Despeço-me da Terra da Alegria

Despeço-me da Terra da Alegria
Ruy Belo

O prefácio na edição é de outro poeta, João Miguel Fernandes Jorge – autor de livros como à Beira do Mar de Junho, Porto Batel, Actus Tragicus ou Direito de Mentir, entre outros, dos quais podemos destacar Os Poucos Poderes, de colaboração com Jorge Guerra e Ruy Belo –, e assinado da Consolação, pelo S. Martinho, de 1978. E de Ruy Belo se disse quanto havia a dizer nos mais diversos suportes e mass media. Contudo vem a propósito relembrá-lo, e à sua poesia, lendo-a como nomeando-a, que sendo diferentes uma coisa e outra, porém muito têm de igual, não nos meios mas nos fins, que é a melhor homenagem que se pode fazer aos poetas, vivos como defuntos, e assim se vão da lei da morte libertando. Mais ainda: nela, edição digo, é acrescentada à de 77, da Inova, o então inédito Enganos e Desencontros, que sem dúvida é o mais perfeito exemplo e característico do estilo, pejado de trocadilhos e andanças figurativas, com que o autor nos prendou. Que neste se dá por inteiro o jeito de poetar de quem teve por único desporto a versificação, ou trocou os tempos e as estações por três ou quatro palavras.
E quando se diz "característico do estilo" quer afirmar-se que, em Enganos e Desencontros, mais do que em qualquer outro poema seu, se notam a extensão significativa dos encavalgamentos, os versos longos e livres, a rima interna, a aliteração insistente e predominante, que nos impõem um ritmo de leitura, uma fluência, uma cadência oral, muito próximas da ecolalia e da lengalenga, mas sem os seus aspectos fastidiosos, exaustivos, monótonos e infantis desta espécie de composições, nem o seu carácter ligeiro e falho de profundidade e sentido humanitários, em que as palavras perdem consistência semântica e mais se valorizam pela convergência fonética e rítmica. Como, por exemplo, se nota no excerto

Que alguém ampare o que for que em nós espere
que alguma coisa dure antes de ir-
se embora ó morna urna eterna e nocturna

ávida e lêveda dúvida lívida mas tórrida
parássemos e víssemos e velhíssemos nos embrulhássemos num
sensual servil lençol sob o docel azul e mole
A área da matéria é vária e etérea
o átrio é pétreo e vítreo
mas a larva ou a erva que sirva pra que a água ferva
que a vida a não absorva nem a ponha turva
que o debate debite azeite por quem opte e lute

onde o efeito da aliteração, em vez de aliviar a carga do significado, porém a multiplica, a reforça, a intensifica, estabelecendo novas linhas de continuidade ou cumplicidades entre o autor e o leitor, a arte e o objectivo dela, a linguagem e a comunicação, as formas e os conteúdos, sempre renováveis a cada verso, a cada estrofe, a cada parágrafo, a cada nova interrogação que, afinal sempre outra a si mesma se repete. Porque é essa a essência fulcral da poesia de Ruy Belo: a insistente tentativa de responder à sempiterna pergunta "o que é o amor?"
"
que já há quatro séculos se entoa
hão-de rasgar a noite portuguesa
as raparigas de lisboa
e eu hei-de voar ao vento do momento
Dizias qualquer coisa? Esta manhã? Perfeitamente
"

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