Grabato e Knopfli: um diálogo sem pudores de interiorização
TESES EM CONDOMÍNIO FECHADO
7. Grabato Dias e Rui Knopfli: diálogo adiado que se retoma irreflectidamente mas sem pudores de intercepção (e interiorização)
... Dado que ficou líquido que os computadores portáteis facilitam escrever como quem está "sentado sob a luz que do alto / desce" (RK), à semelhança das ardósias e papiros que "houve, outrora, em que as palavras / vertiginosa enxurrada, me acudiam desenvoltas / à memória", "sobre a pedra dura do tempo / mal distintos mas acidulados sinais" (idem), é legítimo que os escribas de hoje reabilitem, através dos seus blogs, os que antes deles viveram e não dispuseram da excelência do suporte electrónico, para que assim continuem a pintalgar de cristalinas luminosidades as nebulosas imagéticas, estabelecendo constelações de entendimento compatíveis às astronomias interiores, sublinhando a intemporalidade da sua arte para além do que lhes durou a vida e a fama, como registo de renascimento e tentativa de continuidade. Os escribas de agora lho devem com humildade; os de amanhã o merecem, como prova de gratidão pela atenção que lhe dispensam.
Porque actualmente somos excelsos privilegiados face a eles, porquanto podemos privar com os consortes da nossa tribo sem rebuços esclavagistas, a fim de partilhar, comungar, reprovar, discutir, exibir, rever constantemente e autenticar (pela justificação como pelo contraditório), a relevância das nossas conjecturas e/ou criações, as teorias como a execução delas, as teses e sua experimentação, com o círculo de amizades, ao inverso do que eles fizeram, em reuniões que estavam centradas num determinado espaço-quando público, que se encontra agora espalhado por todo o mundo, ficando no entanto ao alcance de todos e cada qual, o que era só de alguns, e sem os condicionalismos económicos, de etiqueta e de modos, de tempo e de pronúncia, de visibilidade pública (também dito de espectáculo de presença, folclore literário correntista, estímulo e incentivo de excentricidades várias), que felizmente muito pouco têm a ver com a literatura, embora tenham contribuído sobremaneira para a (re)produção da imagem do literato, comummente visto como uma figura, um cromo, espécie de actor sem palco, hiperbolicamente caricaturado como lunático e absorto inadaptado, prenhe de desencantado amargor ou sentida e angustiada solidão, traumatizante mas revertida em letras pelos consanguíneos da palavra ultramelancólica, exemplificada por diversos textos de José Duro, Baudelaire, Nietszche, Rimbaud, Bataille, Verlaine, António Nobre, Proust, Florbela Espanca, Sá-Carneiro, Mallarmée, Ângelo Lima, Jean Coucteau, etc., etc., por aí fora, que emprestou a típica nuança sofredora à literatura, lhe anexou a insatisfação existencialista, essa modelar viscosidade de náusea, de nojo, de luto quase vómito, que a conformou durante largos anos no arquipélago do niilismo, nublado pelas laivosas travessuras dos fetichistas do eu. Do antropocentrismo mórbido do absoluto EU.
Aquele encontro civilizacional, banho de cultura, deixou assim de ser feito periodicamente, com hora e lugar marcado, convivas seleccionados, traje a rigor para ocasião, visto ser possível a qualquer instante, estando cada em seu ambiente e sítio geográfico, sem notícia indumentária nem sob o olharento atrito social costumeiro, precisão de jogos e salamaleques sociais de bem parecer e melhor fingir, ou impressionar de então: faz-se no blog, via e-mail ou comentário, sempre que nos dá na gana fazê-lo, sem correr o risco de incomodar ou ser interrompido, necessitar de bater à porta, recear ser descabido nas observações, armar em intelectualóide ou cair em despropósito, corresponder a exigências maneiristas, considerado bajulador ou vampiresco, nem honrar o (re)conhecimento e favor particular a quem o introduziu (iniciou) na esfera tertuliana. Por quanto os blogs nunca foram, não são nem jamais virão a ser, editoras ou órgãos de comunicação social. São instrumentos de trabalho, ferramentas úteis e comuns a diversos profissionais de socialização, incluindo os criadores artísticos ou os protagonistas da intervenção estético-filosófica na sociedade. Em resumo, perdeu-se a perdição das beberagens absínticas, as noctívagas ressonâncias e excessos de boémia, mas ganhou-se a liberdade para a consumação da amizade escribista, sem os traçados e matrizes da formalidade dos pré-concebidos no affaire.
