Herbert Read - A Filosofia da Arte Moderna
A Filosofia da Arte Moderna
Herbert Read
Título original: The Philosophy of Modern Art
Tradução de Maria José Miranda
1ª Edição: Londres, 1952
Editora Ulisseia
"(...) nos perguntamos pelo significado e natureza da existência. (...) Mas na liberdade da resposta está a poesia; a arte é a afirmação, a aceitação e a intensificação da vida." (Pagina 112, Ensaio V, Realismo e Abstracção na Arte Moderna)
As questões que se levantam à (filosofia da) arte, são hoje as mesmas que se levantavam em 1952, data da primeira edição do livro? Para onde caminha a arte moderna? Para a arte contemporânea. E muita da problemática envolvente nela, que a caracteriza e conforma, também transita, pois os seus principais problemas são comuns em ambas.
Daqui, talvez, a justificação utilitária da leitura da presente obra. Isto é: na medida em que alguns problemas com que a arte moderna se confrontou (da ordem dos factores económicos e movimentos sociais; consequências das primeira e segunda Guerras Mundiais; o protectorado do Estado Mecenas e/ou a ausência dessa circunstância; a filosofia enquanto motivadora e destinatária da actividade criativa e artística; o problema da liberdade do artista perante o significado e natureza da existência; as correlações directas e indirectas entre as tipologias psicossomáticas e as correntes teórico-estéticas; etc.) são exactamente os mesmos e assumem uma correspondência imediata com os da arte contemporânea, embora esta se veja eivada de novos problemas derivados da variedade de suportes e veículos, como na sua estrita funcionalidade, utilidade e recursos técnicos, é igualmente premente e encontra-se em "elevada" actualidade um debate colectivo que insira a arte (pintura, escultura, literatura, fotografia, cinema, etc.) no discurso filosófico, não só para definição e enunciação das diferentes formas de beleza, ou de como ela se processa e manifesta, assuntos em que é prolífera a estética, nem pela confrontação e efeitos dos recursos técnicos disponíveis, campo convencional da crítica, mas sim no sentido de compreender dialecticamente como a evolução do pensamento reverteu a favor, ou a desfavor da arte, do conhecimento e da formação cívica, ou participação democrática e grau de cidadania, na medida em que detonou e disponibilizou novas teorias e conjecturas, conceitos e enquadramentos, a que os artistas recorreram como base de sustentação estrutural e semântica para as suas obras, e ainda recorrem, independentemente dos públicos alvo ou materiais que as suportem, as divulguem ou as elejam nos rankings nominativos para o primeiro quartel deste século (e milénio).
Por outro lado, a ideia que a "arte é o laboratório das filosofias", já na Era Moderna a arte usufruía de tal estatuto – aliás evidente, por exemplo, na aceitação do Freudismo no Cubismo e Surrealismo de Pablo Picasso, em pintura; ou nos Existencialismos, quer de Jean-Paul Sartre como no de Albert Camus, que foram sobejamente ensaiados e experimentados nos seus romances ou peças de teatro; ou os excessos de Marx e Hegel vislumbráveis nos Neo-Realismos português e europeu – por quanto a sua anuência popular derivava directamente do modo como participava na sociedade, nela era reconhecida, e se processava de acordo com os maquinismos de empatia-identificação-transferência comuns ao que hoje, grosso modo, é usual definir-se como parâmetros de funcionalidade e utilidade essenciais ao produto artístico.
