A Vida do Prazenteiro Mestre-Escola Maria Wutz em Aventhal
A Vida do Prazenteiro Mestre-Escola Maria Wutz em Aventhal
Jean Paul
Tradução, Notas e Posfácio de Fernanda Gil Costa
82 Páginas
“um romance é uma biografia enobrecida”
"Mesmo em troca de uma pensão vitalícia o chantre seria incapaz de imaginar uma casa, na terra inteira, em que nesse instante não fosse domingo e não houvesse sol e alegria. Impossível!"
Quem de me dera a mim saber o que são "sílfides transparentes" para as poder convocar a fim de nos permitirem acompanhar a corrente de emoções, sob as quais baterá o coração de cada um, que se arriscar a ler este livro. Sobretudo porque falar de Jean Paul, aquele que foi considerado por muitos o Jean-Jacques Rousseau alemão, embora aqui me lembre melhor do Cândido, de Voltaire, como contraponto, é reportarmo-nos ao Weimar do século XVIII, berço daquele peculiar romantismo que resvalou para os nossos Herculano e Garrett através de Madame Stäel e Henrich Heine. Pseudónimo, aparecido em 1792, de Johan Paul Friedrich Richter (1763-1825), primeiro filho de um mestre-escola, que privou ou conviveu de perto com Goeth, Schiller, Novalis, Tieck, Hegel, Hoffman e Cruzer, além de autor de vasta obra, cujos títulos como Die Unsichtbare Loge (1793), Hesperus (1795), Quintus Fixlein e Siebenkäs (1796/97), Titan (4 volumes, 1800/01/02/03), Flegeljahre – Verdes Anos – e Vorschule der Ästhetik – Propedêutica da Estética – (1804), e Komet (em 1820), nos inspiram tanto respeito como curiosidade, não só foi o ídolo das leitoras "femininas" da época como fez transpirar de inveja todos os escritores e leitores, transitando para as preferências feministas dos séculos seguintes.
Mas acima de tudo é nomearmos um escritor que, não obstante as atribulações da vida, quer no campo financeiro, quer no sentimental, veio a falecer cego oito anos depois de ter recebido o título de Doutor, em Heidelberg, e nunca se deixou abater pelo meio totalitário, rústico, subserviente e traumatizante, para, em escritos maioritariamente autobiográficos com tendências para a transfiguração, se manifestar o genial reflector da visão ironicamente idealizada do seu Maria Wutz, que se apaixonou por tudo quanto parecesse uma mulher, como era comum aos homens joviais da sua espécie, talvez porque o seu amor se mantinha entre dois extremos e participava de ambos, "tal como o seio é o laço e o produto mestiço dos encantos platónicos e dos epicuristas", de ainda hoje em dia.
Em A Vida do Prazenteiro Mestre-Escola Maria Wutz em Aventhal, a que a Colibri anexa além da bibliografia e quadro cronológico, também um posfácio da tradutora, conta-se a história singular de um homem apagado, possuidor de uma orquestra de aves engaioladas, passarinheiro portanto, inventor copista de obras-primas que, não tendo dinheiro para comprar os livros cujos títulos tanto o arrebatavam, na feira do livro anual da sua aldeola, os inventava de sua lavra imaginando o que poderiam ser, em manuscritos preciosos à luz dos quais os originais se supunham plágios mal feitos, tornando-o o único proprietário de uma autêntica biblioteca de manuscritos inéditos como nunca houvera desde Alexandria.
Afinal, o drama de todos quantos, tendo vidinha pueril e fútil, se recorrem da fantasia para tornarem a sua mísera existência numa experiência extraordinária e sublime, porquanto consta que Maria Wutz, não só contraíra o "vício da leitura", mas tão afectado ficara, que lhe adviera igualmente o " vício da escrita" que, ao tempo, era sobremaneira mais condenável que o primeiro, mais blasfemo e repugnante, e o entretecera de regras e postulados, ou reflectidos parágrafos da arte de ser feliz, que como sabeis, e podereis constatar diariamente, é outro vício incorrigível e pernicioso de que os mais diversos poderes, ou instituições, tentam "salvar" a humanidade. E tudo isso coisas assaz odiosas já naquelas eras, anos de mil e setecentos e troca o passo, onde não haveria carestia de combustíveis que nos assombrassem o dia a dia, nem buzinões e greves dos camioneiros, ou derrotas das queridas e patrióticas selecções de futebol, como agora há.
Pois perante o optimismo do prazenteiro Wutz, também Maria e por sinal, que aliás se revelou bastante cedo, ainda ele seria estudante interno num albergue de praças e praxes monastéricas, nomeadamente as dos votos de obediência, pobreza e castidade, tão familiares ao universo estudantil da tradição de então como actual, o mundo, à porfia, tudo fez, e o que não pode fazer inventou, para lhe infernizar a vida. Inclusive fê-lo vítima do flagelo da paixão, que vira as existências mais singelas do avesso e não se compadece minimamente com a necessidade de sossego das almas contemplativas à deriva pelos bucolismos rurais e provincianos. E as torna contumazes para regozijo da justiça (quiçá divina) impoluta e vingativa de quantos apenas entendem que só há uma forma de se ser humano: à sua semelhança e ordem. E em cacifos devidamente compartimentarizados!
