Vergílio Ferreira, por Maria Joaquina Nobre Júlio

O Discurso de Vergílio Ferreira Como Questionação de Deus
Maria Joaquina Nobre Júlio
350 Páginas

Tese de doutoramento da autora, este livro enuncia uma perspectiva teológica de abordagem à obra de Vergílio Ferreira, perspectiva essa que, já em desuso nas análises literárias, ainda se justifica, e é mesmo a mais adequada, em determinados autores onde a presença de Deus, não só pela inquietação ou apaziguamento que lhes facultou, se fez veio ou filão de verve. Portanto, percorrendo todo o corpus literário daquele que, em língua portuguesa, para além de Aquilino Ribeiro, claro está, foi quem mais mereceria o Nobel – sem obstaculizar ao existente e na minha humildíssima opinião –, descobre, raspa, revela, escrutiniosamente, ou como por escrutínio, a questão essencialista do linguajar vergiliano, que é a de decidir se Deus existe ou não, como se estas fossem duas respostas que andassem continuamente a girar na tômbola, havendo tanto para o "sim" como para o "não" as mesmas probabilidades de sair, posto que em caso afirmativo, então quais seriam as suas relações com o Homem, inquietude contínua, obsessivamente testemunhada e bem presente em toda a sua obra, desde a Aparição numa Manhã Submersa, Até ao Fim e Para Sempre num Caminho Que Fica Longe de Vagão J na Conta-Corrente do Espaço Invisível feita pela Arte Tempo duma Carta ao Futuro, provando uma vez mais que todo e qualquer questionamento se reproduz em procura, que caprichosamente outra coisa não é, do que a antecâmara de um encontro (especial, se ansiado).
E fá-lo numa tentativa de reconstrução do percurso intelectual do pensador, entrando a autora em diálogo aberto e franco com o homem que gritou a sua dor ao céu aparentemente vazio, que clamou a sua fome de viver a um Deus descoroçoadamente mudo e impotente, vulgarmente ímpio, não desconhecido como o de Steinbeck, mas igualmente mágico e contundente, que ao negar-lhe as certezas o atira para a ficção, qual mentira inventada onde cabe também a verdade, por mais incompreensível e inacreditável que esta se revele.
Prefaciado por Manuel B. Costa Freitas, complementado pelas bibliografias de Vergílio, vergiliana e geral, precisamente compartimentadas, este trabalho garante-nos a particular mais-valia de ter sido lido pelo autor, bem como estimulado, e quem, ainda em vida, foi em grande parte responsável pela sua génese, tal qual como se esperava que fizesse uma Simone Weil portuguesa, igualmente testemunha de Deus, como marca radical da ambiguidade, sobretudo máscara e não apenas espelho, que facilita ao homem falar de si, dos seus medos e dos seus sonhos, das suas fraquezas e ousadias, encantos e desencantamentos, e concebido com a idade e mortalidade das demais coisas humanas, para melhor facilitar o propósito de reposicionar o leitor face à morte da fé, da trivialidade, do criancismo civilizacional.
E isto em dois passos distintos: primeiro pela análise do discurso romanesco de Ferreira e depois pela análise dos textos de reflexão explícita de Vergílio, ou sejam, os seus diários e ensaios. Numa demonstração inequívoca de como ler é compreender e compreender é criar (Camus), quer dizer, imaginar, sim imaginar para desconfundir, destrinçar as pretensas diferenças que se supõe existirem entre duas coisas iguais, apodadas de escrita literária e de escrita criativa, provocando por isso que nada sejam efectivamente, uma vez que ambas assumem como partes suas aquilo que somente a escrita imaginativa é: composições literárias baseadas na formação e expressão de conceitos e imagens mentais arquivadas na memória, sob a capacidade de recombinar experiências e observações anteriores para produzir/criar impressões novas com uma finalidade específica. Isto é, que os conceitos de escrita literária e de escrita criativa são redundantes e pleonásticos, pois tentam significar ambos os termos, na sua súmula, precisamente o mesmo, ou aquilo que a escrita imaginativa diz de si, e é, num só.
Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores, em 1993, a autora faz uma abordagem notoriamente interdisciplinar, característica que está sobremaneira de acordo, e a que não é alheia, a sua formação em Filologia Românica (Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa) nem religiosa (com tese defendida em Teologia, na Universidade Pontifícia de Salamanca), actividade docente e de Leitora (em Bari, Faculdades deLetras), e que transbordou para o reconhecido mérito internacional que granjeou, nomeadamente ao ser-lhe atribuído ex-aequo o Prémio da Association Internationale pour la defense de la liberté religeuse, em 1980, mas indubitavelmente empresta notável credibilidade a este estudo, além da riqueza de conteúdo que constatamos regularmente na sua leitura, fazendo dele não o livro que faltava, mas o estudo que se impunha. E sem rebuços desvirgulantes!

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