Mundo Marciano, de Ray Bradbury
O Mundo Marciano
Ray Bradbury
Trad. Fernando de Castro Ferro
248 páginas
No poema A Invenção do Amor, de Daniel Filipe, um dos perseguidos apaixonados lia, ao momento, as Crónicas Marcianas, quando foi sequestrado pela urgência da dita "invenção", instante a partir do qual a sua vida sofreu uma transformação de 180 graus. Não havia no texto, como em rodapé, ou nota suplementar, qualquer referência quanto à autoria das Crónicas, mas mesmo assim lá desencantei o livro nas prateleiras amarfanhadas de uma biblioteca pública. Foi precisamente esse o meu primeiro contacto com Ray Bradbury. Por cunha, é certo, e sob a influência indesejável de um poeta, como, ao que parece, todos são quando se fala de literatura, pois nunca aconselham esses monos e pincéis chatos e cinzentões que aqueles que raramente lêem, ou quando o fazem, fazem-no com motivações "superiores" políticas ou moralistas bastante definidas e intencionais, costumam aconselhar, todavia com esforçada regularidade. Segui-se-lhe depois O País de Outubro, A Última Cidade de Marte, As Vozes de Marte, Fahrenheit 451, etc.
Porém, confesso que, talvez devido ao discurso um tanto atabalhoado e surrealista, o relacionamento inicial não primou pela facilidade amistosa, antes pelo contrário, pelo arrinca-finca da adolescência do "tu estás-te a armar em parvo, mas eu dou-te a volta". Digamos que, ao invés da sugestão romanesca do poema, que não acatei de maneira nenhuma, insurgi-me, blasfemei contra a sua narcótica marcíice, declarei-me ferrenho adepto de Vénus, chamei-lhe aqueles nomes feios típicos de quem anda a ajustar contas com a existência, pu-lo de quarentena nas minhas preferências de leitura. É que, mesmo na FC da fantasia e à semelhança das demais coisas sob as quais floresce a vida, exigia-me compreensão para o aprazível saboreio da sua escrita: primeiro estranha-se, em seguida tolera-se, depois gosta-se, e, finalmente, repete-se (gulosamente e com exaustiva sofreguidão). Até que nos viciamos na ementa e precisamos dum esforço sobrenatural para mudar de "prato".
Convém, contudo, salientar que a "surrealidade fantástica" do discurso de Ray Bradbury, é o supra-sumo de toda a sua obra. Não só porque usufrui de uma linguagem eivada de abundantes sinestesias e prosopopeias, polvilhadas de referências aos tempos do p.b. (preto e branco, para aqueles a quem ainda custa decifrar os enigmas que têm por separador o elo de um ponto final – e escusam de me perguntar o que é que isto significa, que também não sei!), num ritmo de lengalenga juvenil, repetitiva, insistente, aproveitando-lhe os nós aliterantes – provavelmente, uma peculiaridade mais fácil de reconhecer no inglês de origem, coisa a que sempre fui adverso –, mas também porque com ela consegue montar um universo significativo tão díspar do comum, que lhe dá a volta pelo contrário, e nos parece igual ao linguajar de todos os dias, formando em cada livro uma extensa prolepse figurativa (descrição de um acontecimento esperado como se ele já tivesse acontecido), assaz prometedora para a compreensão da realidade, enquanto espaço-quando sócio-cultural, que se insinua e nos dita que "amanhã é já ontem", e que, em realidade, nos pede que concordemos em discordar, pelo menos aqueles que se consideram humanos e resistentes, que não entregam os seus foguetões para que os governos façam as guerras atómicas, em ou por pura diversão, não atiram a toalha ao chão perante as contrariedades da globalização, nem se limitam a ser mais uma alucinação sensorial de entidades (supostamente) superiores.
Enfim, que se forma na constante e contínua fuga ao contexto, apontando sucessivos planos e plataformas numa progressão aos socalcos, de patim para patim, de nível para nível de entendimento, características de uma estrutura narrativa a que não podem ser alheias influências de Edgar Allan Poe, Garrett, Lord Byron, Sthendal, no contraponto intertextual, numa aberta, frontal e declarada oposição, quer ao atomismo individualista, quer ao realismo, como demonstrações confessionais de uma fraqueza, duma fragilidade, duma infinitesimal pequenez que só os grandes homens são capazes de em si mesmos verem, de admitirem, e que os leva a combater a ansiedade daí resultante, numa obra com a radicalidade da postura futurista, romântica e de terroristas fantásticos, armados até aos dentes com palavras-bombas, suicidas da memória, kamikazes da imaginação, mercenários da arte. Em resumo, e em apenas duas palavras, marcianos da Terra – ou, terráqueos de Marte!