Herbert Read executa, com propósito e conhecimento de causa, o salto exemplar de uma teoria da sensibilidade para uma teoria do conhecimento, através da interpretação e análise da arte, e consequente descodificação semiótica, o que, por analogia, se estende às naturezas ambientais e humanas, arqueologias profundas da sociedade da comunicação, para cimentar, recorrendo ao cariz antológico dos ensaios críticos subjectivos sobre estética (Estética – século XVIII, Baumgarten, 1750, fundamentada nos alicerces etimológicos aisthanesthai, perceber pelos sentidos, aisthètikos, que é dotado de sensibilidade, e aisthesis, sensação ou sensibilidade, que teve por objectivos e objecto a identificação das motivações, a avaliação, a análise, a descrição e interpretação das reacções particulares, como do grau de satisfação e gozo provocados pela percepção imediata mas total dos objectos naturais ou artificiais apreendidos como signos desligados, logo distantes e separados do mundo de consumo e/ou isolados do seu eventual valor de uso), que abarcam no seu todo temas díspares e contraditórios como Realismo e Abstracção, Surrealismo e Romantismo, Simbolismo e Expressionismo (5º e 6º Ensaios) e ensaios biográficos, opiniosos, em que escamoteia a relação criador-obra, pondo ênfase em exemplos dessas mesmas correntes (7º Ensaio, sobrePaul Gaugin; 8º Ensaio, sobre Pablo Picasso, de quem é a gravura de capa, na edição portuguesa; 9º Ensaio, Paul Klee; 10º Ensaio, Paul Nash; 11º Ensaio, Henry Moore; e 12º Ensaio, Bem Nicholson), para nos elucidar que considera a filosofia, não como uma atitude de resignação serena face aos caminhos da existência, mas sim um saber racional (tácito, explícito e sistemático) radical, que incide sobre a totalidade do real e dá deste uma explicação última. Espécie de ferramenta de socialização e participação activa nas sociedades. E da sociedade.
Tal como o autor afirma no prefácio, o método adoptado "pode chamar-se de filosófico porque é a afirmação de um juízo de valor", logo uma estética ilustrativa da ética, e ainda porque a abordagem em termos de realização de contrários, posto que "em dialética a tese e antítese são factos objectivos, e a necessidade de solução ou síntese vem da existência de uma contradição real (página 123, 6º Ensaio), de que resultam fórmulas de acutilância bastante abrangentes, lúcidas e enunciativas como Realismo x Abstracção = Surrealismo (Ensaio V), ou Romantismo x Classicismo = Surrealismo Humanista (Ensaio VI), matematicamente capazes de nos proporcionar compreender as divergências e convergências comuns entre esses três modelos típicos de ordem, proporção, simetria, equilíbrio e harmonia, que caracterizam a unidade artística, por oposição à unidade boçal dos objectos (ou produtos) não artísticos de relativo valor de consumo e uso.
O termo Moderno, que designa de modo assaz peculiar, uma sociedade cujas cultura e civilização são dominadas pelo saber e pela ideologia científica, em óbvia ruptura com o sistema de pensamento mítico dos povos primitivos e tradicionais, implica transformações profundas aos níveis técnico-económico, estrutural e político, que rasgam e dilaceram os padrões ideais. Sempre relativa, mesmo quando é determinante, a modernidade não exclui a primitividade, mas apenas tenta discipliná-la com resultados diversos e consoantes ao momento histórico, pois os níveis estéticos acordam perante os sectores das sociedades modernizadas, num esforço de aptidão por inadaptação, como foi o caso de Paul Gaugin, que sendo alguém da Era Moderna alcançou a modernidade pela revolta contra a civilização modernista, partindo para o Pacífico, para o calor e cor exuberantes, para a inocência e ingenuidade do exotismo, de cuja oposição a sua obra é a síntese óbvia e evidente, exemplo nítido de quem substituiu o amor de Deus pelo amor da Beleza, numa entrega total e missionária à arte, despojando-se assim de tudo quanto lhe era alheio, como as condicionantes familiares, económicas, religiosas e consumistas, que poderiam sustentá-la (ou absorvê-la).
Estávamos, então, na era "da arte pela arte"? E da ciência pela arte? E da filosofia pela arte? Ainda estamos. Como dizia Pablo Picasso (Ensaio VIII), "todos sabemos que a arte não é verdade", "é uma ficção que nos permite reconhecer a verdade – pelo menos a verdade como se apresenta à nossa compreensão." E isso comportou a inteireza da subjectividade relativamente acentuada da arte moderna: conforme o artista entendia o mundo, e a vida, assim os representava. Apetrechado de todos os conhecimentos teóricos e científicos da primeira metade do século passado, como bagagem de recurso, enfrentava a vida e extraía dela a sua sobrevivência, bem como a sua maneira muito peculiar de a redefinir. Simbolismo, cubismo, surrealismo, naturalismo, integralismo, expressionismo, impressionismo, neo-realismo, foram tão-só alguns exemplos dessa maneira de representação e dessa visão da vida, digamos filosofia, que por tantos outros personagens e interpretes dela se realizou, e nelas se acorrentaram, dos quais Paul Gaugin, Pablo Picasso, Paul Klee, Paul Nash, Henry Moore, Bem Nicholson, etc., foram expoentes radicais de execução, mas não os únicos praticantes. Uma arte sem maniqueismos, ou para além dos moralismos abjectos dos conceitos de bem e de mal, de certo e errado, feio e bonito, desejável e indesejável, útil e inútil, que apenas tinha por cenário testemunho dessa luta entre a vida e a morte da natureza, em toda a sua pujança primordial, a sua força impulsiva na necessidade de eclosão, sob os eixos dicotómicos do realismo/abstracção e surrealismo/romantismo, em exemplo do que então a sociedade era: uma autêntica confrontação entre a produção e o consumo. Entre o socialismo e o capitalismo. Entre materialismo e idealismo. Enfim, entre colectivismo e individualismo. E que na arte encontrava a sua síntese.
