Ela Partiu, conto de Tchekov

ELA PARTIU
(Conto de Tchekov – 1883)

Tinham acabado de almoçar. Da parte dos estômagos havia um bem-estar delicioso. As bocas abriam-se em bocejos e os olhos começavam a fechar-se sob uma sonolência beatífica. O marido acendeu charuto, espreguiçou-se e deixou-se cair no sofá. A esposa sentou-se a seu lado e principiou a ronronar... Eram ambos muito felizes.
– Conta-me qualquer coisa – disse ele, bocejando.
– Que hei de contar-te? Hum... Ah, sim; já sabes? Sofia casou-se ontem com o... Como se chama?... Von Tramb. É um escândalo!
– Um escândalo, porquê?
– Porque esse Von Tramb é um crápula. Um patife, um homem sem escrúpulos, sem o menor princípio! Um monstro de imoralidade. Foi administrador do conde e encheu as algibeiras, agora é empregado nos caminhos-de-ferro e desfalca. Despojou a irmã. Numa palavra, é um biltre e um ladrão. E casar-se com semelhante indivíduo! Viver com ele! Tanto mais que se trata de uma rapariga decente. Por nada deste mundo eu casaria com tal homem. Ainda que fosse milionário e mais bonito do que ninguém, eu mandava-o... passear! Nem posso conceber a ideia de um marido tão desonesto.
Levantou-se num pulo e, vermelha de indignação, começou a andar de cá para lá na sala. A cólera brilhava-lhe nos olhos. Era evidente a sua sinceridade.
– Que tipo aquele Von Tramb! E mil vezes tolas, mil vezes cobardes, as mulheres que se ligam a semelhantes cavalheiros!
– Hum... Não serias tu, com certeza, que casarias... mas se soubesses agora que também sou um patife... Que farias?
– Eu?! Deixava-te! Não ficava contigo nem mais um segundo. Só posso amar um homem honesto. Se soubesse que fazias a centésima parte do que fez Von Tramb dizia-te Adeus sem perda de um instante.
– Ah, sim? Que mulher eu tenho aqui! E eu que nem suspeitava... Ah, ah, ah! As mulheres mentem sem sequer corar!
– Eu nunca minto. Experimenta cometer um ato indigno e verás!
– Para quê experimentar? Tu própria o sabes... Sou muito mais velhaco que esse Von Tramb. Comparado comigo ele é um insignificante. Arregalas os olhos? É extraordinário. – Pausa. – Quanto ganho?
– Três mil rublos por ano.
– E o colar que te comprei a semana passada, quanto custou? Dois mil, não foi? E o vestido, ontem? Quinhentos... A casa de campo? Dois mil... Ah, ah, ah! Ontem o teu papá apanhou-me mais mil rublos...
– Mas, Piotr, os teus rendimentos suplementares?
– Os cavalos... O médico da família... As contas das modistas... Há três dias perdeste cem rublos às cartas.
O marido endireitou-se e, cruzando as mãos sob o queixo, relatou, até ao fim, a lista das suas proezas. Em seguida foi ao escritório e mostrou à mulher algumas provas materiais.
– Como vês, querida, o teu Von Tramb não é mais que uma brincadeira, um ladrãozinho, ao pé de mim. Adeus! Vai-te embora e, de futuro, abstém-te de julgar.
Terminei. Talvez o leitor me pergunte:
– E ela partiu?
Sim, partiu... para a sala contígua.

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