Mudam-se os tempos mas não as tradições e mentalidades...
Das estranhezas que o mundo tem acerca de nós...
Às vezes, se vasculharmos autores e obras antigas, encontramos muitas referências ao que somos, ou pontos prenunciadores de caráter deveras enunciativos daquilo em que nos iríamos tornar, se consumados que fossem os séculos que nos separaram entre a pesquisa e a criação em causa. Talvez sejam apontamentos proféticos. Talvez não. Ao certo, de garantido e afiançado, é que são recuperáveis se para tanto nos assistir, não o engenho e arte, mas a lógica das comparações plausíveis e verificáveis a olho nu, quer dizer, transparentes e desprovidas de percepção motivada.
Por conseguinte, neste universo da ecomimia – repetição automática mais ou menos difusa na mímica dos interlocutores políticos e sociais – semântica, creio ser frutífero desfraldar a surpresa, tal como já noutro tempo fez Nicolau Tolentino acerca das caraterísticas e traços de identificação entre portugueses e outros povos, nomeadamente espanhóis e nórdicos.
“Passei o rio que tornou atrás,
Se acaso é certo o que Camões nos diz,
Em cuja ponte um bando de aguazis
Registam tudo quanto a gente traz.
Segue-se um largo. Em frente dele jaz
Longa fileira de baiúcas vis.
Cigarro aceso, fumo no nariz,
É como a companhia ali se faz.
A cidade por dentro é fraca rês;
As moças põem mantilha e andam sós,
Têm boa cara, mas não têm bons pés.
Isto, coifas de prata e de retrós,
E a cada canto um sórdido marquês,
Foi tudo quanto vi em Badajoz.”
Nicolau Tolentino
[Nota de Rodrigues Lapa acerca do poema, embora com nova redação consentânea ao momento, que merece ser transcrita pela sua acuidade semântica: eis um soneto dos mais perfeitos de Tolentino, soberba descrição dos costumes espanhóis e da cidade de Badajoz, em que não falta sequer a referência ao traço distintivo da sociedade vizinha onde as raparigas, ao contrário da nossa em que mal saíam à rua, andavam frequentemente desacompanhadas. Datará da época em que o poeta esteve em Évora (1765-1767) e terá dado alguma saltada àquela cidade fronteiriça. De salientar a alusão ao conhecido verso de Os Lusíadas, Canto IV, est. 28, " ... e Guadiana / Atrás tomou as ondas de medroso", quando se ouviram, em Aljubarrota, as trombetas castelhanas; ou, como nos fins do século XVIII, ainda não se tinha popularizado o uso de fumar cigarros, sendo antes utilizado, geralmente, para sorver pelo nariz (rapé), ilustrando o hábito com citação, que está na base desta surpresa do autor: «Em Portugal, escrevia C. J. Ruders na carta 18ª da Portugisisk Resa (Stokolm, 1805), o tabaco não é fumado por ninguém, a não ser pela plebe baixa, que se serve, para isso, de grãos de tabaco embrulhados numa tira de papel a que se pega fogo. Cachimbos de barro ou de espuma não são usados senão por estrangeiros, e causam sempre a admiração de todos. Mas o consumo indígena do rapé é muito considerável, porque quase todos os portugueses o cheiram.»]
Ora, recentemente notícia, aconteceu que nos "exames" dos estudantes dos futuros juizes, por estes terem copiado e além disso, sido apanhados a fazê-lo, foi dada a nota de 10 valores a todos, em vez de zero como mereciam. Quem faz batota para poder vir a exercer a magistratura, já muito bem se lhe adivinha o tipo de justiça que há de vir a ministrar...
E isto traz-me à memória o que me contou alguém que foi numa ação complementar de formação a Estocolmo. Com essa pessoa, durante o almoço, alguém junto dela comentou sobre os exames que fizera, entre outras coisas, que não tinha ninguém na sala, além dos alunos, que vigiassem os examinandos. E que tal era habitual, melhor dito: usual e comum, em todos os escalões etários e graus de ensino. Então a portuguesa em causa, surpreendida e incrédula, inquiriu:
«E não copiaste?»
Ao que obteve por resposta um seco «para quê? Quem é que ganha com isso?» que era tudo menos ingénuo e inocente. Antes assertivo e determinativo.
Pelos vistos, os nórdicos podem continuar a achar que somos estranhos desde os tempos em que fazíamos charros com sementes de tabaco. Entre outras generalidades, todos copiamos e até – pasme-se! – ganhamos algo com isso. Ganhamos estatuto. Ganhamos poder. Ganhamos riqueza. Justiça é que não devemos ganhar muita, uma vez que para se ser juiz basta copiar mais um pouco, com expediente e desembaraço, que a nota de dez está garantida para quem for apanhado.
