Conto de Amanhã, dia 13, dia da Estrela
A Pequena Estrela (cor-de-rosa)
“Em nada à verdade falto,A dor me aviva a memória;
E, por não entrar de salto,
Deixai, Senhor, que esta história
Tome o fio de mais alto.”
In Memorial a Sua Alteza, de Nicolau Tolentino
“A brisa vaga no prado,
Perfume nem voz não tem;
Quem canta é o ramo agitado,
O aroma é da flor que vem.”
In Voz e Aroma, Folhas Caídas, de Almeida Garrett
Estamos disponíveis para nós mesmos se aos demais convocamos como desejáveis, preferidos e imprescindíveis. Até insubstituíveis. Nenhuma pessoa é como outra pessoa. Há algo que identifica aquela pessoa como favorita se lhe conhecemos o pormenor ínfimo que a diferencia da multidão de aqueloutras iguais a si, sem destrinça de cor ou feitio, fala ou cultura, costumes e trajes, princípios e atitude social, pessoal ou ideológica. A preferência dissolve-se e multiplica-nos depois como desejados e… inevitáveis à vida de quem assim nos rotulou. Marcou. Inventou. Assumiu. E acolheu.
Mas não é fácil sê-lo. Principalmente quando nos nomeiam soletrando o nome de alto a baixo, vincando cada sílaba como se estivessem a bater sola de ruim defunto. E D. Catarina fê-lo pelo menos quatro vezes, que foram as que mais “doeram”. A primeira, foi na sequência de me ter incumbido de escolher os pimentos. Fi-lo com galhardia e desenvoltura. Alegre e contente, cantando e rindo. Três exemplares escorreitos, imaculados de um verde não muito carregado, elegantes no porte e esguios no formato. E foi um queres vê-la a matraquear-me o juízo com «mas que é isto, Joaquim Maria?! Pedi-te pimentos e tu trazes-me palmilhas de pantufa quase transparentes que nem um cortinado de pilheira? Anda cá, a ver se aprendes!»
Eu fui, sob protesto mas fui, que era para tanto que ali estava e a acompanhava. Afinal, D. Catarina era o general em campo da filha. E quando chegámos aos frescos enxuguei calado na audição da mestra.
«Vê bem: pega num pimento dos que escolheste, e agora neste. Qual a diferença?»
«No peso, na cor, até na forma… Este parece um cepo de vide, contorcido e atarracado. Pelo peso, como é maior, e isto paga-se a peso, também será mais caro. Pois» argumentei eu, para ela ficar ciente de que nisso do saber rústico e rural não me faltavam estudos – nem sentenças. Mas ela engalfinhou-se no «errado valdevinos! Este pimento está feito, está formado, logo tem todas as qualidades desenvolvidas, sabor, textura, sementes, odor, e começa a ganhar aquela pigmentação vermelha que lhe atesta a maturidade. Por conseguinte, dará o respetivo aroma e sabor aos cozinhados, conforme se espera que faça. Compreendido?»
«Claro. Tem razão, eu precipitei-me na escolha, foi o que foi.»
«Ótimo. Então, agora traz aí umas laranjas.»
Fui-me a elas. Havia-as em barda, avulso e em caixas, daqui e dali, em sacos de rede, umas grandes e outras pequenas, com o laranja mais desbotado ou carregado, mas todas, sem exceção, que nisso primavam pela unanimidade, todas cor-de-laranja, ainda que algumas se aparentassem na vestimenta com limões azedos. Calculei que as mais em conta seriam umas, rechonchudas, redondas de fazer inveja ao pôr-do-sol, casca encorpada e volumosa, e meti no saco de plástico, à vontade, quatro/cinco quilitos delas, rumando depois à viatura das mercadorias, na qual tinha investido 0,50€ só para armar em cavalheiro perante a mãe da dama dos meus celtiberos enredos. E foi com notório júbilo que as empunhei no ar, antes de as acomodar no carrinho, exibindo-as à generalíssima pessoa, tentando recuperar o amor-próprio abalado na anterior demanda. E aí a coisa deu-se. Dona Catarina dos meus tormentos, pôs as mãos na cabeça como quem se aflige por algum flagelo incontornável e lamentou-se num rogo condoído às criaturas divinas mais propícias ao lugar:
«Meu Deus; mas o que é isso, Joaquim Maria? Isso são lá laranjas! Achas que vamos comer cascabulho à sobremesa? Achas?»
