Conto do Dia da (falta de) Poesia


Negócios Corruptos “O melhor favor é o que se faz o mais depressa possível.” Provérbio egípcio Não há justiça nenhuma neste mundo… Um soneto tão bem esgalhado, e aquela criatura só me pagou 0,50€ por ele, dinheiro esse que afinal era meu, que eu tinha investido no sector dos transportes, camionagem e obras lúdicas, em que só não conto quanto não me diverti nelas por vergonha e pudor, e ela, essa abominável carantonha da franja em onda para surfistas mal instruídos, ainda teve o descaramento de tripudiar em cima do meu desalento e infortúnio, acrescentando-lhe como juros uns míseros 0,03€ ao investimento, juros esses que nem chegam aos calcanhares daqueles que a portugalidade vai ter que pagar pela dívida a quem lha comprou. Francamente! Se isto não é martírio, o que é que vamos chamar à Páscoa? Pois. Sobretudo porque entre o culto da água e a água do (o)culto, existe uma enorme diferença que nada tem a ver com questões de liquidez – nem igual grau de pureza ou salubridade: é nela que germina a vida, sendo assim os bastidores e staff operacional da Primavera. Para nos renovarmos como povo e língua, bebê-la é apenas o primeiro passo para uma recuperação (dolorosa) prolongada mas duradoura. Portanto quando recuperei do desastre sofrido na mesa redonda do ajuste de contas, tentei manifestar o meu pesar, outorgando-me vítima magoada das suas ocultas mas destiladas suspeitas. Armei em melindrado, pus nas ventas aquele semblante de poucos amigos que acompanha as tragédias mais tenebrosas do narcisismo molestado, e disse-lhe confrangido que «foste demasiado dura comigo. Aquele sonetinho não tinha mais que catorze versos de cavalheirismo bem-intencionado, de elogio à alegria e beleza, e tu inventaste uma ameaça nele, incluindo um romper de compromissos assumidos em diversas circunstâncias» como se advogasse, não uma defesa da dignidade ofendida, mas antes um direito à inocência e ao usufruir de uma liberdade garantida – e inalienável. Só que tu eriçaste-te, reagiste de supetão com o verbo afiado reclamando que «essa coisinha dos sonetos é mais grave do que parece, meu menino. Não me venhas cá com arrevesadas de vitimização, pois não colam comigo – e já devias sabe-lo. O soneto é apenas a parte superior visível do icebergue das tuas intenções e tendências, submersas no inconsciente, contudo refletidas nas tuas atitudes e comportamentos dos últimos dias. Quando estás à rasca, frágil, a precisar de colo e com a identidade nublosa, eis que vens simpático e prestativo, com prendas e recompensas, solícito, meigo, amistoso, que é uma ternura ver-te nos modos e sensibilidade, palavras e sorrisos. Todavia, mal recuperas do abalo e o ânimo regressa, o equilíbrio recuperado, ficando capaz do prazer e da alegria, então é um regalo ver-te a cirandar de flor em flor, na galhofa, a arreganhares-te para tudo quanto veste saias, ou mesmo não as vestido, evidencia sob as calças os dotes do belo género, como se tudo em ti tivesse nascido precisamente para tal, fosse gentileza donjuanina, expedita e sedutora, oferta generosa de sexo e prazer, maravilha e sonho, realização plausível de todas as fantasias, incluindo as mais ousadas, inauditas, exóticas e recônditas. Em resumo, para te reerguer o ego e reconstruir a confiança, a autoestima e espírito de iniciativa, recorres a mim e à minha ajuda; agora, para usufruir dos prazeres que essa boa-disposição proporciona, preferes recorrer a qualquer gaja, qualquer uma, menos a mim. A mim evitas-me, até no olhar, mostras as trombas características de que toda gente te deve e ninguém paga, fazes-te caro, fino e quezilento, e isso quando não evidencias enorme enfado ou desgosto ao ver-me, mal me aproximo de ti, seja pelo que for. Para te ajudar, sirvo e cá estou; mas para foder e gozar, dispensas bem, e seria a última pessoa de que te lembrarias para o efeito. Quem não cuida e preza aquilo que tem, arrisca-se a perdê-lo, mais tarde ou mais cedo, como tu sabes muito bem. E esta é uma das poucas certezas que este mundo de incertezas tem, como constante. Ok?» Fiquei sem pinga de sangue. Onde é que ela ia buscar aquelas conclusões? Um soneto, um simples e alegre sonetinho, podia sugerir isso tudo! Shara não podia socorrer-me ali, disso tinha