E depois os estrangeiros é que são estranhos!
Às vezes, se vasculharmos autores e obras antigas, encontramos muitas referências ao que somos, ou pontos prenunciadores de caráter deveras enunciativos daquilo em que nos iríamos tornar, se consumados que fossem os séculos que nos separaram entre a pesquisa e a criação em causa. Talvez sejam apontamentos proféticos. Talvez não. Ao certo, de garantido e afiançado, é que são recuperáveis se para tanto nos assistir, não o engenho e arte, mas a lógica das comparações plausíveis e verificáveis a olho nu, quer dizer, transparentes e desprovidas de percepção motivada.
Por conseguinte, neste universo da ecomimia – repetição automática mais ou menos difusa na mímica dos interlocutores políticos e sociais – semântica, creio ser frutífero desfraldar a surpresa, tal como já noutro tempo fez Nicolau Tolentino acerca das caraterísticas e traços de identificação entre portugueses e outros povos, nomeadamente espanhóis e nórdicos.
“Passei o rio que tornou atrás,
Se acaso é certo o que Camões nos diz,
Em cuja ponte um bando de aguazis
Registam tudo quanto a gente traz.
Segue-se um largo. Em frente dele jaz
Longa fileira de baiúcas vis.
Cigarro aceso, fumo no nariz,
É como a companhia ali se faz.
A cidade por dentro é fraca rês;
As moças põem mantilha e andam sós,
Têm boa cara, mas não têm bons pés.
Isto, coifas de prata e de retrós,
E a cada canto um sórdido marquês,
Foi tudo quanto vi em Badajoz.”
Nicolau Tolentino
[Nota de Rodrigues Lapa acerca do poema, embora com nova redação consentânea ao momento, que merece ser transcrita pela sua acuidade semântica: eis um soneto dos mais perfeitos de Tolentino, soberba descrição dos costumes espanhóis e da cidade de Badajoz, em que não falta sequer a referência ao traço distintivo da sociedade vizinha onde as raparigas, ao contrário da nossa em que mal saíam à rua, andavam frequentemente desacompanhadas. Datará da época em que o poeta esteve em Évora (1765-1767) e terá dado alguma saltada àquela cidade fronteiriça. De salientar a alusão ao conhecido verso de Os Lusíadas, Canto IV, est. 28, " ... e Guadiana / Atrás tomou as ondas de medroso", quando se ouviram, em Aljubarrota, as trombetas castelhanas; ou, como nos fins do século XVIII, ainda não se tinha popularizado o uso de fumar cigarros, sendo antes utilizado, geralmente, para sorver pelo nariz (rapé), ilustrando o hábito com citação, que está na base desta surpresa do autor: «Em Portugal, escrevia C. J. Ruders na carta 18ª da Portugisisk Resa (Stokolm, 1805), o tabaco não é fumado por ninguém, a não ser pela plebe baixa, que se serve, para isso, de grãos de tabaco embrulhados numa tira de papel a que se pega fogo. Cachimbos de barro ou de espuma não são usados senão por estrangeiros, e causam sempre a admiração de todos. Mas o consumo indígena do rapé é muito considerável, porque quase todos os portugueses o cheiram.»]
Ora, recentemente notícia, aconteceu que nos "exames" dos estudantes dos futuros juizes, por estes terem copiado e além disso, sido apanhados a fazê-lo, foi dada a nota de 10 valores a todos, em vez de zero como mereciam. Quem faz batota para poder vir a exercer a magistratura, já muito bem se lhe adivinha o tipo de justiça que há de vir a ministrar...
E isto traz-me à memória o que me contou alguém que foi numa ação complementar de formação a Estocolmo. Com essa pessoa, durante o almoço, alguém junto dela comentou sobre os exames que fizera, entre outras coisas, que não tinha ninguém na sala, além dos alunos, que vigiassem os examinandos. E que tal era habitual, melhor dito: usual e comum, em todos os escalões etários e graus de ensino. Então a portuguesa em causa, surpreendida e incrédula, inquiriu:
«E não copiaste?»
Ao que obteve por resposta um seco «para quê? Quem é que ganha com isso?» que era tudo menos ingénuo e inocente. Antes assertivo e determinativo.
Pelos vistos, os nórdicos podem continuar a achar que somos estranhos desde os tempos em que fazíamos charros com sementes de tabaco. Entre outras generalidades, todos copiamos e até – pasme-se! – ganhamos algo com isso. Ganhamos estatuto. Ganhamos poder. Ganhamos riqueza. Justiça é que não devemos ganhar muita, uma vez que para se ser juiz basta copiar mais um pouco, com expediente e desembaraço, que a nota de dez está garantida para quem for apanhado.
E depois os estrangeiros é que são estranhos!
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