Um conto de Marie Berde

O JARDIM AINDA O IGNORA
Conto de Marie Berde*


O jardim era tratado com o carinho que uma mulher apaixonada costuma dispensar ao seu ninho de amor. Assemelhava-se a um templo de ritos secretos, a um leito nupcial com recolhimento: era misterioso, faustoso e puro. As janelas do prédio que deitavam para as traseiras estavam ocultas pela abóbada da folhagem das tuias [árvores coníferas]. Em frente do terraço, viam-se platibandas [bordaduras dos canteiros de um jardim], as áleas de areia dourada e grossa, tapetes de verdura reluzentes como esmeraldas, cujo brilho instável anunciava a Primavera, com a brancura terna das flores de fogo desaparecidas sob a geada.
Mas, apesar disso, havia no jardim mais verdura do que flores. No meio das platibandas e nos recantos viam-se pequenas palmeiras e piteiras que ostentavam a sua rígida beleza de plantas do Sul, e, em volta de vasos de mármore com veios cor-de-rosa, as rosas dos rochedos concentravam-se em montículos escarlates.
Para além das platibandas, os silvados formavam, confundindo-se, áleas compridas, onde imperava uma luz verde. Ali, os pássaros, estavam como em sua casa, quer os canoros como os silenciosos, de que apenas se ouvia o suave murmúrio e o ruflar das asas ao rés da folhagem...
Tal era o jardim em cujo terraço se sentaram pela primeira vez, depois de terem trocado beijos de amor sob as estrelas, para que elas, que nunca desaparecerão, fossem as testemunhas do seu encontro. Ali, até ao terra, à direita, havia a sombra dos caramanchões, onde eles liam os livros em que se encontravam a si próprios. Era lá que ela cerrava os olhos sobre os sofrimentos inverosimilmente belos do jovem Werther, e que, lendo Baudelaire, escondia o rosto na massa sedosa de que o fresco perfume evocava os bálsamos opulentos da casca do abeto fendido.
À esquerda, por entre os pinheiros, havia uma rede. Quantas vezes ele ali a encontrara! Sentava-se ao lado dela, e talvez nunca tivesse passado horas tão belas como aquelas em esperava o seu despertar...
Ou provavelmente a mais bela de todas teria sido uma em que lhe viu brilhar a primeira lágrima. Não foi do seu amor que ela brotou, mas da doença de uma criança, um dos seus parentes, a quem nunca vira e por quem reaprendera as orações da sua infância, só para ver um sorriso nos lábios da amada.
A vida era encantadora, rica e imutável, ao pé dela.
Os anos passaram sem causar dano à sua beleza, à sua bondade e ao seu encanto. O seu amor por ela tornou-se um verdadeiro culto insubstituível.
Naquele dia apareceram de novo no terraço, e nunca, nem o jardim, nem a mulher, tinham sido tão belos, em sua pompa colorida. As orlas dos canteiros cintilavam como se fossem iluminadas de baixo para cima. As flores pareciam hesitar entre o branco e o azul primaveris, e as orgias de amarelo e de vermelho outonais.
Da tonalidade mais suave do ponto extremo do céu, que avistava, ao azul vertiginoso do zénite, ao cor-de-rosa resplandecente dos botões rústicos, passando pela rosa lilás, as campânulas prodigalizavam a sua beleza, e as dedaleiras acendiam, em volta delas, chamas vermelhas e amarelas.
Agora o homem compreendia porque lhe barrara ela, durante tanto tempo, a porta do jardim.
Reservava-lhe, como surpresa, a floração estival. Dir-se-ia que toda aquela pompa se repetia nela: sobre a brancura imaculada da testa, a linha azulada das têmporas, a cara rosa pela emoção, os lábios avermelhados pelos beijos. O seu vestido também parecia copiar, num verde mais delicado, as ervas mais claras, e o veludo dos seus olhos dir-se-ia querer lutar com as pétalas dos pensamentos. Para os seus cabelos não encontra matizes semelhantes, nem nas manchas de ocre vermelho das énulas [Plantas vivazes da família das Compostas. Têm raízes grossas, caules robustos até dois metros de altura, folhas caulinares sésseis, amplexicaules e flores amarelas dispostas em grandes capítulos. Cultivadas como ornamentais em Portugal, são conhecidas na Europa desde a Antiguidade pelas propriedades medicinais das suas raízes], nem no pólen das rosas desfolhadas. Durante o longo e mudo êxtase que se seguiu, a mulher tornou-se lentamente sombria.
– O jardim ainda o ignora... – disse ela, e a voz estrangulou-se-lhe.
– Ignora, o quê?
