E Viva a Cultura!



As Lavadeiras de Caneças


"A esperança é tão necessária ao homem como o próprio pão; comer pão sem esperança equivale a ir morrendo de fome a pouco e pouco.
(...) (...) (...)
(...) Mas se toda a mocidade se achasse satisfeita consigo própria e sem aspirações, então é que sem dúvida deixaria de haver esperanças quanto ao futuro da Humanidade. A esperança da Humanidade assenta na rebelião dos jovens contra o egoísmo individual, o nacionalismo e as desigualdades do presente. É no profundo descontentamento dos jovens de todos os países que deposito a minha fé. Peço-lhes, por isso, que se mostrem descontentes, imploro-lhes que se revoltem contra o que anda errado, não por meio de fracos e negativos queixumes mas por meio de fortes afirmações acerca dos direitos de toda a Humanidade.
O maior prejuízo infligido aos jovens reside na educação que lhes têm ministrado. Com efeito, torna-se extremamente difícil lutar contra aquilo que nos ensinaram. (...)"
In Para As Minhas Filhas Com Amor, de Pearl S. Buck, trad. de Virgínia Mota, Edição «Livros do Brasil» Lisboa – (Título original: To My Daughters With Love – 1946)

Fomos desacostumados de pensar e agora estranhamos a lodosa apatia que nos assoberba. Todos sabemos que estamos nas lonas, que temos de alterar os nossos quotidianos e hábitos, expectativas, conhecimentos e valores, porém não mexemos uma palha nesse sentido. A minha avó dizia que a Preguiça(1) era a única divindade que aqui tinha culto crescente, tão promissora e na moda, que até os fiéis dos outros credos lhe seguiam o catecismo e lhe celebraram eucaristias, sobretudo entre os lusitanos da portugalidade evanescente. Gostava de exagerar, é certo, por muita leitura de Camilo e de Eça, a quem a desgraça e a ironia eram o pão nosso de cada dia, nem sempre sob os mais recreados propósitos no entretenimento bucólico e campesino do Monte da Tapada da Casa, onde a melhor parte do serão era também o do folhetim radiofónico d’O Conde de Monte Cristo ou de O Monte dos Vendavais, conforme a época do ano e a imaculada direção de programas da Emissora Nacional estipulavam para gáudio dos arredados do cosmopolitismo e do Teatro de Revista, do cinema e da TV (a preto e branco).
Não seria incomum aparecerem igualmente pelo mesmo veículo um Love Story ou As Pupilas do Sr. Reitor, A Morgadinha dos Canaviais, Miguel Strogof – penso ser assim que se escreve... – ou O Retrato de Ricardina e o Simplesmente Maria, embora com menos assiduidade e frequência entre os devotos do género não-Corin Tellado. Não diziam naquele tempo que audiência baixava, não senhora, mas que os ouvintes se dispersavam mais para os Discos Pedidos do Rádio Clube Português quando os ditos eram ditos e falados. Seria? Não seria? Fosse como fosse, é que os CTT também tinham larga quota de interesse nessa programação, porquanto os discos ainda eram pedidos por bilhete-postal, coisa substancial nas finanças da mala-posta que ainda alimentava os cavalos a pão-de-ló. Eram critérios!
Como hoje. E os critérios indicam que a Cultura vai ser tutelada pelo chefe do governo numa secretaria com cómodos junto ao seu gabinete. Coisa maneirinha e aconchegante, tipo casa portuguesa com (certeza) fotografias do presidente e do primeiro-ministro a ladear o crucifixo, modelo tirado ao calvário com Cristo entre criminosos, pelo que José Saramago deve estar contentíssimo, lá debaixo da oliveira da Azinhaga e contaminar de cochinilha os bicos da Fundação... A cultura, a língua, a arte, a literatura, a ética e a estética vão finalmente estar próximas do poder central, do poder sobre o poder, a bem dizer, e talvez venham a partilhar das benesses e mordomias da vizinhança. Como mulher-a-dias, por exemplo!