Por isso importa trazer para aqui, para este local de desacautelação livre e aferência valorativa que é o blog, cada um dos que também assim estariam escribando, se ainda vivos e fisicamente o pudessem fazer. Em nome da justiça e honestidade literária, por solidariedade, reconhecida amizade e empatia, galhardia por que pugnaram, mas que em troca receberam desdém, a indiferença intencional dos seus irmãos de pátria, qual sublimidade que no seu entender foi irremediavelmente a língua em que se expressaram. Dando-se, e com eles, reflectido o silabado mundo em que viveram, para a posteridade possível.
A fala do escriba
"Servidor incorruptível da verdade e da memória escrevo sentado e obscuro palavras terríveis de ignomínia e acusação. Animal cauteloso, escrevendo escrevo-me, retraçando um velho ritual, venho de longe, no verbo latino, no axioma grego; fui escravo no Egipto, engendrei filhos, plantei a árvore, ergui pedra a pedra uma morada. A História que há-de ler-se é por mim escrita.
Tenho a pátria nas línguas em que me digo e aos espectadores silenciosos na treva da oficina, sonhos, ângulos, esquinas e arestas, formas, objectos e panejamentos que ganham dimensão e vida própria, instantes suspensos conjecturando se espaço e terra e eu, elos da mesma continuidade cósmica, pensando em uníssono, constituem fracções de um acabado e unívoco todo, edificação imemorial, porém exacta e ameaçada de ruína, na abside que rompe, deflagrando solene e morosa no modelar das estações, ao ritmo pendular dos dias precedendo as noites.
Porque neste corpo, liso barro rigoroso, o sexo é o meu alcalóide total, que me dá o conforto nocturno do teu corpo de sol, o torpor dos teus braços, a memória do teu sangue, o olvido do teu ventre, por quem em viagens só, meu coração bate contra a pedra do silêncio, como Cão do Nilo sobrevivendo entre o ranger metálico das culatras e o bafo cálido da pólvora.
Escrevo contra o silêncio. Não tenho já nome aqui, a minha voz nasce no deserto, vertical e desnuda, e rompe lâmina cega, porém exacta; bate na pedra, azorrague de fogo, irreconhecível e rouca, sulfurosa e purificante. Mas tudo quanto havia para dizer, eu o disse, com frontal clareza."
(Adaptação livre e prosaica de O Escriba Acocorado, de Rui Knopfli, começado a escrever em Lourenço Marques, em 1971, e terminado em Londres, em 1977, segundo é explícito in Memória Consentida: 20 anos de Poesia 1959 / 1979.)
Calibans dos (além) mares
João Pedro Grabato Dias (GD) e RK cruzaram-se essencialmente através do convívio diário, que ainda é hoje o principal veículo de influência mútua, por maiores que sejam as idiossincrasias que separem os indivíduos. Em Moçambique, e da edição conjunta dos cadernos Caliban, onde reuniram, por exemplo e entre outros, colaboradores como José Craveirinha, Jorge de Sena, Herberto Helder, António Ramos Rosa, Sebastião Alba, Fernando Assis Pacheco, e publicaram traduções de quase todos os grandes nomes da poesia (ficção e crítica) daqueles tempos e conforme a Primavera marcelista ia permitindo penetrar na lusofonia, graças à enorme ignorância literária dos mentores e fiscais culturais do Estado Novo: Erza Pound, Yeats, Apollinaire, Octávio Paz, Reverdy, René Char, Sylvia Plath, Kavafis, Robert Lowell, Blake, Dylan Thomas, T. S. Eliot, etc., etc.