Ray Bradbury
Trad. Fernando de Castro Ferro
248 páginas
No poema A Invenção do Amor, de Daniel Filipe, um dos perseguidos apaixonados lia, ao momento, as Crónicas Marcianas, quando foi sequestrado pela urgência da dita "invenção", instante a partir do qual a sua vida sofreu uma transformação de 180 graus. Não havia no texto, como em rodapé, ou nota suplementar, qualquer referência quanto à autoria das Crónicas, mas mesmo assim lá desencantei o livro nas prateleiras amarfanhadas de uma biblioteca pública. Foi precisamente esse o meu primeiro contacto com Ray Bradbury. Por cunha, é certo, e sob a influência indesejável de um poeta, como, ao que parece, todos são quando se fala de literatura, pois nunca aconselham esses monos e pincéis chatos e cinzentões que aqueles que raramente lêem, ou quando o fazem, fazem-no com motivações "superiores" políticas ou moralistas bastante definidas e intencionais, costumam aconselhar, todavia com esforçada regularidade. Segui-se-lhe depois O País de Outubro, A Última Cidade de Marte, As Vozes de Marte, Fahrenheit 451, etc.
Porém, confesso que, talvez devido ao discurso um tanto atabalhoado e surrealista, o relacionamento inicial não primou pela facilidade amistosa, antes pelo contrário, pelo arrinca-finca da adolescência do "tu estás-te a armar em parvo, mas eu dou-te a volta". Digamos que, ao invés da sugestão romanesca do poema, que não acatei de maneira nenhuma, insurgi-me, blasfemei contra a sua narcótica marcíice, declarei-me ferrenho adepto de Vénus, chamei-lhe aqueles nomes feios típicos de quem anda a ajustar contas com a existência, pu-lo de quarentena nas minhas preferências de leitura. É que, mesmo na FC da fantasia e à semelhança das demais coisas sob as quais floresce a vida, exigia-me compreensão para o aprazível saboreio da sua escrita: primeiro estranha-se, em seguida tolera-se, depois gosta-se, e, finalmente, repete-se (gulosamente e com exaustiva sofreguidão). Até que nos viciamos na ementa e precisamos dum esforço sobrenatural para mudar de "prato".
Convém, contudo, salientar que a "surrealidade fantástica" do discurso de Ray Bradbury, é o supra-sumo de toda a sua obra. Não só porque usufrui de uma linguagem eivada de abundantes sinestesias e prosopopeias, polvilhadas de referências aos tempos do p.b. (preto e branco, para aqueles a quem ainda custa decifrar os enigmas que têm por separador o elo de um ponto final – e escusam de me perguntar o que é que isto significa, que também não sei!), num ritmo de lengalenga juvenil, repetitiva, insistente, aproveitando-lhe os nós aliterantes – provavelmente, uma peculiaridade mais fácil de reconhecer no inglês de origem, coisa a que sempre fui adverso –, mas também porque com ela consegue montar um universo significativo tão díspar do comum, que lhe dá a volta pelo contrário, e nos parece igual ao linguajar de todos os dias, formando em cada livro uma extensa prolepse figurativa (descrição de um acontecimento esperado como se ele já tivesse acontecido), assaz prometedora para a compreensão da realidade, enquanto espaço-quando sócio-cultural, que se insinua e nos dita que "amanhã é já ontem", e que, em realidade, nos pede que concordemos em discordar, pelo menos aqueles que se consideram humanos e resistentes, que não entregam os seus foguetões para que os governos façam as guerras atómicas, em ou por pura diversão, não atiram a toalha ao chão perante as contrariedades da globalização, nem se limitam a ser mais uma alucinação sensorial de entidades (supostamente) superiores.
Enfim, que se forma na constante e contínua fuga ao contexto, apontando sucessivos planos e plataformas numa progressão aos socalcos, de patim para patim, de nível para nível de entendimento, características de uma estrutura narrativa a que não podem ser alheias influências de Edgar Allan Poe, Garrett, Lord Byron, Sthendal, no contraponto intertextual, numa aberta, frontal e declarada oposição, quer ao atomismo individualista, quer ao realismo, como demonstrações confessionais de uma fraqueza, duma fragilidade, duma infinitesimal pequenez que só os grandes homens são capazes de em si mesmos verem, de admitirem, e que os leva a combater a ansiedade daí resultante, numa obra com a radicalidade da postura futurista, romântica e de terroristas fantásticos, armados até aos dentes com palavras-bombas, suicidas da memória, kamikazes da imaginação, mercenários da arte. Em resumo, e em apenas duas palavras, marcianos da Terra – ou, terráqueos de Marte!
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