O Adeus às Armas, de Ernest Hemingway

O Adeus às Armas
Ernest Hemingway
Tradução e prefácio de Adolfo Casais Monteiro
328 Páginas

Do laureado autor que foi igualmente aquele a quem a Literatura Universal deve o facto de ter deixado de ser apenas mais um coloquial artifício, argumento de ideologias e moralidades, para passar a ser uma conversa a dois, cuja mais-valia se edifica na cumplicidade e empatia através da fluência narrativa, que já no jeito de Carson McCullers, derivava mais do arrolamento factual do que da confidente interpretação subjectiva dos sentidos e dos sentimentos, emoções e valores, mas antes obrigando o leitor, por exemplo, a reconhecer o afecto ou sentido como resultado das condições e circunstâncias explanadas, descritas, enunciadas e vistas, sob a exibida visão do narrador como dos personagens, razão essa por que se disse que essencialmente o Prémio Nobel não lhe terá sido concedido em vão, conforme ainda é reafirmado em alguns sectores da crítica, este livro não carece de divulgação nem precisa de resenha para que alguém o leia, muito menos qualquer promoção condimental, e se dele venho agora falar, é tão-só porque sim, porque me apetece, ou por pagamento de dívida e gratidão pelo prazer que desfrutei quando o li, o que, certo e sabido, é uma razão tão válida como qualquer outra para não calar o que penso acerca do que gosto, do que prefiro ou mesmo do que repudio na arte em que me dito e dizendo-me me abrevio.
Polémicos ao seu tempo, talvez por precisão de marketing, os seus livros, numerosos romances, novelas, contos, de entre os quais podemos referir Na Outra Margem Entre as Árvores, As Neves do Kilimanjaro, O Velho e o Mar, Por Quem os Sinos Dobram, Ter ou Não Ter, Um Gato à Chuva, As Verdes Colinas de África, Capital do Mundo e Outras Histórias, etc., etc., são autênticos hinos ao amor e à paz entre os homens, em função dos quais o universo gravita, e narram a epopeia das naturezas simples e comuns, que se empenham em sobreviver para realizar a sua proeza maior, que normalmente se transformou em farol de suas almas pouco atreitas a espiritualismos profundos. Mas fá-lo em linguagem do dia a dia, de rua, de alcova, de tarimba, de caserna, de trincheira, de luta, enfim, de resistência como de milieu, onde é vulgar as falas cruzarem-se com os sonhos e aspirações mais subterrâneas desses ordinários mamíferos que somos nós, simultaneamente presas e caçadores, tornando o discurso literário num discurso acessível à grande maioria, além do reflexo daquilo que também ela vê em si mesma ou sobre si vai sabendo.
Quase seria legítimo afirmar que a principal "curiosidade" desta edição, reside no facto de ela ter sido a primeira tradução de um romance de Hemingway para português, uma vez que as anteriores foram tão-só vertidas em brasileiro, que acordos e desacordos ortográficos à parte não é de certeza a mesma língua, embora dela derivada e, ainda por cima, executada por um presencista de renome, também ele degredado por exigências regimentais das ditaduras portuguesas, incluindo a da ignorância, que inclusivamente lhe botou prefácio de substância, como foi Adolfo Casais Monteiro, que do Brasil se correspondeu com Régio em missivas exemplares onde alertou o vila-condense para os perigos da suburbanidade lusitana, aliás, ainda tão evidentes quão pacóvias nas capelinhas do provincianismo corporativista da nossa interioridade inquisitória, obsoleta e inquisitorial, característica dos redutos ditos livrescos e culturais.
E nela se conta a venturosa aventura entre um americano tenente do exército italiano (Frederic Henry) e uma enfermeira escocesa do hospital inglês (Catherine Barkley), durante o período final da Primeira Guerra Mundial. Depois de ferido, é ele internado no hospital em que ela trabalha, e dessa incerteza, dessa inconstância, dessa ressequida palha que o menor fogo incendeia, nasce um jogo de paixão entre a morte e a esperança, para a urgente confluência do vivido.
Porém, à semelhança dos condenados à pena capital a quem é concedido o último desejo, após a convalescença, e antes que Henry volte para a frente de batalha, são-lhe concedidas três semanas de licença. Decidem passar esses 21 dias juntos, todavia ela engravida e ele adoece com icterícia, despendendo duas das semanas no respectivo tratamento, e sendo-lhe retirada a que resta, sob a acusação de ter provocado a doença para não ter que voltar às trincheiras. E assim que regressa à frente de combate vê-se a braços com uma retirada caótica, em que perde recursos, homens e ambulâncias. É testemunha de fuzilamentos arbitrários pela Polícia do Exército, aos quais apenas escapa atirando-se ao rio. Após o que se reencontram, partindo ambos para a Suíça.
A guerra havia ficado para trás. Teriam os seus dez réis de felicidade, que é quanto cabe e cumpre a cada ser vivente que acredita na esperança. No entanto, outra batalha, igualmente trágica e derradeira, os esperava, para a qual nunca há a mínima hipótese de fuga – a da vida. Que pode ser igualmente fatal a quem por ela se realiza.
Do título, assaz sugestivo, além de denunciar a tentativa de exorcizar, expurgar, afastar, aliviar, despedir a humanidade das guerras e das armas, do flagelo do desamor entre povos como entre indivíduos, falhou redondamente, não só porque Ernest Hemingway se suicida com uma, como também as guerras continuaram a proliferar, que nem coelhos sem predador em mato rasteiro. Talvez O Adeus à Paz, fosse mais elucidativo das intenções e dos resultados. Pois, quer se queira, quer não, foi exactamente isso que aconteceu, com ponto culminante na II Guerra Mundial, onde o autor terá sido correspondente. As voltas que o mundo dá!

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