(Àparte necessário:
Algumas pessoas mostram-se apreensivas e desorientadas perante a atitude escribalista. Não sabem que pensar de algo que parece brincadeira mas é muito a sério. De uma actividade que é deveras nova embora já seja exercida há milhares de anos. De pessoas que utilizam os recursos da modernidade e do progresso para produzir precisamente o mesmo que se criava na ancestralidade antiga, e que terá chegado à península ibérica como terão chegado os cavalos oriundos da Mongólia, em resultado de sucessivas invasões, embora através de meios tão rudimentares e obsoletos como a argila e estilete de cana afiada.
E têm razão. Estão não só no seu direito como obrigação de estranhar. Fazem carradas de bem aos escribalismo emprestando-lhe a sua sã desconfiança. Porque isso prova que sobrevivem de forma infra-humana, estão reduzidos aos brochados fundamentais, sentem sadio receio por tudo quanto desconhecem à semelhança dos primitivos da savana, ainda adormecem de balalaica ao peito, andam de gatinhas face aos poderes instituídos e seus poderosos representantes ou algozes, esperam sebastiões de qualquer fumaça desportiva – mundial, europeu, torneio de matraquilhos... – que os leve às quibíricas da humilhação, desprezam a língua em que se expressam e são imensamente felizes na sua bem-aventurada cobardia e carência cívica ou cognitiva. O que é esta, indubitavelmente, a melhor maneira de afastarem os escribas do seu convívio e influência, deixando-os assim livres e disponíveis para exercerem os seus misteres, isentos da sua perniciosa e perversa mentalidade, moral abjecta, numa espécie de vacinação do papiro contra a mediocridade e desinteria emocional que lhes subordina a consciência, e faz com que abanem o rabo e lambam as botas a qualquer salazar que lhe esguiche o veneno em que se destilam. Enfim, facilitando-lhe a maneira adequada para os escribas se afastarem deles sem pejo, constrangimento ou remorso, que sem dúvida sentiriam se o fizessem por iniciativa própria. Pelo que a sua aversão ao escribalismo é a sopa no mel que faltava, e o maior favor que os arruaceiros das bandeirinhas podiam fazer à humanidade, uma vez que permite que aqueles que efectivamente se preocupam com ela, se lhe dediquem por inteiro, sem perder demasiado tempo com empecilhos.
Sobretudo porque a maior parte destes insignes proprietários da coisa mental até têm cursos superiores e são respeitosamente agraciados com os ícones da pedantocracia, que lhes alimenta a peeira de consciência e os torna benquistos nos sufrágios locais, nacionais e internacionais. O que gera e denota alguma curiosidade científica, já que não obstante a sua primorosa formação reajam ao escribismo com igual desenvoltura que a Igreja inquisitória reagiu a Galileu, ou semelhante à daqueles tempos faraónicos em que ele, o escriba, era mandado queimar vivo ou lhe decepavam os membros superiores sempre que se esquecia de tecer loas ou louvores ao seu senhor e amo em qualquer reportagem sobre uma noite de chuva que contribuiu para o alagamento do leito e delta do Nilo. E exactamente as mesmas pessoas que ulularam ovações, bateram palmas, estouraram foguetes e abriram tendas de "comes & bebes" no recinto fronteiro à execução sumária e efectiva dos condenados pelas sentenças imperiais e religiosas, sob as quais enorme número de escribas pereceu: a estirpe dos bem pensantes, proprietários da razão como da dúvida. Senhores únicos do direito à prosperidade e reconhecimento dos seus pares (e ímpares – que para os seus confrades de despotismo, não só é um merecido direito mas também uma concessão divina, para quem todos os números contam e argumentam irrefutavelmente).