Era óbvio que não achava, porém se lho confessasse que adiantaria? Quando ela se põe a rogar às alturas que intercedam em compaixão e dó para lhe melhorar a sua vida nesta terra, não há como ficarmos desatendidos e desadmirados ou des-surpreendidos com a tamanha fé e devoção que ela coloca nas suas preces. A minha cara de orgulho, antes, desceu num ápice às profundidades da vergonha, cujo semblante ensombreceu como se uma nuvem negra e tempestuosa tivesse cruzado os tetos da grande superfície e ofuscado as lâmpadas fosforescentes que os habitam. Ainda atalhei «mas D. Catarina, que mal pode haver em frutinhas tão vistosas e desempenadas…?», contudo ela cortou-me o pio com «não há mas, nem meio mas. Isto não presta, e não vou permitir que se leve para casa, fruta inchada que passou sede na sua criação, tal e qual como a barriga dos meninos do terceiro mundo, que se tornam barrigudos à força da fome que sofreram. Percebido?»
Amuei, e nem respondi. Responder o quê? Ainda não tinha enxugado a cara da última ensaboadela, ia logo de seguida arriscar-me a levar outra, por causa da resposta… Vai lá, vai!
Todavia, ela nem sequer notou o cuidado com que evitava demais agruras, e adiantou-se para as pedagogias levando-me a reboque que nem charrueco empanado. «Olha só: estas laranjas, têm muita casca, são airosas, mas não têm sumo nenhum. Já estas, vês, de casca fininha, pouco enrugada, como camisas agarradas ao corpo, são pesadas e, se forem doces, como suponho que sejam, serão bastante sumarentas, dando para comer gomo a gomo, como em sumo, para acompanhar as refeições… Vês a diferença?»
Vocês viram? Assim vi eu! Porém, não tugi nem mugi, que as sondagens não andavam lá muito abonatórias prò meu lado, ultimamente. Ainda me passou pela cabeça sublinhar o momento de carinho (idílio) familiar com o típico «obrigado, mamã» dos famosos óscares da cinefilia, contudo meti a viola no saco, temendo ser mal compreendido na gratidão e reconhecimento invocados. Deambulámos em par por entre estantes e prateleiras, na estiva da transferências de garrafas e enlatados prò veículo, ela fazendo reparos, eu ouvindo atento e compenetrado, sem novidade significativa.
Não obstante, a terceira nomeação não se fez rogada na demora. E foi dura. «Enquanto vou ali à carne, vai tu buscar o café, senão ela há de sair do serviço e nós com metade das compras por fazer. Ok?»
Fui. Escolhi seis embalagens do Delta Q, que é a máquina de serviço, tanto na casa dela como na minha, três Qalidus, intensidade máxima, e três Qharacter, com intensidade 9, imediatamente inferior à do Qalidus, e acondicionei-as junto às restantes mercearias. E quase recuperei o ânimo quando D. Catarina voltou, depositando os sacos com as carnes em sus sítio, como seria lógico que fizesse. Fomos ambos aos queijos, ovos e restantes lacticínios, sem a mínima altercação. Contudo, quando ela me explicava precisamente porque convinha levar mais latas de tomate cortado aos cubinhos do que em polpa ou somente pelados, eis que reparou nos cafés e pronto, deflagrou outro aceso discurso sobre o benefício da diversidade. «Joaquim Maria, para que é que queremos seis embalagens só de dois lotes e sabores? Não respondas, que eu sei bem porque é: porque é só desses que tu costumas beber. Esqueces, meu menino, que lá em casa não és só tu que bebes café, além do que nem somente bebemos café depois das refeições, e que durante a tarde ou as manhãs, com um biscoito ou bolachas, também molhamos o bico com este estimulante, sobretudo quando precisamos de arejar um pouco do que se está a fazer. E que nessas alturas, o conveniente, é baixarmos a intensidade à beberagem, nomeadamente para um aQtivus, Qonvictus, Qonvivium, e até um deQafeinatus, se preferirmos abster-nos de excitações contraproducentes. Se a grande vantagem deste tipo de máquinas está em podermos variar nas preferências porque é que vamos usar sempre o mesmo sabor, intensidade e aroma? Para isso tínhamos comprado uma máquina daquelas em que seja qual for o café que se mete no cachimbo sai sempre igual. Ou não?»
