Conto de Terka Lux


PAULO
Conto de Terka Lux **

Perto das nove horas da noite, Paulo bateu à porta da casa do seu tio médico. Paulo era um rapaz de vinte e sete anos. O tio tinha cinquenta e cinco. Era um solteirão rabugento, meticuloso avaro de palavras.
Os dois parentes raras vezes se viam, e o médico ficou muito surpreendido com aquela aparição inesperada, feita de noite.
– Estás doente? – Perguntou, olhando para o sobrinho, de pé, diante dele, com o rosto transtornado e o olhar triste.
– É muito provável – respondeu Paulo –, e queria consultá-lo.
– Senta-te e vejamos o que tens.
Paulo sentou-se. Em frente, na secretária, estava uma caveira. Com um gesto nervoso, tapou-a com um jornal e depois, num tom a princípio baço e monótono e em seguida veemente, em frases cortantes, disse:
– Há dois anos que cortejo uma excelente e honesta rapariga. Trabalhava numa casa de costura. Eu, como sabe, estou há quatro anos num armazém de sedas. Ela é órfã, tem a minha idade, é digníssima na conduta, hábil e corajosa perante a vida, mas tão pobre como eu. É-me muito dedicada. Tenho por ela grande simpatia e, de boa vontade, a tornaria minha mulher, se a rapariga dispusesse pelo menos de cinco mil pengos. Não... contentava-me com menos... Bastava que tivesse três mil. Nem tanto. Dois mil chegavam-me. Dois mil, para poder tomar qualquer iniciativa. Mas ela não tem dinheiro e todos os dias suplica que casemos. Passa horas inteiras a chorar, enquanto discorremos sobre a vida. Digo-lhe:
"– Sossega, Julieta, peço-te encarecidamente.
– Mas eu estou sossegada – diz ela.
– Então não chores.
– É uma vontade que não te posso fazer. Isso apertar-me-ia o coração. Bem sei que nunca casarás comigo.
– Neste momento é-me impossível.
– E noutra ocasião qualquer também não poderás.
– Esperemos, Julieta.
– Esperemos, o quê? – soluça ela. – Temos vinte e sete anos. Os vinte já lá vão, e a vida que passa não recomeça. Não seremos amanhã mais ricos do que hoje e Deus não gosta das pessoas que hesitam. Não se deve levar anos a pensar no casamento. Gosto de ti, tu gostas de mim, que mais é preciso? O amor, a estima e o trabalho é que são indispensáveis. O dinheiro? Se o temos tanto melhor, mas, se o não há, é isso razão para que os pobres não se casem?"
– É assim que ela fala. É esta a sua filosofia. E isto continua assim todos os dias. Não posso mais.
– Tenho um colega – continuou Paulo –, um rapaz que vive com desafogo. Acaba de abrir um armazém numa rua de grande movimento. Dava-me sociedade se eu casasse com a irmã dele, que tem cinco mil pengos de dote. Insiste muito comigo. Quanto a Julieta, casava com ela apenas por dois mil. Sou pobre e, no casamento, os pobres não procuram o amor, mas a base da existência. Apesar disso, preferia casar com a pobre Julieta. Ela contentava-se com um quarto e cozinha, ao passo que para a outra seriam necessários dois com todo o conforto moderno, uma criada para todo o serviço, sem falar do casaco de peles, do teatro, da vida de sociedade e de toda a espécie de frivolidades. Para Julieta não é preciso nada, e do seu amor por mim tenho provas. A outra, não a conheço, e é possível que seja uma pessoa tão complicada, que me tornarei calvo depois de a conhecer a fundo. A comodidade também entra em linha de conta. Todas as raparigas, aquelas com quem casamos ou aquelas com quem não se casa, gostam de ser conquistadas primeiro. Temos de andar bem barbeados, bem vestidos, oferecer-lhes flores e mostrarmo-nos apaixonados. É aborrecido e estúpido. Faz-se isso uma ou duas vezes. Julieta é a terceira. Mas, à Quarta, ataca-nos o tédio. E receio também que digam nas minhas costas: "Este canalha seduz mulheres. Encheu de desgosto a pobre Julieta, que ficou com o coração estilhaçado como um vidro apedrejado por um garoto." E, contudo, não posso. Sou pobre...
O médico encarou-o com dureza.
– Então, que queres? Com certeza queres alguma coisa.
– Sim, quero alguma coisa – gaguejou Paulo.
– Queres casar com a rapariga rica?
– Queria.
– E a Julieta?
– Há de consolar-se.
– Suicida-se.
– Então casa com ela.
– Não posso.
– Que queres que te faça?
– Procurei-te justamente para to perguntar, por seres um homem sensato e instruído. Dá-me um conselho.
O médico encolheu os ombros.
– Não te posso dar conselho nenhum. Querias ser bom, e não podes. Querias ser mau, e também não és capaz... Nem sequer és uma dessas ovelhas que vão para onde o pastor as leva. Não podes ser nada: nem pequeno, nem grande; nem sensato, nem louco; nem ébrio, nem sóbrio. Não passas de um pateta e da pior espécie. Volta para casa e mete-te na tua cama.
