PISAR O CALCANHAR AOS AMIGOS




PISAR O CALCANHAR AOS AMIGOS


Na amizade não se acredita; a amizade sente-se. De cá para lá ou de lá para cá, por uma via com dois sentidos. Acredita-se em Deus, no diabo, nos efeitos especiais do ego ou da falta dele, na roda da sorte e do azar, como nos ecos do desespero, entre os quais o mais famoso é a esperança. Mesmo quando é a última a morrer.

Traído por muitos e negado por quase todos e todas, aquele que se intitula amigo não desarma nem desiste, não vira as costas nem teme o que há de vir, ainda que não lhe reconheçam qualquer valor ou serventia. Veio para ficar em nossas vidas, instalou-se de armas e bagagem, mas só ficará até querer, embora suponhamos que esse “até” mais não seja do que um “para sempre” resumido, e ainda que a gente o rife por dez réis de mel coado, que de nutritivo e calórico nada tem além da muita água com que se lavaram as vasilhas. Julga-se insubstituível mas é descartável. E perene mesmo quando o consideramos caduco.

E sacrificamo-lo por tudo e por nada. Vendemo-lo a trinta por uma linha. Negamo-lo por dá cá aquele like. Principalmente em maré de eleições, entalando-o entre o mau ladrão, líder desmascarado e metido no chilindró, e o bom ladrão, chefe do governo em exercício, que apenas gosta de ferrar o calote à segurança social sempre que pode, ou porque é sonso e imperfeito como qualquer açorda mal temperada.

A sua persistência é um desafio para a nossa teimosia, que nunca perdemos a oportunidade de testar até onde aguenta ou como nos vai fintar à última hora, num derradeiro apelo à consciência e ao bom senso. Sabemos que o irá fazer mais dia, menos dia, com maior ou menor impacto sobre o nosso quotidiano, comportamento e atitude, que ganharão indubitavelmente com isso. Pois lucraremos substancial autoconfiança, autodeterminação, autonomia, independência e emancipação por cada coisa que lhe pedirmos e ele não possa (lamentavelmente de momento) satisfazer. É esse o seu calcanhar de Aquiles: a expetativa frustrada. A momentânea impotência. O «Oh, pá!,  porque não disseste mais cedo… Ainda ontem dei o último» com que rematamos invariavelmente qualquer telefonema em que nos pedem um selo de correio cuja série lhe confessámos ter comprado completa mal saiu.

Mas também é essa a sua principal garantia de sustentabilidade: é que quando já não esperarmos nada dele, nem ele precisar seja do que for nosso, então passaremos a entende-lo não como nosso amigo mas antes passemos a ser simplesmente seus amigos… E aí, sim, a amizade poderá, enfim, começar a sério, porque finalmente começamos a ver que ela depende não do que possamos receber dela, mas do quanto lhe possamos dar. Porque então estamos a ser TAMBÉM nossos amigos, e caminhamos em frente, sem tropeçar nos próprios pés, sem pisar os nossos próprios calcanhares. As nossas intenções e expetativas, queria eu dizer…  



Joaquim Castanho

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Herbert Read - A Filosofia da Arte Moderna

Cantata de Dido

Álvaro de Campos: apenas mais um heterónimo de Fernando Pessoa?