Não faço a mínima ideia da cara com que fiquei… Mas suponho que a terei contorcido numas quantas caretas de dor e sofrimento, consternação e angústia, bem esclarecedoras do tormento que se abatera sobre mim, porquanto a tua mãe se condoeu a pontos de me perguntar «estás bem? Estás doente? O que é que se passa contigo?» que me obrigou a descansá-la com o tradicional «não é nada. São só umas cólicas intestinais, se calhar causadas pelo almoço, em que abusei um pouquinho do tintol», fato plausível se atendermos às migas engolidas à pressão de copo repetidamente cheio pelos 14,5º de volume na velocidade do enquanto o diabo esfrega um olho.
E a coisa não tinha sido grave se não tivéssemos entrado no capítulo da portugalidade gastronómica. Coisa tradicional, o bacalhau, havia de me dar – finalmente – hipótese de brilhar. Havia mas não haveu, porque não deu! Eu conto: saído a salvo pelas ventas, salvo-seja: pelas expressões faciais, foi a vez de irmos ao peixe, incumbindo-me a excelsa senhora de entrar na fila do fiel amigo para nos aprovisionarmos do mesmo. Calhou-me, e eu esmerei-me. Fui-me ao mais caro, mais alto e de maior “copa”. Branquinho de pureza e salgadinho de quase fresco, ainda húmido. Estava já com ele na mão para entregar à empregada prò pesar e cortar em postas, quando D. Catarina me abordou com o «deixa ver, se vale a pena», e então o tsunami aconteceu. A pena virou vergasta e acertou-me no ego na máxima pujança. «Joaquim Maria, Joaquim Maria, então tu foste escolher a pior coisa que havia na banca? Tu não vês que vais pagar água e sal ao preço do bacalhau, e que este depois de cozido se esfiará como estopa para atacar cartuchos de bacamarte? Não vês que além de não estar curado é alto e depois leva dois dias, pelo menos, a dessalar cada posta? O bacalhau quer-se creme, seco, daquele que depois de cozido a posta se separará em lascas de gomosa espessura, saborosas e sem sal de assoprar nas tensões arteriais… Ok?»
Eu okezei de anuimento, disse que sim que entendia, mas tinha-me distraído com qualquer coiseca, fora o que fora, todavia ela suspirou um «ora, ´ta-se mesmo a ver que foi isso» de quem não acreditou nadinha nas desculpas, o que reiterou o combalimento de que ainda não recuperara. E implorei para que Shara aparecesse. Não ajoelhei implorando, mas pouco faltou. Até que as preces foram ouvidas e tu entraste no meu ângulo de visão, equipada a preceito com o teu gabão cor-de-rosa, a mala a tiracolo, as chaves do carro na mão esquerda, o dedo indicador direito sobre os lábios, num gesto pensativo, reflexivo, atenteando entre as fileiras de produtos à nossa procura. Não resisti. Chamei-te a plenos pulmões. Era como se no firmamento das minhas preocupações tivesse surgido uma estrela anunciadora, uma Boa Nova de libertação entre os enlatados e a bruma que evoluía dos congelados.
«Olha, olha, estamos aqui!»
E estávamos. Pelo menos eu estava, reconhecido e grato pela aparição. Podias ser um cometa, algo que aparece e desaparece seguidamente, mas não eras. Eras um raio luminoso na minha esperança fortemente vergastada pelas circunstâncias intempestivas da experiência consumidora que se tornou saber.
Calado agradeci às profundidades da alma ter-te por perto. E ao beijar-te, na saudação de boas-vindas, demorei a respirar o odor do teu cabelo e o “aroma” do teu olhar de alegria. Em verdade, o ramo (familiar) agitado que tanto, durante toda a tarde, cantara era o de tua mãe, mas a felicidade que me preenchera no fim dela, esse, sim, era totalmente teu, e por mais que tivesse a ver com o seu canto, nunca perderia o encanto que há em reencontrar-te.
E essa seria a singela novidade que Shara haveria de ter em conta quando te contasse a partida que me pregara – através das tuas ordens e chefia. Porque, pese embora, eu estranhar quando me tratas por Joaquim Maria, tu tinhas dias que nunca o fazias, e semanas até sem recorreres ao citado nomeamento. O que já não se podia dizer de tua mãe, que numa só tarde, quer dizer: duas horitas dela, por tal me nomeara pelo menos quatro vezes, e de forma bem sublinhada na soletração.
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