noção, sobretudo porque desconfiava que ela te estava a guiar ditando-te as palavras e inspirando-te nas conclusões… Enfim, estava entre a espada e a parede, e se uma tinha a lâmina afiada, a outra era feita de espinhos bicudos e inquebráveis. Para ganhar tempo fui fazer dois cafezinhos, não daqueles intensos e apaladados, antes suaves, de sabor adocicado e subtil, delicado, dois deliQatus da Delta Q, período durante o qual me lembrei do sermão que tua mãe me dera a propósito da sua escolha e variedade sublinhada, onde demorei aquela parte da eternidade que à eternidade ainda falta, e nos faz ansiar para que o tempo voe, o que é um contrassenso, considerando que quanto mais depressa ele passar mais depressa também a nossa durabilidade expirará, quando fui salvo – é exatamente esse o termo apropriado! – pela entrada em casa de teu pai, que nesse sexta-feira saíra do serviço mais cedo precisamente por ser o Dia do Pai, e reparou no meu ar macambúzio se solidarizou imediatamente comigo, prontificando-se a levar os dois cafés para ti e tua mãe, e propondo-me acompanhá-lo numa cervejola preta, fresquinha e saborosa, como nunca tinha bebido até àquele momento. Aceitei com alívio na alma. Porém desconfio que quando ele as foi buscar à cozinha, levando na ida o café de tua mãe, ela deve tê-lo alertado para a gravidade das circunstâncias, visto que voltou de lá com um sorriso de quem estava a par das novidades, dizendo depois, enquanto erguíamos as bejeckas num brinde de empáticas condolências, «meu rapaz, agora tiveste a honra de reconhecer, e padecer, que aquilo que eu digo sobre o ir com elas às compras não é mentira nenhuma. Quando me calha a mim, perco em duas ou três horas muitos anos de vida, e tenho a certeza que grande parte destes cabelos brancos foi ganha nessas idas. Por cada vez que isso sucedeu, a vida nunca mais me foi o que antes fora. Como eu te compreendo…» Tu ouviste tudo mas nem pestanejaste com a confidência. Sequer lhe respondeste, defendo-te ou defendendo-a, a tua mãe, que por retirada na despensa não ouvira o que ele dissera. Eu fixei-te à Benfica, sobretudo quando lhe chamam glorioso depois de sofrida substancial derrota, com vontade de te aplicar o típico «vês, escuta aqui a voz da razão, ou toma lá esta que é de borla», a sondar os efeitos da solidariedade numa refrega de dois contra um, que, como minha avó costumava afirmar, metem-lhe uma palha no cu. Porque fora essa a vantagem que auferiras na viatura, e logo de seguida, em casa, quando me chacinaste com as divagações sobre o género poético em formato de soneto. Jamais o esquecerei. Então, a minha surpresa aumentou descomunalmente, pela reação do teu pai, que insistiu em abraçar-me reparando «venham para cá esses ossos, companheiro. A partir de hoje sei que testemunhaste o meu martírio de mais de 32 dois anos, e que não lhe és indiferente» para, ao mesmo tempo que me jungia segredar-me «preciso de um favor teu. Que vás ao café, e digas lá ao meu pessoal que não contem comigo no petisco desta noite, pois elas as duas com a história do Dia do Pai, armaram-me a arapuca. Vais?» E eu anui, abanando a cabeça no sim-sim do costume com que as mulas comem a ração. E fui, dando por desculpa, ir meter o Euromilhões. Uma mão lava a outra, e com as duas lavamos a cara, como é apanágio do sentimento mafioso mais antigo que a Serra de Ossa, e que devia ter vindo para cá precisamente na altura em que essa montanha era uma mina romana de extração de metais. Tinha sido corrompido, não havia a mínima dúvida, e fechado negócio por uma cervejinha, à semelhança da cumplicidade tasqueira entre dasafortunados do mesmo destino, pagando o favor que ele me fizera, com o cumprimento imediato de outro favor que em troca me pedira. Era a política à portuguesa a ajeitar os laços familiares e matrimoniais… E ainda antes de irmos viver para S. Mamede, homónimo local ao que tivera a batalha que determinou a nossa origem, e foi o princípio de quase nove séculos de História. Seria isso um prenúncio, ou uma repetição das tragédias familiares que, de crise em crise, temos vindo a assistir, numa novela muito mal contada, onde as Xarazades se revezam a contá-la. À História, claro. Até quando estão com ela!

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