A Refeição Ganha
Há rios e Rios; uns correm, outros, fazem correr...
Naquele tempo, ainda o tempo era o que era. Embora prenúncio de Primavera (marcelista) que não passou de Outono, as alterações climáticas apenas se faziam sentir no aquecimento interno dos ambientes políticos. Sabíamos sempre em que estação estávamos, e se chovia, ventava ou nevava com frio de caramelo, então não havia dúvida nenhuma e estávamos no Inverno (do nosso descontentamento, dizem alguns... maldizentes); agora, se sentíamos o ar a estralejar lentejoulas, havia aquele calor abafado e seco, que nos impede o correr ligeiro na retouça das férias (grandes), isso significava que o Verão viera – e para durar. Entrementes, amenizadas as têmperas, ao aprazível florido das plantas ou chilrear tagarela do passaredo, o cabriolar da criação e o esgaravatar cacarejante das aves de chão com ninhada, ensinando aos pio-pios como se tratava de vida, o óbvio tornava-se certeza, porque Primavera, enquanto se o assim-assim da queda das folhas coloria de amarelo-torrado o pátio do recreio, estava nas ventas que era Outono. Não falhava.
Mas aos três anos, o feitiço das nuvens negras intempestou-me e assombrou-me a existência. Poliomielite, disseram os médicos; paralisia infantil, repetiram os chegados. E baralhado, durante um ano, fiquei eu no tem-te-se-não-cais, que ao passamento desta para melhor costuma assistir para assisar nos infortúnios. Todavia, safei-me. Choques eléctricos, xaropes pastosos, medo de andar, urinar com destempero, gritaria no condomínio, peninha dos adultos e incompetentes. Os meus avós é que não estiveram pelos ajustes, e puseram um basta na salganhada. Havia de crescer e andar, que muito pode uma vontade feita de duas!
Portanto, à volta do Maio dos meus quatro anos, a coisa deu-se. Hábito do bom tempo, depois de estendido um pano da azeitona e, sobre este, uma manta de trapos, debaixo da figueira, ao lado do forno, logo à entrada do pátio do monte onde moravam – Tapada da Casa lhe chamavam –, enquanto o meu avô ensinava, no cocuruto de uma oliveira, aos pombos de puxo o sobe e desce de ganhar a vida, por não andar, em cima da manta me punha minha avó para brincar, recomendando ao Rio, um cão de pêlo áspero e esbranquiçado, cuja raça nunca soube, embora me palpite rafeiro alentejano cruzado com podengo:
– Guarda-o aí!
E ele guardava. Quer dizer: fazia isso e aturava-me as heresias, os puxões de orelhas, as sacudidelas e arrepanhar do pêlo, com que o recompensava pelo desempenho e cumprimento da ordem. E com mestria. Sabedoria animal, a quem causa espécie, não sair uma pessoa do lugar onde a põem...
Ora, naquela manhã, em que provavelmente mais de trinta patifarias lhe tivera feito, que ele aguentara sem um estremeção de ira ou dor, nos seus olhos grandes, cor de mel de rosmaninho, quando lhe finquei a mão direita no dorso, aproveitou o Rio para acabar-me com a mandriice, levantando-se do chão e levanto-me com ele, iniciando caminhada lenta mas determinada, que, passo a passo, apenas acabaria no centro do pátio, circular, com mais ou menos setenta metros de diâmetro, após o que, ladrando eufórico a sua vitória, cabriolou em redor de mim, desafiando-me para a retouça, até que minha avó reparou na aventura do raid, foi à esquina do forno, e gritou para o meu avô «Joaquim, anda cá ver isto!!...»
E ele "veio". Não me lembro ao certo da sua expressão, só que conhecendo-o eu de outros quinhentos, deve ter sido a mesma que inúmeras vezes repetira vida fora, e nele vira. Punhos fechados, aperrados, com o polegar apertado pelos dedos de encontro à palma mão, prontos a esmurrarem o destino, os braços descaídos ao longo do corpo, e ordenou:
– Porra, mulher: dá de comer àquele cão, que hoje merece ementa de doutor!
Ela deu. É que, para contrariá-lo, eram preciso muitos. E o Rio sabia-o, pois fora ele, quem o ensinara a caçar. Então, arrefinfou-lhe cinco ladradelas valentes, de contentamento, talvez a lembrar a minha avó, de que há ordens que não se esquecem facilmente. O pior foi que passados oito dias, já não parava em raminho verde, porquanto é comum acontecer-nos, se algo é temido, depois de perdido o medo, radicalizarmos, e não queremos outra coisa… Mas de que falava eu?...
