras antes era apenas metade do que à realidade calhava verdadeiro. Os seus modos denunciaram-no, porém eu fiz-lhes vista grossa, e não afetei a mínima mossa, pelo contrário, ajudei à festa sentenciando mais uma palissada(1) de incontestável efeito nos humores gerais: «pudera. Tu também só me impões tarefas e obrigações que sugeri com manifesto entusiasmo, e sabes serem do meu agrado. Assim qualquer chefe é sempre obedecido, pois sabe escutar o coração dos seus súbditos, os mais profundos anseios dos seus vassalos. Voilá
Houve gargalhada geral. O êxito e reconhecido sucesso do relacionamento entre nós contagiou quantos e quantas estavam. Contagia sempre e inevitavelmente, porque somos capazes de brincar com o que nos é superiormente profundo e íntimo sem nunca nos trairmos ou condenarmos. Sabemos os defeitos – mentira: as particularidades sensíveis de cada um –, mas não os usamos como argumento de persuasão ou cavalo de batalha para garantir qualquer tipo de ascensão sobre o outro. Não jogamos os segredos como trunfos no relacionamento mútuo. Nem pomos na cara o quer que seja que tenhamos feito a pedido do outro. Fazemos o que fazemos pelo que é feito, não como estratégia de conseguir seja mais o que for.
«Então, e o Magalhães… Deixaste-o em casa? Parece mentira! Logo agora que estava a pensar em romper o noivado por adultério com ele, eis que preferiste a minha companhia à dele. Sinto-me defraudada», registaste tu, como rodapé copulativo à risada de todos os presentes, o que lhes renovou os ânimos e a chacota. A alfinetada deveu-se sobretudo ao fato de levar incondicionalmente comigo o portátil minorca a onde quer que me desloque, como se ele fosse – e que efetivamente é – uma extensão complementar do meu cérebro e braço. Porque é nele que escrevo e leio, ouço música e vejo filmes, crio e navego, pesquiso e comunico, via correio electrónico (e-mail) com os meus conterrâneos de afinidades comuns.
«Pois deves sentir, e com razão. Porque quando estou com a tua mãe, ao contrário de quando estou só contigo, nem lhe sinto a falta. É uma senhora com quem dá extraordinário prazer privar e conviver!»
«Ai, é!? Então ‘bora: vou-te acoplar a ela toda tarde, para saberes o que é bom prà tosse!»
«E eu ralado! Creio mesmo que é bem melhor do que ficar arrumado entre quatro paredes no convívio com uns quantos chatos que só falam no trabalho…»
Não obstante, fiquei por ali na contenda, já que a hora podia estar a requentar os tutanos, que estariam em fritura lenta desde as duas horas da tarde, somando portanto, 120 minutos de esturricação lenta, o que acarreta danos em qualquer córtex por mais inanimado que estivera. Logo, desandei a trote à tua frente, a romper caminho, antes que o caldo entornasse.
Normalmente a conjuntura é-me favorável quando cumpro a tarefa de substituir-te junto de D. Catarina. É uma situação cómoda, confortável, admito, não só por estar a fazer o que determinaras que eu devia fazer, como igualmente por ser algo que consolida o espírito de família que deve cimentar as relações entre pessoas que têm um projeto de vida em comum, e se veem como estratégia de uma ordem superior, a da vida, que nos escolhera para alcançar a eternidade. Ou podia ter escolhido, quem sabe!, independentemente da nossa apetência para tal.
Consequentemente, preparei-me para desfrutar ao máximo da companhia de tua mãe. E empenhei-me em proporcionar-lhe momentos agradáveis, se é que alguns podem existir, numa simples e ordinária ida ao hipermercado do burgo, empurrando um carrinho rangente e aramado entre filas e estantes carregadas com embalagens, cujos rótulos, se estivessem escritos em chinês, não significariam positivamente mais nada para mim. D. Catarina estava à porta, esperando, pelo que não perdemos tempo, dirigindo-nos à superfície comercial. Foi também a primeira a descer do carro, ficando nós a sós por escassos segundos, mas os suficientes para aconselhares: «acompanha-a e aprende, que há coisas que não vêm nos livros. Como saber discernir entre um peixe fresco e outro menos fresco, por exemplo. Um queijo apaladado, ainda que tenha um aspecto [menos] atrativo. E um cheiro incomum. E isso também nos vai fazer falta, quando ela cá não estiver, para o fazer por nós. Ok?»
«Certo», respondi, pese embora me tenha ficado a língua muda, perante uma razão que o coração nem sempre entende como suficiente, mas que nos observa diletante. E ela que além de nos ver, igualmente nos conserva… Como uma folha que nos defende da própria boca!

(1) Dito do género o morto estava outrora vivo, ainda não acontecido antes de acontecer, etc., coisa que derivou do facto deste general (Jaques de Chabanes, Senhor de La Palice) ter sido contemplado com uma canção de caserna depois de ter morrido gloriosamente na batalha de Pavia, na qual foi feito prisioneiro o rei Francisco I pelo imperador Carlos V: “Monsieur de La Palice est mort / Mort devant Pavie / Un quart d’heure avant / Il etait encore en vie.”

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