O que GD realmente não desconhecia.
7. Grabato Dias e Rui Knopfli: diálogo adiado que se retoma irreflectidamente mas sem pudores de intercepção (e interiorização)
... Dado que ficou líquido que os computadores portáteis facilitam escrever como quem está "sentado sob a luz que do alto / desce" (RK), à semelhança das ardósias e papiros que "houve, outrora, em que as palavras / vertiginosa enxurrada, me acudiam desenvoltas / à memória", "sobre a pedra dura do tempo / mal distintos mas acidulados sinais" (idem), é legítimo que os escribas de hoje reabilitem, através dos seus blogs, os que antes deles viveram e não dispuseram da excelência do suporte electrónico, para que assim continuem a pintalgar de cristalinas luminosidades as nebulosas imagéticas, estabelecendo constelações de entendimento compatíveis às astronomias interiores, sublinhando a intemporalidade da sua arte para além do que lhes durou a vida e a fama, como registo de renascimento e tentativa de continuidade. Os escribas de agora lho devem com humildade; os de amanhã o merecem, como prova de gratidão pela atenção que lhe dispensam.
Porque actualmente somos excelsos privilegiados face a eles, porquanto podemos privar com os consortes da nossa tribo sem rebuços esclavagistas, a fim de partilhar, comungar, reprovar, discutir, exibir, rever constantemente e autenticar (pela justificação como pelo contraditório), a relevância das nossas conjecturas e/ou criações, as teorias como a execução delas, as teses e sua experimentação, com o círculo de amizades, ao inverso do que eles fizeram, em reuniões que estavam centradas num determinado espaço-quando público, que se encontra agora espalhado por todo o mundo, ficando no entanto ao alcance de todos e cada qual, o que era só de alguns, e sem os condicionalismos económicos, de etiqueta e de modos, de tempo e de pronúncia, de visibilidade pública (também dito de espectáculo de presença, folclore literário correntista, estímulo e incentivo de excentricidades várias), que felizmente muito pouco têm a ver com a literatura, embora tenham contribuído sobremaneira para a (re)produção da imagem do literato, comummente visto como uma figura, um cromo, espécie de actor sem palco, hiperbolicamente caricaturado como lunático e absorto inadaptado, prenhe de desencantado amargor ou sentida e angustiada solidão, traumatizante mas revertida em letras pelos consanguíneos da palavra ultramelancólica, exemplificada por diversos textos de José Duro, Baudelaire, Nietszche, Rimbaud, Bataille, Verlaine, António Nobre, Proust, Florbela Espanca, Sá-Carneiro, Mallarmée, Ângelo Lima, Jean Coucteau, etc., etc., por aí fora, que emprestou a típica nuança sofredora à literatura, lhe anexou a insatisfação existencialista, essa modelar viscosidade de náusea, de nojo, de luto quase vómito, que a conformou durante largos anos no arquipélago do niilismo, nublado pelas laivosas travessuras dos fetichistas do eu. Do antropocentrismo mórbido do absoluto EU.
Aquele encontro civilizacional, banho de cultura, deixou assim de ser feito periodicamente, com hora e lugar marcado, convivas seleccionados, traje a rigor para ocasião, visto ser possível a qualquer instante, estando cada em seu ambiente e sítio geográfico, sem notícia indumentária nem sob o olharento atrito social costumeiro, precisão de jogos e salamaleques sociais de bem parecer e melhor fingir, ou impressionar de então: faz-se no blog, via e-mail ou comentário, sempre que nos dá na gana fazê-lo, sem correr o risco de incomodar ou ser interrompido, necessitar de bater à porta, recear ser descabido nas observações, armar em intelectualóide ou cair em despropósito, corresponder a exigências maneiristas, considerado bajulador ou vampiresco, nem honrar o (re)conhecimento e favor particular a quem o introduziu (iniciou) na esfera tertuliana. Por quanto os blogs nunca foram, não são nem jamais virão a ser, editoras ou órgãos de comunicação social. São instrumentos de trabalho, ferramentas úteis e comuns a diversos profissionais de socialização, incluindo os criadores artísticos ou os protagonistas da intervenção estético-filosófica na sociedade. Em resumo, perdeu-se a perdição das beberagens absínticas, as noctívagas ressonâncias e excessos de boémia, mas ganhou-se a liberdade para a consumação da amizade escribista, sem os traçados e matrizes da formalidade dos pré-concebidos no affaire.