Naquele tempo, ainda o tempo era o que era. Embora prenúncio de Primavera (marcelista) que não passou de Outono, as alterações climáticas apenas se faziam sentir no aquecimento interno dos ambientes políticos. Sabíamos sempre em que estação estávamos, e se chovia, ventava ou nevava com frio de caramelo, então não havia dúvida nenhuma e estávamos no Inverno (do nosso descontentamento, dizem alguns... maldizentes); agora, se sentíamos o ar a estralejar lentejoulas, havia aquele calor abafado e seco, que nos impede o correr ligeiro na retouça das férias (grandes), isso significava que o Verão viera – e para durar. Entrementes, amenizadas as têmperas, ao aprazível florido das plantas ou chilrear tagarela do passaredo, o cabriolar da criação e o esgaravatar cacarejante das aves de chão com ninhada, ensinando aos pio-pios como se tratava de vida, o óbvio tornava-se certeza, porque Primavera, enquanto se o assim-assim da queda das folhas coloria de amarelo-torrado o pátio do recreio, estava nas ventas que era Outono. Não falhava.
Mas aos três anos, o feitiço das nuvens negras intempestou-me e assombrou-me a existência. Poliomielite, disseram os médicos; paralisia infantil, repetiram os chegados. E baralhado, durante um ano, fiquei eu no tem-te-se-não-cais, que ao passamento desta para melhor costuma assistir para assisar nos infortúnios. Todavia, safei-me. Choques eléctricos, xaropes pastosos, medo de andar, urinar com destempero, gritaria no condomínio, peninha dos adultos e incompetentes. Os meus avós é que não estiveram pelos ajustes, e puseram um basta na salganhada. Havia de crescer e andar, que muito pode uma vontade feita de duas!
Portanto, à volta do Maio dos meus quatro anos, a coisa deu-se. Hábito do bom tempo, depois de estendido um pano da azeitona e, sobre este, uma manta de trapos, debaixo da figueira, ao lado do forno, logo à entrada do pátio do monte onde moravam – Tapada da Casa lhe chamavam –, enquanto o meu avô ensinava, no cocuruto de uma oliveira, aos pombos de puxo o sobe e desce de ganhar a vida, por não andar, em cima da manta me punha minha avó para brincar, recomendando ao Rio, um cão de pêlo áspero e esbranquiçado, cuja raça nunca soube, embora me palpite rafeiro alentejano cruzado com podengo:
– Guarda-o aí!
E ele guardava. Quer dizer: fazia isso e aturava-me as heresias, os puxões de orelhas, as sacudidelas e arrepanhar do pêlo, com que o recompensava pelo desempenho e cumprimento da ordem. E com mestria. Sabedoria animal, a quem causa espécie, não sair uma pessoa do lugar onde a põem...
Ora, naquela manhã, em que provavelmente mais de trinta patifarias lhe tivera feito, que ele aguentara sem um estremeção de ira ou dor, nos seus olhos grandes, cor de mel de rosmaninho, quando lhe finquei a mão direita no dorso, aproveitou o Rio para acabar-me com a mandriice, levantando-se do chão e levanto-me com ele, iniciando caminhada lenta mas determinada, que, passo a passo, apenas acabaria no centro do pátio, circular, com mais ou menos setenta metros de diâmetro, após o que, ladrando eufórico a sua vitória, cabriolou em redor de mim, desafiando-me para a retouça, até que minha avó reparou na aventura do raid, foi à esquina do forno, e gritou para o meu avô «Joaquim, anda cá ver isto!!...»
E ele "veio". Não me lembro ao certo da sua expressão, só que conhecendo-o eu de outros quinhentos, deve ter sido a mesma que inúmeras vezes repetira vida fora, e nele vira. Punhos fechados, aperrados, com o polegar apertado pelos dedos de encontro à palma mão, prontos a esmurrarem o destino, os braços descaídos ao longo do corpo, e ordenou:
– Porra, mulher: dá de comer àquele cão, que hoje merece ementa de doutor!
Ela deu. É que, para contrariá-lo, eram preciso muitos. E o Rio sabia-o, pois fora ele, quem o ensinara a caçar. Então, arrefinfou-lhe cinco ladradelas valentes, de contentamento, talvez a lembrar a minha avó, de que há ordens que não se esquecem facilmente. O pior foi que passados oito dias, já não parava em raminho verde, porquanto é comum acontecer-nos, se algo é temido, depois de perdido o medo, radicalizarmos, e não queremos outra coisa… Mas de que falava eu?...
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