Superstições Populares Portuguesas


Superstições Populares Portuguesas
Benedita Araújo
152 Páginas

"Aquelle que se põe da banda do fuso
Ou é tolo, ou não tem uso."


Como contribuição para o estudo do nosso inconsciente colectivo, este livro arrola e intenta interpretar a maneira como o povo português foi transformando as suas suspeitas infundadas e crenças em valores bioculturais herdados da ancestralidade, manifestada mais concretamente, quer no plano tradicional, quer ao nível religioso e das instituições, quer no biológico, sanitário e sexual, face a certas atitudes e práticas, rezas, pensamentos rituais, a que é comum atribuir forte carga mística e poder mágico, mas sob uma perspectiva etnográfica, ou dos costumes que se consideram relevantes enquanto vivências culturais presentes, testemunhos continuamente (re)actualizados do nascer e do morrer, do trabalhar e do folgar, do cuidar e do desfrutar, das diferentes formas de encarar a relação do homem com as entidades míticas superiores, de reagir perante as oscilações pendulares dos ritmos de vida, conforme elas foram válidas e apreendidas pela nossa sociedade no decorrer dos itens de evolução desta, nomeadamente da agrícola e de produção, da de consumo e da de comunicação, que antecederam a de conhecimento, na qual ele, o livro, é um indubitável aliviar da carga supersticiosa residual ainda existente nos meios menos atreitos ao cosmopolitismo e globalização. Onde, aliás, parece persistir nos nossos dias, embora em alguns casos apoiada pela tecnologia de ponta e divulgada através da comunicação social ou no marketing territorial com influência directa na receita turística das economias regionais e da interioridade.
Para tanto, parte do indivíduo enquanto unidade biopsico– que raio de palavrão! –sociocultural complexa, qualquer que seja a cultura que o integrou ou a época em que decorreu a sua vida, a sua inteligibilidade, o conhecimento do sujeito em situação, a sua (metafórica) maneira de ser árvore entre as demais árvores da mesma floresta, as nuanças de que se revestem, visto ninguém desconhecer como ainda hoje há milhares de pessoas que vão benzer o carro a Fátima, atletas que não entram em competição sem antes fazerem o sinal da cruz, beijarem o amuleto ou estudantes que entram com o pé direito na sala de exames, enfim, no seu aqui e agora convencional, independentemente da formação e habilitações que tenha. Passa pelas prescrições de âmbito familiar, aflora as preambulares motivações e calendário/agenda do corpo social, roça a rotineira magia do ritual quotidiano na protecção das benesses e afastamento de invejas ou maus olhados, bruxas e bruxedos – Tosca mosca / Mosca tosca, / Ferradura no teu pé / Mordaça na tua boca, / Não Venhas à minha casa / Nem a esta comarca toda –, enuncia alguns dos preceitos essenciais às medicinas ingénuas, das mesinhas caseiras e populares, como das naturais e alternativas, para cerzir um ponto final em algumas das nossas conjecturas sobre o sobrenatural, os deuses, a morte e as almas, que não escapam à sua típica Encomendação...

«As almas dos fiéis defuntos
Me mandaram aqui vir,
Que venham dar uma esmola
Para do fogo sair.
»

Ao traçar este mapa nacional do absurdo, ou de como o sem sentido de alguns sentires, pensares e agires perduram, a autora abre um leque de temáticas bastante extenso, no qual se reflectem as superstições portuguesas respeitantes aos nascimentos, baptismos, adolescência, namoro, iniciação sexual, casamento, virgindade feminina, prenhez, parto, aleitamento, cuidados maternais, vizinhança e consanguinidade, enigma do futuro, domínio das vontades, práticas agro-pecuárias e piscícolas, enfermidades, de perecimentos, funerais, santos e relíquias, culto dos mortos, dores, fiéis e infiéis, Deus e demónio, isto é, da existência e existires em seu todo ou de cabo a rabo, entre usos e preceitos de bem conseguir as realizações dos anseios, por mais secretos e retorcidos que sejam. Desde o cozer do pão (S. Vicente te acrescente, / S. Mamede te levede, / S. João te faça pão, / Pela Graça de Deus e da Virgem Maria / Padre Nosso Ave Maria) até aos aconchegos de apaixonados:

"Amo-te lôc’apáxonado
Ôtr’amor igual é raro;
Oh, me fujas, menina,
N’ã arrecuses est’emparo. "

E elucida-nos de forma singela e sem afectações de como atribuímos uma confiança e importância excessiva, ou quase religiosa, a determinadas coisas, palavras e lugares, que nada justifica terem, enfim os nossos modos de crendice, fortemente eivada e cultivada pelo espírito do “Melhoral”, uma vez que se não nos fizerem declaradamente bem, também nos não farão mal, com que se vão transmitindo e veiculando de geração em geração. De maneira bastante lúcida, objectiva e exemplar, num livro de que aprazivelmente salientaremos dois pontos: a) a ausência de apêndice bibliográfico, contrária ao costume nos opúsculos de natureza academizante, onde se estabeleceu ser “praxe” elaborar um infindável rol de artigos e obras (supostamente) consultadas mas que raramente foram folheadas, ou sequer abertas, além da página referida, comummente consideradas como elevada fonte de sapiência; e b) a frequência e oportunidade das notas de rodapé, que efectuam assim a entrosagem eficaz no enquadramento das “ilustrações de conteúdo” que facilitam a compreensão de quaisquer textos.
(Ilustrações: Fotos de pedro Alcobia da Cruz -Bosque dos Amores Perdidos e Estrelinha Saltitona)

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