Em resumo: a arte moderna foi a antecipação, no tempo e modo, da sociedade de comunicação contemporânea. Quando a colisão entre os interesses essenciais entre a sociedade de produção e a sociedade de consumo se deram, esta confrontação antiética gerou uma nova maneira de assimilar as suas incompatibilidades: a arte, dita moderna, um meio termo entre o design industrial e o artesanato primitivo e secular, que os ultrapassava e suplantava graças à bagagem cognitiva e científica disponível, restos e vanguardas dessas sociedades. Uma espécie de loucura, mas uma loucura que se confirmou sã. Como onírica mas estabilizadora, de recompensa para o stress da competitividade múltipla (e colectiva). E, a não ser assim, como compreender o arrebatamento e êxtase face ao absurdo sortilégio transmitido frente a quadros de Dali, Picasso ou Klee? Ou a uma escultura de Henry Moore?
Todavia, Herbert Read, no conjunto dos textos, na generalidade dos capítulos, manifesta um ecletismo sintético bastante tendencioso, provavelmente como resultado da sua origem e formação inglesas, esquecendo, quiçá propositadamente, a herança renascentista dos abstracionistas, nomeadamente do dualismo platónico, de cuja representação o cubismo, integralismo e construtivismo são os mais radicais e puristas de todos os ismos da modernidade, pois que aquilo que visavam representar nos seus trabalhos – e disse bem, trabalhos, não me enganei, porque nenhuma obra de arte, embora algumas delas tenham sido feitas com muito prazer, é feita sem ele, e exige sacrificado trabalho para ser realizada –, era a sofisticada abstracção ao mundo sensível, aquele habitado por sombras deformadas da realidade profunda, dando-nos sugestões visuais subjectivas do mundo ideal, das formas puras precisas, puras essenciais, da geometria perfeita que cada coisa encerra pelo tapado exterior (dos sentidos) do seu estado bruto, enfim, os círculos, as esferas, os triângulos, os cubos, os cilindros, os quadrados, que mais não são do que as essências dos rostos, das colunas, das casas, das mesas, dos altares, dos frutos, das árvores, dos pratos, das bicicletas, das mulheres, dos animais, dos mitos, etc., numa panóplia infinita; ecletismo disciplinar esse, tão desenraizado da técnica, que melhor se prende aos efeitos do que às causas, obriga a entender mais a arte como fruto e resultado das características da sociedade, reiterando o que já havia afirmado em 1945, no seu livro Arte e Sociedade (Art and Society, Londres, 1945, Faber & Faber), do que da imperiosidade humana directa de moldar o mundo, estruturar a realidade conforme lhe é ditada – ao homem (sapiens) criador – pela sua necessidade de emitir uma mensagem, não uma qualquer e sim precisamente aquela, quase obsessiva, mas inevitavelmente um de dentro para fora pessoalíssimo que caracteriza o universo imagético dos mais diversos artistas. O que faz dele, no fundo, também um filósofo modernista, uma vez que está vocacionado, motivado, para apresentar uma visão da totalidade real fundamentada em "colagens" das diferentes disciplinas sociais e humanas da época, nomeadamente sociologia, antropologia, semiótica, literatura, economia, fisiologia, política, artes plásticas, por exemplo, e sem, com especificidade, em nenhuma delas se basear profundamente para analisar o produto artístico, detendo-se sobremaneira na sua interpretação.