Por isso importa trazer para aqui, para este local de desacautelação livre e aferência valorativa que é o blog, cada um dos que também assim estariam escribando, se ainda vivos e fisicamente o pudessem fazer. Em nome da justiça e honestidade literária, por solidariedade, reconhecida amizade e empatia, galhardia por que pugnaram, mas que em troca receberam desdém, a indiferença intencional dos seus irmãos de pátria, qual sublimidade que no seu entender foi irremediavelmente a língua em que se expressaram. Dando-se, e com eles, reflectido o silabado mundo em que viveram, para a posteridade possível.
A fala do escriba
"Servidor incorruptível da verdade e da memória escrevo sentado e obscuro palavras terríveis de ignomínia e acusação. Animal cauteloso, escrevendo escrevo-me, retraçando um velho ritual, venho de longe, no verbo latino, no axioma grego; fui escravo no Egipto, engendrei filhos, plantei a árvore, ergui pedra a pedra uma morada. A História que há-de ler-se é por mim escrita.
Tenho a pátria nas línguas em que me digo e aos espectadores silenciosos na treva da oficina, sonhos, ângulos, esquinas e arestas, formas, objectos e panejamentos que ganham dimensão e vida própria, instantes suspensos conjecturando se espaço e terra e eu, elos da mesma continuidade cósmica, pensando em uníssono, constituem fracções de um acabado e unívoco todo, edificação imemorial, porém exacta e ameaçada de ruína, na abside que rompe, deflagrando solene e morosa no modelar das estações, ao ritmo pendular dos dias precedendo as noites.
Porque neste corpo, liso barro rigoroso, o sexo é o meu alcalóide total, que me dá o conforto nocturno do teu corpo de sol, o torpor dos teus braços, a memória do teu sangue, o olvido do teu ventre, por quem em viagens só, meu coração bate contra a pedra do silêncio, como Cão do Nilo sobrevivendo entre o ranger metálico das culatras e o bafo cálido da pólvora.
Escrevo contra o silêncio. Não tenho já nome aqui, a minha voz nasce no deserto, vertical e desnuda, e rompe lâmina cega, porém exacta; bate na pedra, azorrague de fogo, irreconhecível e rouca, sulfurosa e purificante. Mas tudo quanto havia para dizer, eu o disse, com frontal clareza."
(Adaptação livre e prosaica de O Escriba Acocorado, de Rui Knopfli, começado a escrever em Lourenço Marques, em 1971, e terminado em Londres, em 1977, segundo é explícito in Memória Consentida: 20 anos de Poesia 1959 / 1979.)
Calibans dos (além) mares
João Pedro Grabato Dias (GD) e RK cruzaram-se essencialmente através do convívio diário, que ainda é hoje o principal veículo de influência mútua, por maiores que sejam as idiossincrasias que separem os indivíduos. Em Moçambique, e da edição conjunta dos cadernos Caliban, onde reuniram, por exemplo e entre outros, colaboradores como José Craveirinha, Jorge de Sena, Herberto Helder, António Ramos Rosa, Sebastião Alba, Fernando Assis Pacheco, e publicaram traduções de quase todos os grandes nomes da poesia (ficção e crítica) daqueles tempos e conforme a Primavera marcelista ia permitindo penetrar na lusofonia, graças à enorme ignorância literária dos mentores e fiscais culturais do Estado Novo: Erza Pound, Yeats, Apollinaire, Octávio Paz, Reverdy, René Char, Sylvia Plath, Kavafis, Robert Lowell, Blake, Dylan Thomas, T. S. Eliot, etc., etc.
