Famílias!

“Os quatro cunhados saem com frequência e vão até ao vale, aos viveiros de cravos, onde vivem as irmãs suas esposas. Por lá travam duelos misteriosos com as brigadas negras, fazem emboscadas e vendette como se levassem a cabo uma guerra por conta própria, por antigas rivalidades de família.”
Ítalo Calvino, In O Atalho dos Ninhos de Aranha
(D. Quixote, p. 131, tradução de Maria do Carmo Abreu)

Embora tenha terminado o prazo de validade ao celebérrimo modelo das ordenanças para toda a vida, cuja suprema sabedoria consistia em tirar o curso, ser admitido na Ordem para depois fazer o que lhe desse na gana, típico do com que máfia aqui, máfia ali, cá vamos subtraindo e roendo o colectivo, o que parece é que a coisa continua activa por aí, dando nas vistas, descaradamente e retouçando nas barbas das chefias, caso estas intentem alterar o status quo.
A família, se transfigurada em modelo de grupo, deixa de ser família e passa a ser a célula primária do corporativismo. Transforma as relações humanas em relações mafiosas de marca, interesse, conveniência, defesa de honra, prestígio e autoridade, principalmente se estas se desenrolarem nos meandros dos poderes, quer sejam institucionais, periféricos, locais, regionais, como centrais; basta ao mafioso de Estado repetir (a senha) que a sua empresa, a sua corporação, a sua secretaria, a sua igreja, a sua congregação, o seu grémio, a sua confraria, a sua tuna, a sua tertúlia, o seu departamento, a sua escola é, ou funciona como uma grande família, para ficar de imediato subscrito no universo dos subentendimentos que sustenta o corporativismo para, enfim, participar de facto no espírito e da unidade que essa rede de organismos congrega, fingindo assim ignorar que há nela, no organismo ou corporação que tutela qualquer divisão de interesses entre chefes e subalternos, tal e qual como na Idade Média sucedia acerca dos escravos das grandes casas senhoriais, que teriam um estatuto de superiores até dos homens livres das pequenas casas.
Digamos que a efabulação profana do poder cria estatutos e escalas e graduações hierárquicas, mas que essas e esses apenas são válidos no interior do corpo, na definição das relações internas, pois que para o exterior cada um que tem a marca ou a chancela (na lapela) é um representante desse todo, a que os demais membros honram com solidariedade absoluta, faça o que fizer, cometa o crime que cometer, o desvio, o roubo, o abuso de poder, o abandono de cliente, atropele Os Direitos Humanos, contra-aconselhe em vez de defender o seu constituinte, tenha uma atitude mercenária e de empenho na causa conforme aquilo que o cliente lhe possa pagar, não observe as normas éticas e/ou deontológicas da classe profissional, incentive ao crime os seus representados e aja socialmente na mira de sabotar a democracia e o Estado de Direito que na Constituição se nos instituiu, pactue com outras corporações ao abrigo do sigilo profissional retirando benefícios disso além da comum e ortodoxo troca de favores e tráfico de influências que lhes costumam estar associadas e são complementares, que o ditado popular do "uma mão lava a outra e as duas limpam a cara" tão magnificamente traduz e significa.
Portanto, quando alguém diz "falar em nome de", ou representar determinada agremiação sindical, política, religiosa, étnica, territorial, classe, grupo, corrente estética, linha de pensamento ou teoria de vida, não está só a pregar-nos uma peta do tamanho da légua da Póvoa, mas também a camuflar a sua falta de argumento sobre o item em causa, a tentar crescer para além da sua (in)significância através do degrau da diferença que a pertença a uma organização ilusoriamente lhe confere. A cada momento de presença no colectivo ninguém representa mais ninguém a não ser a si mesmo, e é pelo seus actos, palavras, atitudes e pensamentos que responde, que é responsável, pois que sendo maior e emancipado e consciente é igualmente livre, ainda que esteja a representar um papel que o palco social lhe conferiu no teatro das acções colectivas, porque o indivíduo é uno e único na sua entidade jurídica, e não se pode considerar esta como um prolongamento oportuno e interessado da identidade social que lhe é própria.
Se há alguém que, por temor, receio e perda de estatuto, anda a tentar impressionar e manipular a opinião pública de que o chefe de uma corporação ou Ordem não defende os interesses dos seus "ordenados", dos seus membros e companheiros de confraria, porque este pactua com ilegalidades dentro de um Estado de Direito, então a grande falta não está no presidente dessa Ordem que cumpre o pressuposto de ninguém haver acima da Lei, exigindo que os seus membros também a cumpram, mas sim em quem tenta fazer malabarismos retóricos de iludir as perspectivas de realidade e adaptá-las aos seus códigos de honra, omitindo e tripudiando no código de ética que deviam professar e respeitar, seguir e afirmar. Porque isso sim, fazer de uma corporação profissional uma família, onde qualquer criminoso detém o mesmo grau de consanguinidade, direito a/efectivo em igualdade e respeito hierárquico, é extrapolar os limites e competências da corporação para o âmbito da máfia siciliana, de associação de associais, enfim, dar-lhe o estatuto de grupo de gangsters em vez de organização que agrupa, da base ao topo, todos os membros de uma mesma profissão, porquanto membro de uma profissão só o é, de facto, se agir em conformidade com o código de ética e deontológico aprovado democraticamente pelos membros dela. E isto é válido também para os jornalistas, mesmo para os ditos das televisões igualmente ditas independentes.
Marinho Pinto não precisa do meu apoio e solidariedade nesta sua demanda pela liberdade, democracia e Direitos Humanos, mas eu como homem livre só me sentirei verdadeiramente livre enquanto mantiver acesa a esperança que a advocacia é o primeiro passo da minha Liberdade, quer para mantê-la, como para sustentá-la. E, de fora, cada vez sinto mais que a cada palavra sua essa esperança me cresce.

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