A gramática do Estado, a lógica da organização e a retórica do programa eleito, hão de ditar o bom gosto e o bom senso conforme as questões sociais assim o inspirarem, a Troika o impuser e a Assembleia da República não conseguir evitar. As lavadeiras de Caneças é que não poderão estar presentes que andam a braços com as novas oportunidades e os maiores de 23. A roupa suja terá que ser repartida pelos condóminos, segundo o Método de Hondt, e de acordo com os critérios notoriamente sublinhados pelas forças conservadoras adeptas do faz-de-conta que vivemos depois do 25 de Abril com que nos temos divertido há, pelo menos, trinta anos e trinta moedas, que foi por quanto os judas deste país o venderam à banca internacional e ao BCE.
Portanto, é provável que voltemos ao folhetim se a cultura aguentar esta doce magistratura no recato bucólico da confiança e paciência que costuma ser argumento válido para os novos, para os estúpidos e para o insuficientes mentais. Do tipo Love Storyamar é nunca ter que pedir desculpa, sentença linda e kitsch como um repolho do Bordalo, que um personagem, lembro-me ainda, terá dito a páginas tantas ao outro com quem aparelhava nos varais da narrativa, não sei se ele a ela ou se ela a ele, mas desconfio que pelo prevenir do borrar da pintura seria do macho prà fêmea, que naquele tempo dependia muito da sorte o ser considerada não-coisa, não-propriedade de género – que foi um rasgo de modernidade marcelista, onde ela, pobre, bibliotecária ou ajudante disso, que mais tarde morreria de doença incurável (cancro), e ele, rico e playboy, a vítima sofredora sob as mãos de um amor infinito e de um destino implacável, o direto contemplado pela fatalidade gritante – o coitadinho e incompreendido pelos deuses – e que veio temperar a lamechice pacóvia com as matizes do “mundo avançado” das ideias e dos progressos, alguns deles de natureza científica e tratados como fait-divers domingueiros nas conversas de café antes da missa, entre os matemáticos do sistema com matriz nos totobolas e lotarias por estratégias.
O que era uma vingança, e uma demonstração de democracia. Porque a crueldade da dor, da doença, da perda, do destino, eram democráticas e não queriam saber das mordomias sociais desta ou daquela classe mais favorecida. A morte e a desgraça ceifavam a eito, tanto carecidos e minguados como abastecidos e afortunados, embora que por diferentes motivos e na sequência de causas muito díspares, uns pelos excessos e outros pelas faltas – o que desconheço se estava ou não conforme a obra literária, que nisso das adaptações radiofónicas os criativos pontuavam, ajeitando-as à portugalidade conforme entendiam sem passar cavaco às determinações dos autores. Mas no fim, não obstante a condição social, o resultado ficava sempre no ela por ela: sete palmos de terra e um sermão encomendador.
Nisso as lavadeiras de Caneças estavam de acordo. Enquanto espanejam as roupas dos senhores aproveitavam para lavar também os olhos lacrimejando sobre o ingrato desfecho do folhetim. Viradas prò rio, a roupa suja diluia-se entre nuvens de condoída retórica acerca da juventude que em vez de estudar e ajudar a família, anda na moina e a bandeirar palavras de ordem nas irrequietas arruaças do reivindicar melhores dias. Quando o fez contra o Magalhães tinha carradas de razão. Porém agora, que recusa colaborar nas políticas da corrupção e da insustentabilidade, pode vir a ser apelidada de terrorista ou, pior ainda, conforme se viu na Assembleia da República acerca da deseleição de Fernando Nobre, de independente. E isso, essa classificação, vai ser indubitavelmente um ato de cultura. E que cultura!


(1)Personagem mítica que morreu à sede junto a uma fonte só para não esticar o pescoço para saciar-se

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