(Àparte necessário:
Algumas pessoas mostram-se apreensivas e desorientadas perante a atitude escribalista. Não sabem que pensar de algo que parece brincadeira mas é muito a sério. De uma actividade que é deveras nova embora já seja exercida há milhares de anos. De pessoas que utilizam os recursos da modernidade e do progresso para produzir precisamente o mesmo que se criava na ancestralidade antiga, e que terá chegado à península ibérica como terão chegado os cavalos oriundos da Mongólia, em resultado de sucessivas invasões, embora através de meios tão rudimentares e obsoletos como a argila e estilete de cana afiada.
E têm razão. Estão não só no seu direito como obrigação de estranhar. Fazem carradas de bem aos escribalismo emprestando-lhe a sua sã desconfiança. Porque isso prova que sobrevivem de forma infra-humana, estão reduzidos aos brochados fundamentais, sentem sadio receio por tudo quanto desconhecem à semelhança dos primitivos da savana, ainda adormecem de balalaica ao peito, andam de gatinhas face aos poderes instituídos e seus poderosos representantes ou algozes, esperam sebastiões de qualquer fumaça desportiva – mundial, europeu, torneio de matraquilhos... – que os leve às quibíricas da humilhação, desprezam a língua em que se expressam e são imensamente felizes na sua bem-aventurada cobardia e carência cívica ou cognitiva. O que é esta, indubitavelmente, a melhor maneira de afastarem os escribas do seu convívio e influência, deixando-os assim livres e disponíveis para exercerem os seus misteres, isentos da sua perniciosa e perversa mentalidade, moral abjecta, numa espécie de vacinação do papiro contra a mediocridade e desinteria emocional que lhes subordina a consciência, e faz com que abanem o rabo e lambam as botas a qualquer salazar que lhe esguiche o veneno em que se destilam. Enfim, facilitando-lhe a maneira adequada para os escribas se afastarem deles sem pejo, constrangimento ou remorso, que sem dúvida sentiriam se o fizessem por iniciativa própria. Pelo que a sua aversão ao escribalismo é a sopa no mel que faltava, e o maior favor que os arruaceiros das bandeirinhas podiam fazer à humanidade, uma vez que permite que aqueles que efectivamente se preocupam com ela, se lhe dediquem por inteiro, sem perder demasiado tempo com empecilhos.
Sobretudo porque a maior parte destes insignes proprietários da coisa mental até têm cursos superiores e são respeitosamente agraciados com os ícones da pedantocracia, que lhes alimenta a peeira de consciência e os torna benquistos nos sufrágios locais, nacionais e internacionais. O que gera e denota alguma curiosidade científica, já que não obstante a sua primorosa formação reajam ao escribismo com igual desenvoltura que a Igreja inquisitória reagiu a Galileu, ou semelhante à daqueles tempos faraónicos em que ele, o escriba, era mandado queimar vivo ou lhe decepavam os membros superiores sempre que se esquecia de tecer loas ou louvores ao seu senhor e amo em qualquer reportagem sobre uma noite de chuva que contribuiu para o alagamento do leito e delta do Nilo. E exactamente as mesmas pessoas que ulularam ovações, bateram palmas, estouraram foguetes e abriram tendas de "comes & bebes" no recinto fronteiro à execução sumária e efectiva dos condenados pelas sentenças imperiais e religiosas, sob as quais enorme número de escribas pereceu: a estirpe dos bem pensantes, proprietários da razão como da dúvida. Senhores únicos do direito à prosperidade e reconhecimento dos seus pares (e ímpares – que para os seus confrades de despotismo, não só é um merecido direito mas também uma concessão divina, para quem todos os números contam e argumentam irrefutavelmente).
O que GD realmente não desconhecia.
Comentários