Herbert Read
Título original: The Philosophy of Modern Art
Tradução de Maria José Miranda
1ª Edição: Londres, 1952
Editora Ulisseia
"(...) nos perguntamos pelo significado e natureza da existência. (...) Mas na liberdade da resposta está a poesia; a arte é a afirmação, a aceitação e a intensificação da vida." (Pagina 112, Ensaio V, Realismo e Abstracção na Arte Moderna)
As questões que se levantam à (filosofia da) arte, são hoje as mesmas que se levantavam em 1952, data da primeira edição do livro? Para onde caminha a arte moderna? Para a arte contemporânea. E muita da problemática envolvente nela, que a caracteriza e conforma, também transita, pois os seus principais problemas são comuns em ambas.
Daqui, talvez, a justificação utilitária da leitura da presente obra. Isto é: na medida em que alguns problemas com que a arte moderna se confrontou (da ordem dos factores económicos e movimentos sociais; consequências das primeira e segunda Guerras Mundiais; o protectorado do Estado Mecenas e/ou a ausência dessa circunstância; a filosofia enquanto motivadora e destinatária da actividade criativa e artística; o problema da liberdade do artista perante o significado e natureza da existência; as correlações directas e indirectas entre as tipologias psicossomáticas e as correntes teórico-estéticas; etc.) são exactamente os mesmos e assumem uma correspondência imediata com os da arte contemporânea, embora esta se veja eivada de novos problemas derivados da variedade de suportes e veículos, como na sua estrita funcionalidade, utilidade e recursos técnicos, é igualmente premente e encontra-se em "elevada" actualidade um debate colectivo que insira a arte (pintura, escultura, literatura, fotografia, cinema, etc.) no discurso filosófico, não só para definição e enunciação das diferentes formas de beleza, ou de como ela se processa e manifesta, assuntos em que é prolífera a estética, nem pela confrontação e efeitos dos recursos técnicos disponíveis, campo convencional da crítica, mas sim no sentido de compreender dialecticamente como a evolução do pensamento reverteu a favor, ou a desfavor da arte, do conhecimento e da formação cívica, ou participação democrática e grau de cidadania, na medida em que detonou e disponibilizou novas teorias e conjecturas, conceitos e enquadramentos, a que os artistas recorreram como base de sustentação estrutural e semântica para as suas obras, e ainda recorrem, independentemente dos públicos alvo ou materiais que as suportem, as divulguem ou as elejam nos rankings nominativos para o primeiro quartel deste século (e milénio).
Por outro lado, a ideia que a "arte é o laboratório das filosofias", já na Era Moderna a arte usufruía de tal estatuto – aliás evidente, por exemplo, na aceitação do Freudismo no Cubismo e Surrealismo de Pablo Picasso, em pintura; ou nos Existencialismos, quer de Jean-Paul Sartre como no de Albert Camus, que foram sobejamente ensaiados e experimentados nos seus romances ou peças de teatro; ou os excessos de Marx e Hegel vislumbráveis nos Neo-Realismos português e europeu – por quanto a sua anuência popular derivava directamente do modo como participava na sociedade, nela era reconhecida, e se processava de acordo com os maquinismos de empatia-identificação-transferência comuns ao que hoje, grosso modo, é usual definir-se como parâmetros de funcionalidade e utilidade essenciais ao produto artístico.
Herbert Read executa, com propósito e conhecimento de causa, o salto exemplar de uma teoria da sensibilidade para uma teoria do conhecimento, através da interpretação e análise da arte, e consequente descodificação semiótica, o que, por analogia, se estende às naturezas ambientais e humanas, arqueologias profundas da sociedade da comunicação, para cimentar, recorrendo ao cariz antológico dos ensaios críticos subjectivos sobre estética (Estética – século XVIII, Baumgarten, 1750, fundamentada nos alicerces etimológicos aisthanesthai, perceber pelos sentidos, aisthètikos, que é dotado de sensibilidade, e aisthesis, sensação ou sensibilidade, que teve por objectivos e objecto a identificação das motivações, a avaliação, a análise, a descrição e interpretação das reacções particulares, como do grau de satisfação e gozo provocados pela percepção imediata mas total dos objectos naturais ou artificiais apreendidos como signos desligados, logo distantes e separados do mundo de consumo e/ou isolados do seu eventual valor de uso), que abarcam no seu todo temas díspares e contraditórios como Realismo e Abstracção, Surrealismo e Romantismo, Simbolismo e Expressionismo (5º e 6º Ensaios) e ensaios biográficos, opiniosos, em que escamoteia a relação criador-obra, pondo ênfase em exemplos dessas mesmas correntes (7º Ensaio, sobrePaul Gaugin; 8º Ensaio, sobre Pablo Picasso, de quem é a gravura de capa, na edição portuguesa; 9º Ensaio, Paul Klee; 10º Ensaio, Paul Nash; 11º Ensaio, Henry Moore; e 12º Ensaio, Bem Nicholson), para nos elucidar que considera a filosofia, não como uma atitude de resignação serena face aos caminhos da existência, mas sim um saber racional (tácito, explícito e sistemático) radical, que incide sobre a totalidade do real e dá deste uma explicação última. Espécie de ferramenta de socialização e participação activa nas sociedades. E da sociedade.
