Os Remakes e a Posteridade

Remakes e posteridades: a
TV e a cultura – eis mais uma contradição perfeita


“A televisão é o único soporífero que se toma pelos olhos.”

Vittorio de Sica


Muitos são os hábitos que a humanidade tem perdido ultimamente: entre eles, o de conversar, o de conviver pensando, criticando, apreciando, estabelecendo laços para além das conveniências, para além do bota-abaixismo do narcismo frustrado e da peste emocional, da rigidez caracterial e dos fundamentalismos vários com que os terroristas da cultura e da religiosidade tentam cumprir o seu medo e desconfiança pelo outro, por menos que o conheçam, sobretudo se ele não bate palminhas a toda a porcaria que geram, gerem e propalam, a confirmar o pressuposto do antigo ditado, antigo é claro mas jamais desactualizado, que "quem se mistura com merda fica sempre cagado". Aquele conversar entre amigos, no café, ainda que muitos o não sejam e não passem de inimigos com problemas de motivação, de que falavam o Aquilino ou o Raul Brandão no auge da nossa republicanidade e a propósito dos despropósitos das monarquiazinhas imperialistas que os egos deste e daquele regimental sistemático ia tentando implantar nesta ou naquela repartição. O de conversar entre colegas, no trabalho. Mas sobretudo, o de conversar em família sem parecer nem copiar as afamadas marcelistas (ou marceladas) Conversas em Família sobre o estado do Estado corporativista, que anteciparam e inspiraram os tempos de antena dos partidos do Bloco Central na televisão oficial portuguesa (RTP 1), dos domingos e segundas-feiras como sobremesa estragada para os telejornais cozinhados às três pancadas do "isto vai ou racha" nacional.
Bom: rachou... Tempos houve em que os serões se passavam à lareira, os novos embevecidos pelas histórias, peripécias, magicações, pilhérias, anedotas, fantasias, casos da vida real ou invenções dos espíritos menos atreitos no terra a terra, escutavam os mais velhos e experientes tentando com eles compreender-lhes a vida, mas também as práticas, ou reprogramando o seu software para gasto no futuro, tentando encontrar razão e absolvência por aquilo que nunca tivera justificação alguma, no entanto aconteceram de pleno e convictamente. Todavia, hoje isso é raro, penoso, pouco in e altamente condenável ou suspeito, se não houverem umas gajas a despirem-se enroladas ao varão ou uns musculosos labregos a darem à nalga de tanga. E será cada vez mais raro porque cada vez mais haverá mais televisão nas nossas vidas, remetendo para incomunicabilidade as horas de almoço ou jantar em família, cuja sopa se sorve entre um beijo lânguido da telenovela e um chuto patriótico do Cristiano Ronaldo, ou o bacalhau que derrapa no azeite da discórdia política acerca do preço das portagens, dos casos de polícia, das desavenças entre cristãos e mouros, meninos e meninas, Belas Vistas e burgos amuralhados de novo com ou sem Fórum Comercial, doutores e futricas de copinho de plástico e charro em riste. Trocou-se o quentinho do borralho pelo conforto do ar condicionado, assim como se trocaram as palavras caprichadas e subtis, pelos arrazoados da notícia brejeira ou a volúpia das galas do glamour, de mostrar a cuequinha aos marialvas da trapalhice no desfile das cornucópias e cornicópios em rodopio musical de karaoke e agência de espectáculos, aliás sumariamente contratada para os efeitos secundários e genéricos do receituário de Pedro e Paulo a dar as usuais Papas e bolos ao povo, com que se enganam os tolos.
A família, espaço de convívio e consanguinidade, de afecto e partilha, deixou portanto de ser uma unidade solidária para passar a ser um conjunto de pessoas indiferentes umas perante as outras, e destas perante todas as demais, mas apenas dependuradas pelos olhos do mesmo canal, ou talvez simplesmente agrupadas no mesmo apartamento, fechadas nos seus quartos a absorver a sua droga preferida, satisfazendo o seu apetite de televiciados incorrigíveis. Segundo alguns pensadores, como por exemplo John Condry, que afirma, no livro que fez em parceria com Karl Popper sobre o assunto, intitulado Televisão: um perigo para a democracia, editado entre nós pela Gradiva, em 1995, que a perturbação das crianças de hoje se deve “em parte ao passarem demasiado tempo em frente da televisão. Todo esse tempo é tempo roubado; a televisão rouba às crianças um tempo precioso para aprenderem a conhecer o mundo em que vivem e o lugar que nele ocupam” – como a escola rouba a capacidade que cada um tem de saber ser e saber estar, para melhor saber fazer e saber obedecer sem refilar ou pensar nos porquês que os sustentam e motivam.
É, por conseguinte, lógica esta preocupação crescente da cultura com os efeitos da TV, visto que ao assistirmos à descaracterização da família e dos seus hábitos, estamos consequentemente a assistir ao seu resultado, que é o da descaracterização da sociedade, porém a dita cultura é cada vez menos culta, menos artística e mais monástica, mística e terapêutica, tipo de ajudar velhinhos e velhinhas a manterem a forma psicológica à custa daqueles que tradicionalmente e toda a vida prejudicaram, acrescentado que a sociedade é também cada vez menos sociedade e mais seita gerontológica em que a supragenialidade assenta no gagaísmo dos seus conceituados membros. O que é preciso é estar gá-gá e cagar postas de pescada acerca dos bons velhos tempos, tal e qual como estou a fazer agora, para ser considerado genial e nobelizado, pois que o que é bom, sempre bom, para lá de óptimo como dizem nas novelas brasileiras, é aquilo e são aqueles que não prestam para mais nada, a não ser para serem bons, embora se desconheça para quê e, principalmente, em quê!
E vós, irmãos e irmãs, já vistes que bom que eu sou?!... Então não percam a oportunidade e informem-me de como podem (e até conseguem...) ser ainda melhores do que eu, em absolutamente tudo, que por assim dizer, só terá um lógico e equivalente significado, que é o mesmo e exactamente em nada. Quem diria!

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