Desfloramento

Venho das noites escuras
e aprendi a ver nas trevas
e a ler nas trevas.
Venho das noites escuras
e sei o grande soluço das sombras
e os cânticos impotentes dos peregrinos.
Venho das noites escuras
daí o meu amor imenso pela luz!
Quanto mais treva era a treva
melhor eu aprendia a amar a luz do sol
e dos meus olhos sempre mais e mais abertos
a luz interior irradiando aniquilava as sombras...
E sendo sempre noite já a pouco e pouco era mais manhã.
E cada vez mais enorme e definitiva amanhã subia
apesar da treva apesar do silêncio apesar de tudo!
O negrume da noite era uma incandescência prenhe.

A flor romântica das trevas esfolhou-se-me nos dedos.
E então nasci.
E então vi que estava nu
e alegrei-me por estar nu
enfim!
Sorvi os frutos da terra
e já não me souberam a papel impresso!
Sacudi a poeira que me tinham ensinado
e comecei então a saber.

Sob as palavras surgiu enfim a voz
e a canção ardente da vida já não encontrou algodão nos meus ouvidos.

Ah! só quem vem das trevas e das noites escuras
pode amar assim o imenso mundo do sol!

Adolfo Casais Monteiro, in Sempre e Sem Fim

Às vezes, aquilo que uns me disseram, acaba em pretexto para eu dizer a outros, outras coisas. Aliás, quando um médico se põe à procura da menina no olho da menina, é porque uma de duas circunstâncias pode estar a acontecer: 1) que a menina deixa e quer, ou 2) que a menina não vê. Só que, parecendo que não, entre estas duas razões, além da grande diferença, há também uma questão de estilo. Sobretudo se deixarmos o plano da oftalmologia e entrarmos no da arte e crítica ela...
Suponhamos que, subscrevendo José Régio, "o ideal do artista nada tem a ver como o do moralista, do patriota, do crente, do cidadão: quando sejam profundos e quando se tenham moldado a uma individualidade, tanto o que se chama um vício como o que se chama uma virtude podem ser igualmente poderosos agentes de criação artística, podem ser elementos de uma obra". E quem diz de uma obra, de um romance, de uma película, de uma pintura, por exemplo, que pode ser inclusive "uma transposição da vida, dos sentimentos, das sensações, da inteligência que o homem tem dela quando é artista" (João Gaspar Simões), dizendo com isso igualmente existência ou carreira profissional, mas principalmente teoria da vida, o que incluí toda a gama de fantasias e recheios do Id, acaso nos deixemos embalar pelas ideias e letras de André Gide, Valéry, Dostoievski, Bergson, Freud, Proust e tantos outros filósofos, romancistas e cientistas célebres no tempo dos desbravamentos interiores e dos bandeirantes da introspecção, como o que foi o século passado, em que eclodiu o Segundo Modernismo, sob a égide e "culto" dos mestres Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros, pelo menos no que se viu contemplado pelo "plácido provincianismo descritivo" coimbrão, protagonizado pela Presença, revista dirigida por José Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões, diversas vezes explanado ao longo dos seus 54 números, e que teve a sua primeira publicação em 10 de Maço de 1927, onde colaboraram Adolfo Casais Monteiro, Saúl Dias (aliás Júlio dos Reis Pereira, irmão de José Maria dos reis Pereira ou José régio), António de Sousa, Vitorino Nemésio, António Navarro, Afonso Duarte, António Madeira (pseudónimo de Branquinho da Fonseca, fora das lides de direcção), Fausto José, Mário Saa, Gil Vaz, Alexandre d'Aragão, António Botto, Olavo de Eça Leal, António Pedro, José Gomes Ferreira, Joaquim Namorado, Luís Cardim, João José Cochofel, Mário Dionísio, Thomaz Kim, João Meneres de Campos, Alberto Serpa, Edmundo Bettencourt, Carlos Queirós, Francisco Bugalho, Pedro Homem de Melo ou Miguel Torga (de seu nome próprio Adolfo Correia da Rocha).