Tal como o autor afirma no prefácio, o método adoptado "pode chamar-se de filosófico porque é a afirmação de um juízo de valor", logo uma estética ilustrativa da ética, e ainda porque a abordagem em termos de realização de contrários, posto que "em dialética a tese e antítese são factos objectivos, e a necessidade de solução ou síntese vem da existência de uma contradição real (página 123, 6º Ensaio), de que resultam fórmulas de acutilância bastante abrangentes, lúcidas e enunciativas como Realismo x Abstracção = Surrealismo (Ensaio V), ou Romantismo x Classicismo = Surrealismo Humanista (Ensaio VI), matematicamente capazes de nos proporcionar compreender as divergências e convergências comuns entre esses três modelos típicos de ordem, proporção, simetria, equilíbrio e harmonia, que caracterizam a unidade artística, por oposição à unidade boçal dos objectos (ou produtos) não artísticos de relativo valor de consumo e uso.
O termo Moderno, que designa de modo assaz peculiar, uma sociedade cujas cultura e civilização são dominadas pelo saber e pela ideologia científica, em óbvia ruptura com o sistema de pensamento mítico dos povos primitivos e tradicionais, implica transformações profundas aos níveis técnico-económico, estrutural e político, que rasgam e dilaceram os padrões ideais. Sempre relativa, mesmo quando é determinante, a modernidade não exclui a primitividade, mas apenas tenta discipliná-la com resultados diversos e consoantes ao momento histórico, pois os níveis estéticos acordam perante os sectores das sociedades modernizadas, num esforço de aptidão por inadaptação, como foi o caso de Paul Gaugin, que sendo alguém da Era Moderna alcançou a modernidade pela revolta contra a civilização modernista, partindo para o Pacífico, para o calor e cor exuberantes, para a inocência e ingenuidade do exotismo, de cuja oposição a sua obra é a síntese óbvia e evidente, exemplo nítido de quem substituiu o amor de Deus pelo amor da Beleza, numa entrega total e missionária à arte, despojando-se assim de tudo quanto lhe era alheio, como as condicionantes familiares, económicas, religiosas e consumistas, que poderiam sustentá-la (ou absorvê-la).
Estávamos, então, na era "da arte pela arte"? E da ciência pela arte? E da filosofia pela arte? Ainda estamos. Como dizia Pablo Picasso (Ensaio VIII), "todos sabemos que a arte não é verdade", "é uma ficção que nos permite reconhecer a verdade – pelo menos a verdade como se apresenta à nossa compreensão." E isso comportou a inteireza da subjectividade relativamente acentuada da arte moderna: conforme o artista entendia o mundo, e a vida, assim os representava. Apetrechado de todos os conhecimentos teóricos e científicos da primeira metade do século passado, como bagagem de recurso, enfrentava a vida e extraía dela a sua sobrevivência, bem como a sua maneira muito peculiar de a redefinir. Simbolismo, cubismo, surrealismo, naturalismo, integralismo, expressionismo, impressionismo, neo-realismo, foram tão-só alguns exemplos dessa maneira de representação e dessa visão da vida, digamos filosofia, que por tantos outros personagens e interpretes dela se realizou, e nelas se acorrentaram, dos quais Paul Gaugin, Pablo Picasso, Paul Klee, Paul Nash, Henry Moore, Bem Nicholson, etc., foram expoentes radicais de execução, mas não os únicos praticantes. Uma arte sem maniqueismos, ou para além dos moralismos abjectos dos conceitos de bem e de mal, de certo e errado, feio e bonito, desejável e indesejável, útil e inútil, que apenas tinha por cenário testemunho dessa luta entre a vida e a morte da natureza, em toda a sua pujança primordial, a sua força impulsiva na necessidade de eclosão, sob os eixos dicotómicos do realismo/abstracção e surrealismo/romantismo, em exemplo do que então a sociedade era: uma autêntica confrontação entre a produção e o consumo. Entre o socialismo e o capitalismo. Entre materialismo e idealismo. Enfim, entre colectivismo e individualismo. E que na arte encontrava a sua síntese.