Como resposta, ela pegou-lhe na mão, e fê-lo caminhar a seu lado. Não encontrou resistência; além disso, quando ele sentia a sua mão, nunca lhe perguntava para onde o conduzia. Do outro lado dos canteiros, em que se abria o primeiro corredor de verdura, a hera pendia em compridas abóbadas. As folhas eram espessas, duras, de um verde-escuro, e dir-se-ia que nas suas nervuras brancas corriam um sangue puro e fresco.
Estendeu a mão para a hera, puxou-a para si e designou uma folha dum amarelo d cera:
– A primeira... – disse ela suavemente.
Largou a hera, que lhe roçou os cabelos, desmanchando-lhos. Quis alisá-los suavemente. E, então, algo atraiu o seu olhar. Um cabelo curto, que ficara solto, da cor de um fio de prata, na massa de um castanho metálico.
– O jardim ignora ainda – repetiu a mulher –, que o Outono abriu nele uma clareira.
E prosseguiu:
– Uma clareira, não; uma pequena fenda, um postigo por onde observa o jogo de cores, antes de as varrer.
Enquanto falava, continuava a caminhar, de cabeça baixa, seguida pelo homem.
Sentaram-se num banco. O homem estava pálido como a folha da hera amarelecida.
– Sinto-me cansado – disse ele.
Deitou-se no banco, reclinou a cabeça sobre os joelhos da mulher, e fechou os olhos, para não ser obrigado a falar...
Uma imagem começava a atormentá-lo... Via-a, em frente do espelho, quando ela notasse o primeiro cabelo branco.
Ela nunca lhe pedira – pelo menos nunca em tal lhe falara – que abandonasse a paz do seu lar, a sua mulher e os seus filhos, e lhe desse o que sobrevive a um amor passageiro: um filho.
Fora do seu amor, ela nada tinha. Diante do seu primeiro cabelo branco, estremeceria de medo, do medo inconfessado de perder o seu único bem, pelo qual tudo sacrificara.
Via debater-se esta esbelta e magnífica criatura, que ele conhecia como uma harmonia perfeita. Debater-se e talvez, algum dia, inexplicavelmente, dizer-lhe Adeus, depois de um combate travado na sua alma. De cabelos brancos pode ser-se esposa e mãe, digna de amor, respeito, veneração, mas à amante, à amante magnífica, só dizer-se-lhe Adeus sem um queixume.
Apertava-se-lhe o coração e só uma ideia o consolava.
Um sentimento difuso, a custo definido: que não era por ele próprio, mas por ela, que o coração se lhe oprimia; por ela, que ele via na sua frente, com um vestido sombrio como o das religiosas, quando só lhe restasse o rito funerário do passado.
Entretanto, ele não tardaria a depor um beijo na testa da filha, no dia em que ela casasse, e a apertar a mão ao filho, no começo da sua carreira. E o andar ágil dos netos daria a medida das suas alegrias domésticas, enquanto, para ela, a neve cairia no seu jardim e alastraria... alastraria num amplo lençol, porque não havia ninguém para a pisar. Só as patinhas minúsculas dos pássaros lhe imprimiriam pequenas estrelas...
A tristeza da mulher passou como a sombra da nuvem, sobre a qual a profundidade das cores ressaltava ainda mais vigorosamente. A languidez delicada, quase agradável, da sua melancolia só se transmudou em emoção, quando ouviu o homem suspirar. E foi então, ao inclinar-se para ele, que viu no canto dos seus olhos lágrimas que não podiam correr.
– Diz-me, em nome do céu: causei-te tristeza por causa desta primeira folha amarela?
Baixou, quase imperceptivelmente, os olhos e fez-lhe um sinal afirmativo. E sentiu naquele olhar a moleza de um lenço: suavemente, num tom maternal, como a um doente, ao qual se quer ocultar pormenores entristecedores.
– Escondamos as tuas lágrimas. Não quero que o jardim saiba que choraste. Que ele continue a florir por mais algum tempo, tranquilamente, sem desconfiar que a sua beleza já foi atingida...
No pequenino lenço de cambraia, recolheu as suas lágrimas e, como se tivesse brotado pelo que havia para ela de mais precioso no mundo, ocultou-as no seu peito, que escaldava.


* Nasceu em 1889, na Transilvânia (Kacho). Foi nos seus primeiros tempos, antes de ingressar numa carreira literária, professora de escola profissional, tendo sido conhecida principalmente como romancista e dramaturga. Nas suas obras refletem-se o caos trágico da vida moderna e a introspeção dos seres solitários e simples. Entre os seus mais populares romances destacam-se O Filme Eterno, Dança Macabra e Vergonha Sagrada.

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