Crisfal, de Cristóvão Falcão

CRISFAL
Cristóvão Falcão

Será ainda possível o arrebatamento estético pela linha do exotismo regional? E que espécie de exotismo resistirá depois que a globalização pôs o mundo todo à nossa disposição? Ali, à exacta distância de um clique? É – responderei –, pese embora o termos que procurá-lo em dois tempos (im)possíveis: no passado ou, mais esforçadamente, no futuro. Que quem o quiser no amanhã, outro remédio não tem, senão descobri-lo na literatura de antecipação, a ficção científica. E quem o preferir pretérito, há-de recorrer às matrizes originais, subterradas no passado, como na Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, ou na Crisfal, de Cristóvão Falcão, por exemplos... Mas, do que não poderá esquecer-se, é que a Odisseia do Homem se faz na procura de si mesmo, o que significa que a adivinhação do futuro só resulta quando fecha o círculo, e mais não é do que uma outra forma, ou retoma da ancestralidade!
Se então optou pela primeira, saiba que vai ficar a cada parágrafo em suspenso, enleado, enredado numa trama de frases e mistérios, sentimentos esculpidos em renda macia, capaz de lhe desenterrar emoções profundas e ideias iniciais, da estirpe das que com que já muitas vezes se deparou mas desconhecia de onde lhe nasceram. E tudo isso, numa linguagem cujo vocabulário e hieróglifos sentimentais, mesmo quando os termos são assaz estranhos ao linguajar corrente, por desconhecidos ou arcaicos, com a musicalidade da natureza e das paisagens deste torrão das fraldas ibéricas, onde as campainhas dos rebanhos e os címbalos dos ventos se repercutem. Tanto, que é como se nos viessem de dentro, do nosso inconsciente recôndito, precisamente daquele ponto de intercepção em que o individual toca o colectivo, se lhe entrelaça, e forja a etimologia da cultura. Não só porque invoca a génese da nossa língua, mas também porque transmite aquela singela sensação de quem está alfim de regresso ao seio materno, onde todos os regatos se cristalizam no deleite das horas.
Depois, como a irremediabilidade característica que assiste ao inevitável, constatar-se-á que o discurso literário actual nasceu da narrativa oral, e que a nossa história antes de escrita foi falada até nos fadar naquilo que somos. De quanto nele é possível observarmos o palimpsesto da oralidade, de tal modo, que apetece lê-lo em voz alta só para nos ouvirmos dizendo-a, à medida que a vamos vivendo. Cair na magia da palavra dita, sussurrada ao canto da lareira, sob o dançar fantasmagórico das sombras que as chamas activam e despertam. Que era como se refazia o sonho, se transmitia a moral, os costumes e as ideias, se compunha a noção de beleza e de liberdade, dando-lhe por cercadura os lintéis da vontade, dos valores, da honra, afecto e glória. Porque era com eles, que as gentes edificavam as portas prà vida, com que os homens eram esculpidos, talhados, determinados, programados, no heroísmo de sobreviverem sendo felizes. E fieis. Principalmente fiéis, ao seu amor, ou à sua rainha – deusa, dirão alguns, a quem a veia mística ainda não fez perder o tino.
Porque das éclogas se conta pouco, quando foi muito o seu cantar, neste recanto onde o pastoreio se fez, sobretudo, com rebanhos do sonhar. E, "no que toca à substância das ideias, ao temperamento", afiança Rodrigues Lapa, "aquela espécie de pudor que se nota nas éclogas de Bernardim Ribeiro, deu lugar, no Crisfal, a uma sensualidade picante, dum realismo por vezes atrevido. Em meio dos seus queixumes e desfalecimentos, sentimos que Crisfal é um homem que luta e sabe gozar a vida." Alguém de Portus Alacer...
Ficando, adianta ele no seu prefácio, "pois demonstrado, sem sombra de dúvida, a nosso ver, que foi Cristóvão Falcão de Sousa, fidalgo de Portalegre, o autor da écloga Crisfal e da carta em verso. As outras hipóteses apresentadas, em torno da questão, não têm fundamento, uma, de Patrocínio Ribeiro, formulada em 1917, pretendeu ver no poema uma composição de Luís de Camões, e no entrecho a narração dos amores de Jorge Silva pela infanta D. Maria. É um produto daquela imaginação delirante, que estraga muitas vezes o crítico em Portugal. A outra, apresentada em 1940 pelo professor António José Saraiva, supõe o Crisfal como composto por Bernardim Ribeiro, em torno dos amores de Cristóvão Falcão. Além de tudo quanto se tem dito sobre as circunstâncias da vida e particularismos de estilo, não é razoável figurarmos um homem como Bernardim, já velho, torturado pelo seu drama pessoal, de que só sabia falar, metido a celebrante de amores escandalosos de um rapaz. Isto admitindo mesmo que Bernardim Ribeiro estivesse em estado mental de o fazer, o que era duvidoso."
Por mim, confesso-me suficientemente elucidado. Quanto aos demais, experimentem lê-los, a ambos, e depois avaliem sobre a justeza desta paternidade!

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