Será que agora é que isto muda?

O Interior e a Sorte-Grande

"Não tomando em desprezo o escuro estado
em que me pôs Fortuna e Natureza,
olhastes sem horror minha baixeza
e fizestes sentar-me ao vosso lado.

Então, de ingrata obrigação chamado
deixei à força a companhia e a mesa;
e inda cheio de ideias de grandeza,
vim dar por tema um verbo conjugado.

Não sei com dous opostos conformar-me;
sofrem-me os grandes, sou taful e moço,
não sei a «senhor mestre» costumar-me.

Tais extremos, Senhor, unir não posso;
de dous génios não sou. Mandai fechar-me
ou a minha aula, ou o palácio vosso."

Nicolau Tolentino, poeta português do século XVIII


A principal característica do Interior é que continua a ser Interior mesmo quando fica de fora. De fora do discurso político; de fora do desenvolvimento sócio-económico; de fora de mão, quando se empreende caminho rumo ao futuro.
Tanto quanto me apercebi, dos discursos presidencial como do do comissário da celebração do 10 de Junho, o primeiro recado de ambos foi dirigido aos políticos e, se Barreto recomendou que estes devem falar mais e desavirem-se menos, da parte do nosso presidente da República reiterou a recomendação repetindo que devem entender-se melhor. Anibal Cavaco Silva, não se ficou porém pelo alvitre e indicou mesmo em que direção esse entendimento deveria ser feito: no sentido de encontrar soluções para sairmos da crise e colmatar as assimetrias interior versus litoral.
A preocupação é serôdia. Não é de agora que o despovoamento, um dos maiores passos para a desertificação, se aliado a ele vierem as alterações climáticas, está na ordem do dia, e nem assim se evitou a sangria da população ativa do eixo norte-sul fronteiriço a Espanha, além do que não basta eleger dois ou três eventos nacionais, dois ou três produtos de qualidade desta ou daquela parcela do território, para que daí resultem melhorias substanciais na qualidade de vida das pessoas e desenvolvimento sustentado nessas regiões. Descobrir o interior sem ter apostas contundentes e continuadas em estratégias ou planos/programas de marketing territorial seriamente gizados e executáveis, é o mesmo que ir ao contrário do já anteriormente afirmado por Séneca e citado pelo nosso presidente um dia antes, a propósito e em homenagem a um douto de Castelo Branco, onde se sublinha o facto de quem não sabe para onde ruma nenhum vento lhe é favorável.
Estranho, porém, que há, se feitas as contas em baixa, coisa de vinte/vinte e cinco anos a constatação tenha servido periodicamente de assunto e retórica de quase todos os quadrantes políticos com assento parlamentar, sobretudo durante o tempo em que havia dinheiro para "engordar" o litoral, quer em população como em infra-estruturas, no tecido empresarial como nas linhas de produção de mão-de-obra especializada a que comummente chamamos universidades, e que apenas agora, que estamos em crise económica-financeira, política e ética, é que o interior esteja a ser convocado para contribuir com o seu esforço e sacrifício para a estabilização nacional... Porque será? É certo que estamos a 200 quilómetros do litoral, mais propriamente de Lisboa, o que é comum a grande parte do país, cujos caminhos vão sempre dar ao mesmo sítio – a capital. Agora vá uma empresa sediar-se em Santa Eulália, que para pôr os seus produtos à venda na Beirã, tem maiores custos de transporte do que se forem pròs Restauradores!
O interior está servido de estruturas rodoviárias, é óbvio. Mas para qualquer empresa deste interior tão propalado fazer a distribuição dos seus produtos precisa de uma frota transportadora que o encarece e o torna não-competitivo com os congéneres do mercado. Que adianta falar no interior português no dia de todos nós se amanhã continuarmos com as mesmas dificuldades que já tínhamos há vinte e cinco anos? O meu concelho já teve 28 mil habitantes e agora tem 23. O meu distrito já elegeu três deputados para a Assembleia da República e agora só dois. O meu Alentejo já foi quase uma região, até teve uma CCRA, e muitas das freguesias têm os dias contados, alguns concelhos serão fundidos e a reforma administrativa ou territorial irá dar-lhe novos contornos e limites conforme prescrição da Troika. Apenas uma consolação nos resta: é que venha o que vier, diga-se o que se disser, havemos de continuar a ser sempre o interior de que se fala.
E falarem da gente é uma grande coisa... Uma sorte!

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