A Primeira Esposa, de Françoise Chandernagor



A Primeira Esposa
Françoise Chandernagor
Trad. Clarisse Tavares


Este livro é uma extensa carta de amor, escrita no feminino e eterno sofredor de coita, qual diário de bordo de um casamento desfeito, e enquanto deriva da navegação solitária num mar escabroso, pejado de infidelidades e traições múltiplas, cometidas por um D. Juan da actualidade, como indicativo daquilo que outrora terá sido regra dificilmente deixa de participar no presente, qualquer que ele seja e independentemente dos graus de civilidade que o circunscrevam. Sopro remanescente do amor submisso e feudal, a um senhor neofilista, bígamo constante, embora que nem sempre com as mesmas, narra a luta controversa de uma mulher que balança entre a sofrida presença do marido e a dor da sua ausência, entregando-se e forma convexa, convergindo alternadamente quer no amor, quer no ódio, no comodismo como na revolta, na solidão ou no mundanismo, no desespero como na esperança, mas a quem não faltou, contudo, a lucidez, objectividade, disponibilidade e imaginação para registar cada momento desses estádios de ânimo, erigindo assim uma bóia de salvação que a sustentasse à tona desse mar de escolhos, fortalecendo-a tanto interiormente como aos olhos do mundo, permitindo-lhe reconquistar a auto-estima e dignidade perdidas, provando com exemplaridade o que já desconfiávamos e se vê reflectido sobremaneira no ditado chinês que nos aconselha que “quando se cai ao chão devemos levantar-nos com o auxílio dele”.
De salientar todavia, no que diz respeito à esfera das intertextualidades, que não obstante esta seja uma obra marcada pela “essencialidade existencialista”, cujo pano de fundo é o cosmopolitismo francês e contemporâneo, se revela nela, com extraordinária frequência, o espírito e o discurso passional característico daqueles outros romances aristocráticos e militaristas, como o foram tipologicamente identificados pelas Cartas de Soror Mariana Alcoforado, a freira de Beja, que perdidamente se apaixonara por um oficial francês, lá nos da História que, veio a saber-se mais tarde – o que sempre é melhor do que nunca – afinal seria um homem, e militar ainda por cima, com patente oficial, guerreiros e valentes como soem ser, engalanado pelas divisas e dragões típicas dos lugares de tenência, pondo a nu pormenores cabais subscritos pelo coração que, alvíssaras lhe sejam dadas, não comunga das fatalidades do género.
(Françoise Chandernagor estudou no Instituto de Estudos Políticos de Paris, é graduada em Direito Público. Foi a primeira mulher a obter o título de "major", da Escola Nacional de Administração da França. Muitos de seus romances foram traduzidos para outros idiomas e dois deles foram adaptados para a televisão.)

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