Em resumo: a arte moderna foi a antecipação, no tempo e modo, da sociedade de comunicação contemporânea. Quando a colisão entre os interesses essenciais entre a sociedade de produção e a sociedade de consumo se deram, esta confrontação antiética gerou uma nova maneira de assimilar as suas incompatibilidades: a arte, dita moderna, um meio termo entre o design industrial e o artesanato primitivo e secular, que os ultrapassava e suplantava graças à bagagem cognitiva e científica disponível, restos e vanguardas dessas sociedades. Uma espécie de loucura, mas uma loucura que se confirmou sã. Como onírica mas estabilizadora, de recompensa para o stress da competitividade múltipla (e colectiva). E, a não ser assim, como compreender o arrebatamento e êxtase face ao absurdo sortilégio transmitido frente a quadros de Dali, Picasso ou Klee? Ou a uma escultura de Henry Moore?
Todavia, Herbert Read, no conjunto dos textos, na generalidade dos capítulos, manifesta um ecletismo sintético bastante tendencioso, provavelmente como resultado da sua origem e formação inglesas, esquecendo, quiçá propositadamente, a herança renascentista dos abstracionistas, nomeadamente do dualismo platónico, de cuja representação o cubismo, integralismo e construtivismo são os mais radicais e puristas de todos os ismos da modernidade, pois que aquilo que visavam representar nos seus trabalhos – e disse bem, trabalhos, não me enganei, porque nenhuma obra de arte, embora algumas delas tenham sido feitas com muito prazer, é feita sem ele, e exige sacrificado trabalho para ser realizada –, era a sofisticada abstracção ao mundo sensível, aquele habitado por sombras deformadas da realidade profunda, dando-nos sugestões visuais subjectivas do mundo ideal, das formas puras precisas, puras essenciais, da geometria perfeita que cada coisa encerra pelo tapado exterior (dos sentidos) do seu estado bruto, enfim, os círculos, as esferas, os triângulos, os cubos, os cilindros, os quadrados, que mais não são do que as essências dos rostos, das colunas, das casas, das mesas, dos altares, dos frutos, das árvores, dos pratos, das bicicletas, das mulheres, dos animais, dos mitos, etc., numa panóplia infinita; ecletismo disciplinar esse, tão desenraizado da técnica, que melhor se prende aos efeitos do que às causas, obriga a entender mais a arte como fruto e resultado das características da sociedade, reiterando o que já havia afirmado em 1945, no seu livro Arte e Sociedade (Art and Society, Londres, 1945, Faber & Faber), do que da imperiosidade humana directa de moldar o mundo, estruturar a realidade conforme lhe é ditada – ao homem (sapiens) criador – pela sua necessidade de emitir uma mensagem, não uma qualquer e sim precisamente aquela, quase obsessiva, mas inevitavelmente um de dentro para fora pessoalíssimo que caracteriza o universo imagético dos mais diversos artistas. O que faz dele, no fundo, também um filósofo modernista, uma vez que está vocacionado, motivado, para apresentar uma visão da totalidade real fundamentada em "colagens" das diferentes disciplinas sociais e humanas da época, nomeadamente sociologia, antropologia, semiótica, literatura, economia, fisiologia, política, artes plásticas, por exemplo, e sem, com especificidade, em nenhuma delas se basear profundamente para analisar o produto artístico, detendo-se sobremaneira na sua interpretação.
Comentários
Está de parabéns.
Peço que entre em meu blog www.arteliterariaecultura.blogspot.com. Por que também penso da mesma forma em várias análises feitas no seu blog.
Abraços fraternos,
Marcos
E feliz 2011!!!