Sem Papas na Língua

Sem Papas na Língua
Beatriz Costa


Beatriz Costa privou com pessoas da estirpe de Aquilino Ribeiro, Almada Negreiros, Vieira da Silva e Arpad, Ribeirinho e Vasco Santana, Zélia Gatai e Jorge Amado, Cármen Miranda e demais etecoetras de igual nomeada, que para os citar a todos tornaria esta peça num grande pincel, tipo Páginas Amarelas do Jet Set intelectual da época. E viveu cada momento da sua carreira com entrega ímpar e profissionalismo extremo. Cortou amarras, rasgou fronteiras e estabeleceu novos horizontes para a representação, quer teatral, cinematográfica, como da revista à portuguesa, que é uma espécie de cozido com todos e todas as artes do espectáculo. Mas sobretudo, foi a mulher que assumiu a sua sexualidade sem preconceitos nem tabus, negando a hipocrisia da (in)fidelidade, do amor a horas e por contado, e se não deixou alguma vez usar pela ingenuidade das paixões. Enfim, fez há setenta anos o que hoje é comum e banal entre os rapazes e raparigas que se libertam das dependências sexistas, dos caminhos feitos por caridade, e preferem rasgar no solo comunitário o “Erasmos” dos seus próprios trilhos. E é precisamente esta a principal causa da sua representação aqui.
Com apenas 1,58 metros de altura foi uma das maiores mulheres do seu tempo, que não só em Portugal se souberam afirmar, e sem nunca descambar no facilitismo de conveniência, nem hipotecar a sua dignidade. De resposta pronta e acutilante sentido crítico, mordacidade saloia e humor frontal, cruzou as parangonas dos dois hemisférios com a mesma naturalidade com que comeu a fava-rica em Lisboa ou abraçou a paternidade mafrense (da Malveira). Esteve à beira de ser violada com cinco anos de idade e, aos nove, já sabia tudo sobre a vida, ou mais particularmente, de como ela se iniciava e o que era preciso fazer-se para detoná-la. Cursou na Sorbone e não pode tirar a carta de condução por não ter diploma comprovativo de como sabia ler e escrever. Nunca se deu – ou cedeu!... – à política, como também nunca pactuou com o poder. Foi chamada por Carmona e Salazar, e privou com Vargas. No entanto, jamais esqueceu a sua ascendência humilde e tudo quanto fez foi para reabilitar o seu povo. Principalmente quando o retratava nos seus quadros, o imitava e reflectia, no seu pitoresco e rusticidade, sem que alguma vez sequer os visados não se rissem com isso, não lhe repetissem a pilhéria, ou não lhe devotassem ainda mais admiração e ternura. Acarinhada como filha de pobre, nunca teve casa própria, vivendo sempre em hotéis e pensões, cujos serviçais tomou por família, e que a serviram com orgulho e esmero.
Se foi amargurada, ou lhe pesou o fardo em demasia, disso não saberemos, que aos que a prejudicaram perdoou, para os que a exploraram foi generosa, e para os que a traíram foi justa e sem mágoas ressequidas, que o que havia a dizer sempre o fez na hora e sem mandar recado por ninguém. Não foi como escritora que redigiu estas memórias – e confessa-o. Foi como pessoa que não quer incorrer no mais brutal dos pecados: o esquecimento. Esquecimento dos outros, esquecimento de si, esquecimento dos factos e esquecimento das ideias ou criações. Daí que ao lê-lo cada um de nós seja confrontado com uma surpreendente simplicidade narrativa, e de meter inveja a qualquer escritor. Sobretudo dos que aspiram a “falar” com o coração nas mãos e a caneta na alma, ou por alma. Cuja tinta é o sangue dos seus. Um relembrar para quem já leu, e um alvitre para os que ainda o não fizeram, recordando-lhes como estão dentro de tempo para o poderem fazer. É uma biografia alinhavada em crónicas, num jeito leve e temperado, popular, divertido – como aliás a sua autora, mulher de referência na vida e no espectáculo, grande na alma e enorme no talento. E essas estão sempre actuais, por que exemplares, também souberam crescer imprescindíveis.

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