Ora, se desses nomes muitos foram os que singraram literariamente, uns com maior notoriedade que outros, como é óbvio, o que aqui nos trás é, porém, um tradutor quase desconhecido do grande público, denominado Adolfo Casais Monteiro, que tendo chegado à poesia através da prosa, o que não é de estranhar nos meandros do escribalismo, se notabilizou essencialmente como ensaísta e crítico, embora se revelara poeticamente desconcertante, em versos de sinceridade rude e áspera, despidos de beleza formal mas delicados e subtis na análise da sensibilidade, cujas temáticas, de pura análise psicológica, se centraram na insatisfação e consequente indiferença sobre si mesmo, ou o mundo que o rodeava, características típicas de quem muito andou partido entre o passado e presente, o que, aliás, é vulgar ainda hoje em diversos criadores. Autor de títulos como Sempre e Sem Fim (1937), Considerações Pessoais (1933), O Romance e os seus Problemas (1950), A Palavra Essencial (1965), Confusão (1929), Poemas do Tempo Incerto (1934), Canto da Nossa Agonia (1942), Noite Aberta aos quatro Ventos (1943), Europa (1946), Voo sem Pássaro Dentro (1954) e Adolescentes (1945), ou os serôdios A Poesia Contemporânea (1977), A Poesia da "Presença" (1972) e Estrutura e Autenticidade na Teoria e na Crítica Literárias (1984), sumariamente conhecidos embora, o que posamos não conhecer tão bem, é a sua faceta de tradutor, o que, isto sim acarreta alguma estranheza, pois são dele, nem mais nem menos, as traduções de A Aranha, de Henri Troyat, Prémio Goncourt em 1938, além dos números 1 e 7 da Colecção O Escaravelho de Ouro (1950), respectivamente Três Igual a Um (título original: L'Assssin Habite au 21), de Stanislas Andre Steeman, e Rito Mortal (título original: The Riddle of The Dead Cats), de Anita Blackmon, e nos questionam sobre a natureza e importância da tradução na vida dos literatos portugueses do século passado.
E o mais curioso, é que não podemos considerar estas duas obras, dois policiais sem dúvida mas de raríssima qualidade, mesmo se observados sob os maniqueísmos literários, que classificam a literatura entre Maior e Menor, de boa ou de cordel, como dois apêndices insignificantes na carreira do escritor, uma vez que, desta colecção da Empresa Editorial Édipo, Lda., dirigida por Baptista de Carvalho, elas são duas peças moleculares das que forjaram e ousaram apresentar-se os como guiões desta colecção, que granjeou afamada preferência durante anos nos leitores do género do terceiro quarto do século passado, ou seja, entre 1950 e 1975.
De fácil manuseamento, capa mole não plasticizada, formato de bolso em corpo oito, Três Igual a Um, patrocinado pela TAP (Transportes Aéreos Portugueses) que sorteava mensalmente uma viagem a Londres, pelo que era vendido com três senhas para o sorteio dela, na execução de um Plano Nacional de Leitura bastante estimulante, além de uma imaculada mancha gráfica tinha também uma autobiografia do autor, com a reprodução da sua assinatura no término e ilustrações do mesmo que, na altura, davam um trabalhão magistral até serem as zincogravuras que acompanhariam o texto no prelo, para a respectiva impressão, e deve o seu título, em português, ao título do filme de H. G. Clouzot que adaptou ao cinema enquanto ainda somente era conhecido pelo original de L'Assassin Habite au 21, que era uma pensão, tal e qual como nós em Portalegre tínhamos na Rua dos Canastreiros, actualmente Rua 31 de Janeiro, onde hoje funciona o Centro de Emprego, denominada precisamente Pensão 21 e, curiosidade coincidente, alguns presencistas se albergaram periodicamente, mas sobretudo hospedou o professor José Maria dos Reis Pereira, mais conhecido pelo seu pseudónimo literário de José Régio, na altura como agora.

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