Memórias Eróticas de um Burguês

Memórias Eróticas de um Burguês
Anónimo
Trad. Maria Emília Feros Moura
Capa de Manuel Dias
464 Páginas

"A realidade é mais estranha que a ficção."
(Página 302)

"Uma mulher que queira conservar os seus segredos nunca deve dar a conhecer ao homem as datas dos seus períodos."
(Página 409)

"– Agrada-lhe descer à adega, Mr. S...?
Tratava-se de uma frase obscena, em calão, para as carícias com a língua aplicadas às partes privadas da mulher. "Descer até ela": por baixo da combinação ou da roupa da cama. Há uma outra frase: "praticar um pouco de fotografia", alusão ao desaparecimento da cabeça do operador debaixo do pano escuro da máquina. [Mas] a expressão mais recente utilizada pelos jovens parisienses é a de "descer à loja dos gelados."
(Página 177)

Etimologias à parte, interroguemo-nos agora, se será, ou não, possível, a um burguês ter memórias eróticas sem que lhe acrescente o travo da perversidade, do incesto e do pecado... Da depravação e do contra natura? Não. Não, porque durante séculos e séculos o erotismo foi uma transgressão; a maior, a mais animalesca e pecaminosa, conforme o ditaram os cânones da Santa Madre Igreja, profícua inventora de faltas graves e blasfemas. E a prova dessa constatação histórica, é este livro, que só pôde ser publicado sob o anonimato, em 1901, mas depois foi escorraçado de todas as bibliotecas públicas, queimado em muitas das privadas, ficando 50 anos a apurar, silenciosamente, nas catacumbas da moralidade europeia para, enfim, voltar ao prelo, sim ao prelo e escaparates, todavia por iniciativa e mãos de um "corajoso livreiro norte-americano". E que por essa data, princípios do século passado, incendiou os ânimos e atiçou os fundamentalismos moralistas londrinos contra si, não obstante essa Londres da modernidade, do progresso e do desenvolvimento, ser também o coração do espirito imperial colonialista e gérmen do capitalismo mundial.
Portanto, saber o que restou – e como restou – do erotismo de há cem anos para cá, compará-lo com o dos dias de hoje, sem descambar na pornografia sexista, gratuita, dos grandes planos e exageros de estilo, é um exercício de abstracção que pode tornar deveras útil a sua leitura, visto que comporta não só as vertentes descritivas como também as especulativas sobre o género, feita em termos epistolares, que favorece o "voiyeurismo" psicológico, recheado de triângulos orgíacos, ou de outras fórmulas do privado a mais que dois íntimos, que, enquanto modelo de escrita basilar do psicologismo literário é permitido ao leitor penetrar até ao mais recôndito emotivo (e animal) dos personagens ou protagonistas, forjando uma sensualidade indubitável e cúmplice, revelando (por dentro) quer os seus motivos, desejos, ciúmes, pulsões primárias, como a vontade de poder e queda na obscenidade. Aliás, mais que suficientes e necessárias para engalanar todas as mulheres, com um conjunto de máximas e frases feitas, e caracterizá-las genericamente como aquela espécie atreita à coqueteria e frugalidade de anilmalzinho interesseiro e estúpido, tão sumamente consumada como em nenhuma outra espécie das mais obtusas e maquiavélicas do universo. Enfim, um ser dotado de um corpo de onde pode retirar tudo o que a vida exige: sustento, prazer, poder, riqueza, estatuto social, segurança, conforto e eternidade. Pelo menos. E que o usa exactamente para tal.
Nele se conta a história de uma virgindade mitificada e sobrevalorizada, quer pelas latências circunstanciais, quer pelo espírito do autor que se pretende envolvido e testemunha dos amores pecaminosos entre uma filha e o amante de sua mãe, um fotógrafo debochado, fauno de suínas trombetadas, que sabia não ser o único a quem ela concedia os seus favores, caprichos e ternuras, no triénio (lectivo) de 1897/98/99, que é quando o relato termina, à semelhança do século que se fez velho, demonstrando mais uma vez aquilo que até a Bíblia sublinha, que é o facto de que nunca haverá maior tolo que um velho tolo.
Propondo-se mesmo como leal conselheiro e manual de boas práticas, adiantando inúmeros apontamentos úteis para qualquer intelectual que queira singrar na vida:
"«Se agir com naturalidade ninguém acreditará.» É uma atitude semelhante à da mulher que se atreve a dizer ao marido: «Sabes, querido, que o teu amigo acabou de ter relações comigo?» O cornudo desata a rir à gargalhada com a brincadeira indecente da mulher e a adúltera junta-se-lhe. Talvez vá ao ponto de contar ao amante a piada da mulher e rebentem os três a rir." (Página 303)
"Pedi-lhe que nunca deixasse de levara sério os romances, à excepção de narrativas de viagens e histórias policiais, porque os autores escrevem muito simplesmente factos da vida privada e à medida que lemos a prática permite-nos descobrir a verdade numa série de mentiras acumuladas numa história de amor com três volumes." (Página 391)
Mas a autenticidade de quanto aqui é afirmado, compete a cada um, que lê, decidir!...

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