Jean Paul
Tradução, Notas e Posfácio de Fernanda Gil Costa
82 Páginas
“um romance é uma biografia enobrecida”
"Mesmo em troca de uma pensão vitalícia o chantre seria incapaz de imaginar uma casa, na terra inteira, em que nesse instante não fosse domingo e não houvesse sol e alegria. Impossível!"
Quem de me dera a mim saber o que são "sílfides transparentes" para as poder convocar a fim de nos permitirem acompanhar a corrente de emoções, sob as quais baterá o coração de cada um, que se arriscar a ler este livro. Sobretudo porque falar de Jean Paul, aquele que foi considerado por muitos o Jean-Jacques Rousseau alemão, embora aqui me lembre melhor do Cândido, de Voltaire, como contraponto, é reportarmo-nos ao Weimar do século XVIII, berço daquele peculiar romantismo que resvalou para os nossos Herculano e Garrett através de Madame Stäel e Henrich Heine. Pseudónimo, aparecido em 1792, de Johan Paul Friedrich Richter (1763-1825), primeiro filho de um mestre-escola, que privou ou conviveu de perto com Goeth, Schiller, Novalis, Tieck, Hegel, Hoffman e Cruzer, além de autor de vasta obra, cujos títulos como Die Unsichtbare Loge (1793), Hesperus (1795), Quintus Fixlein e Siebenkäs (1796/97), Titan (4 volumes, 1800/01/02/03), Flegeljahre – Verdes Anos – e Vorschule der Ästhetik – Propedêutica da Estética – (1804), e Komet (em 1820), nos inspiram tanto respeito como curiosidade, não só foi o ídolo das leitoras "femininas" da época como fez transpirar de inveja todos os escritores e leitores, transitando para as preferências feministas dos séculos seguintes.
Mas acima de tudo é nomearmos um escritor que, não obstante as atribulações da vida, quer no campo financeiro, quer no sentimental, veio a falecer cego oito anos depois de ter recebido o título de Doutor, em Heidelberg, e nunca se deixou abater pelo meio totalitário, rústico, subserviente e traumatizante, para, em escritos maioritariamente autobiográficos com tendências para a transfiguração, se manifestar o genial reflector da visão ironicamente idealizada do seu Maria Wutz, que se apaixonou por tudo quanto parecesse uma mulher, como era comum aos homens joviais da sua espécie, talvez porque o seu amor se mantinha entre dois extremos e participava de ambos, "tal como o seio é o laço e o produto mestiço dos encantos platónicos e dos epicuristas", de ainda hoje em dia.
Em A Vida do Prazenteiro Mestre-Escola Maria Wutz em Aventhal, a que a Colibri anexa além da bibliografia e quadro cronológico, também um posfácio da tradutora, conta-se a história singular de um homem apagado, possuidor de uma orquestra de aves engaioladas, passarinheiro portanto, inventor copista de obras-primas que, não tendo dinheiro para comprar os livros cujos títulos tanto o arrebatavam, na feira do livro anual da sua aldeola, os inventava de sua lavra imaginando o que poderiam ser, em manuscritos preciosos à luz dos quais os originais se supunham plágios mal feitos, tornando-o o único proprietário de uma autêntica biblioteca de manuscritos inéditos como nunca houvera desde Alexandria.
Afinal, o drama de todos quantos, tendo vidinha pueril e fútil, se recorrem da fantasia para tornarem a sua mísera existência numa experiência extraordinária e sublime, porquanto consta que Maria Wutz, não só contraíra o "vício da leitura", mas tão afectado ficara, que lhe adviera igualmente o " vício da escrita" que, ao tempo, era sobremaneira mais condenável que o primeiro, mais blasfemo e repugnante, e o entretecera de regras e postulados, ou reflectidos parágrafos da arte de ser feliz, que como sabeis, e podereis constatar diariamente, é outro vício incorrigível e pernicioso de que os mais diversos poderes, ou instituições, tentam "salvar" a humanidade. E tudo isso coisas assaz odiosas já naquelas eras, anos de mil e setecentos e troca o passo, onde não haveria carestia de combustíveis que nos assombrassem o dia a dia, nem buzinões e greves dos camioneiros, ou derrotas das queridas e patrióticas selecções de futebol, como agora há.
Pois perante o optimismo do prazenteiro Wutz, também Maria e por sinal, que aliás se revelou bastante cedo, ainda ele seria estudante interno num albergue de praças e praxes monastéricas, nomeadamente as dos votos de obediência, pobreza e castidade, tão familiares ao universo estudantil da tradição de então como actual, o mundo, à porfia, tudo fez, e o que não pode fazer inventou, para lhe infernizar a vida. Inclusive fê-lo vítima do flagelo da paixão, que vira as existências mais singelas do avesso e não se compadece minimamente com a necessidade de sossego das almas contemplativas à deriva pelos bucolismos rurais e provincianos. E as torna contumazes para regozijo da justiça (quiçá divina) impoluta e vingativa de quantos apenas entendem que só há uma forma de se ser humano: à sua semelhança e ordem. E em cacifos devidamente compartimentarizados!
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