O médico ergueu-se, e Paulo viu o desdém nos seus olhos frios e inteligentes. Levantou-se, por seu turno. Sentiu que praticara, ao procurá-lo, um disparate sem nome. Pegou no chapéu e saiu muito embaraçado.
O médico olhou, demoradamente, para a porta por onde Paulo saíra. Recordações antigas entravam por ela.
A sua irmã mais velha, mãe de Paulo, morrera há tempos. Era de pequena estatura, testa deprimida, olhos oblíquos e a pele amarela. Parecia chinesa. As outras duas irmãs eram bonitas e casaram cedo. E, já em nova, Madalena dava a impressão de que nunca seria feliz. Era costureira e trabalhava numa casa de modas, sob a direção de um costureiro que talhava os fatos pelos figurinos ingleses. Era marreco. Usava, como os artistas, os cabelos compridos. A cara era simpática e pálida, apesar de ter duas manchas vermelhas. Como passara três anos em Paris, falava corretamente o francês. Madalena apaixonara-se por ele ao ouvi-lo, pela primeira vez, falar francês com a dona da casa. E decidiu que casaria com o marreco. Tinha uma tão grande força de vontade, ao contrário do costureiro, alma débil, doentia e indiferente, que conseguiu o que queria. Ele morreu pouco tempo depois. Tal eram o pai e mãe de Paulo.
Sentado, no escritório, o médico acendeu um cigarro e, através do fumo, uma cena antiga se reconstituiu:
Madalena era já há muito tempo viúva. Trabalhava sozinha na sua pequena habitação, numa rua estreita. Era uma noite de Verão. A porta da cozinha encontrava-se aberta e, como Madalena adoecera, fora visitá-la. No quarto, não o ouviram entrar. Ela cosia perto da lâmpada, e Paulo, que contava então doze anos, estava sentado com os livros na frente. A mãe repreendia-o e o médico ouviu tudo o que ela lhe dizia.
– És tão estúpido, que me envergonhas. De todas as crianças dos nossos vizinhos e das pessoas das nossas relações não conheço nenhuma tão pateta. Os outros são todos rapazes inteligentes, desembaraçados... E tu?... Atrapalhas-te com tudo. Quebras a cabeça com coisas que nunca te darão o menor proveito. Os outros rapazes são simples, naturais, razoáveis; são como toda a gente. E tu?... Tu não és como os outros. Que posso fazer de ti? Ninguém te estima. Nem eu própria morro de amores por ti. Fazes sempre perguntas a que ninguém pode responder. Para quê? Não tens amigos. Como te arranjarás para viver? Estás sempre a dizer: «isto não é justo». Que coisa estúpida será, em tua opinião, a justiça? Que necessidade tens dela? Queres que toda a gente se afaste de ti? Os teus próprios professores não podem contigo. Trata mas é de estudar e de arranjar uma boa colocação. Os teus professores dizem que tu não tens nada de burro. Não acredito. Um homem inteligente não se preocupa com o que é bom para os outros, mas sim com o que a ele lhe pode interessar. Seja o que for que te digam, respondes sempre: «Examinemos isso com cuidado...» Onde já se ouviu dizer semelhante coisa? Para que queres examinar cuidadosamente coisas que ninguém examinou? Todos os garotos, incluindo o petiz do vizinho, que tem oito anos, gostam de dinheiro e de fazer negócios. Tu nunca terás para os negócios o menor jeito. Morrerás de fome. Neste mundo, hoje, todos querem arranjar dinheiro. De que raça és tu? O que tens pertence-te, mas um homem inteligente consegue também o que não está ao seu alcance. Tu... Quando chegar a vez de teres que ganhar a vida, morrerás de fome! Idiota!...
As lágrimas de Paulo rolavam-lhe pelos livros. O médico retirou-se, sem ninguém dar por ele, e foi-se embora... Tal era Paulo noutro tempo... E agora era um Paulo totalmente diferente, que saíra por aquela porta...
Nesse momento, o médico lamentava ter-lhe falado com tanta rudeza. Resolveu mandá-los chamar no dia seguinte, a ele e à rapariga. Queria ver essa Julieta. E, para que Paulo tivesse um lar, estava disposto a dar-lhe dois mil pengos. E mais mil para a sua casinha. Três mil, ao todo. E foi-se deitar.
Paulo passeou toda a noite nas margens do Danúbio. Estava uma noite escura, sem estrelas. Ele tinha medo daquela água profunda. Ao dealbar, o Danúbio tinha um aspeto muito agradável. O sol surgiu, por entre um nevoeiro cor-de-rosa, as ruas animavam-se, e Paulo deitou ao mundo um último olhar, um olhar de despedida.

** Modernista Húngaro dos princípios do século passado.

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