Palhaços!

Entre os sete e os dezasseis anos tive uma amiga especial, nas mesmas idades, que se revelou essencial na minha formação. Desconheço se lhe aconteceu, a propósito de mim, na sua, igual importância, mas o que é certo é que aprendemos um com o outro a ensinarmo-nos histórias. Se algum adulto lhe contava alguma, ela vinha logo contar-ma a mim, e se não lha contavam, então inventava-a, conforme as diversas que anteriormente tivesse ouvido. Quando a minha avó se lembrava de outro conto e mo alinhavava ao serão, eu corria a pagar-lhe na mesma moeda, dando-lhe dele a minha versão, que raramente era coincidente com aquela que ouvira, a fim de melhor lhe prender a atenção enquanto o fazia.
Se os líamos então brindávamo-nos mutuamente com o manuscrito da nossa "versão original" deles, modificando-os, sobretudo nos pormenores onde desconfiávamos que o seu autor tinha fugido à verdade, facto aliás confirmado, pelo incompetente descabimento de certas afirmações, controversas frases, e inverosímeis factualidades. Não raras vezes, acaso tivéssemos o que celebrar, enrolávamo-los como pergaminhos antigos, de fita e laçarote, e oferecíamo-los por prenda ou oferenda dessa celebração. Mas enquanto isso crescíamos, aprendíamos a contar histórias um ao outro com o corpo, sem palavras e quase sempre de olhos fechados, igualmente sedutoras e caprichosas nos pormenores e acordes tácteis, dedilhações que nos acompanhavam no fado das descobertas interiores e externas da alma, que se compraz e rejubila com o prazer do corpo físico que a anima, lhe dá vida e significado próprio no virar das páginas da eternidade. Logo, reunido que foi o conselho directivo das duas famílias, na constatação da suprema importância que dávamos a este tipo de narrativas, determinaram que devíamos separar-nos por uns tempos, indo um estudar para Lisboa, onde ficaria "a viver hospedada" na casa dos tios paternos, ao caso um que era uma, ou, por assim dizer, ela – a Cátia.
Ora, afastados, aconteceu aquilo que tinha que acontecer, e cruzámos empatias por outros lados, que nos despertaram também para novos prazeres de viver. Todavia, largos anos passados, fui encontrar alguns bocados, dessa nossa maneira de crescer. Por sinal, um conto dela, sobre o qual desconheço, se o terá inventado ela, se ouvido ou lido em intermezzo algum, de prosápia e fartum.


A MENINA DOS PÉS GRANDES

O Sr. António e a Sra. Maria moravam numa grande Quinta muiiito longe da cidade e como viviam muiiito sós, gostavam de ter uma filha.
Passado tempo o seu desejo concretizou-se. A menina era linda mas tinha os pés grandes.
À medida que ia crescendo a menina apercebeu-se que os seus pés eram diferentes dos das outras pessoas.
Quando fez seis anos foi para a escola.
Ela era muito boa aluna e no intervalo quando brincava quase nunca caía porque os seus pés grandes não deixavam.
Na escola alguns meninos sem coração como por exemplo o Pedro gozavam-na.
Os meninos que brincavam com ela puseram-lhe o nome de: "Pés Grandes".
Um dia quando ia quase a chegar à cidade viu passar uma caravana: Era o circo!
Foi a correr dizer aos seus colegas.
Quando estavam quase no fim da aula apareceram lá uns senhores do circo que estiveram muito tempo a falar com a Sra. Professora. Eu só ouvi isto: Gostava que nos deixasse levar as crianças para fazer uns exercícios na corda. Podia ser que alguma delas se equilibrasse pois a Dalila está doente.
Pés Grandes pensou logo que esta seria a sua oportunidade pois os seus pés iriam ter uma segunda utilidade.
Quando chegaram ao circo um a um começaram os ensaios.
Todos falharam.
Quando chegou a vez dela e viu que conseguiu ficou surpreendida.
Fez um trabalho SENSACIONAL e o seu equilíbrio foi TOTAL.
Mais tarde pediu aos pais se a deixavam entrar no mundo do circo.
Os pais consentiram e a partir daí dedicou-se ao CIRCO.

FIM

(Se calhar hoje é uma grande ESTRELA...)

Todavia, com o decorrer dos anos, voltámos a encontrar-nos, quiçá comprovando ser o caso bastante mais grave do que o Conselho Superior de Famílias lhe antevira em gravidade. Pois se é certo que há pessoas que possuem os pés maiores do que os caminhos que percorrem, o que é igualmente certo, é que há caminhos demasiados estreitos para neles se poder andar, sem danificar a anatomia dos andarilhos – e alguns não estão pelos ajustes. Depois, para que caibam neles dão cabo deles, e dizem que isso é evitar desgraças piores. Que é para defenderem o património, o genético e outro, e para lhe garantirem a felicidade, sobretudo sendo essas pessoas as mais infelizes dos mortais, ou, quando o são e estão, felizes digo eu, é porque se esqueceram de quem realmente são e as figuras que fizeram, enfim, de como em verdade são desgraçados e dignos de lástima, até aos seus próprios olhos. E falhados. Principalmente porque derivado da tentativa de recuperação do manuscrito, o publicá-lo num blog de histórias infantis, teve por consequência imediata o reconhecer-se Cátia nele, recuperando com isso ela a memória, o anseio comum de nos voltarmos a encontrar, recuperarmo-nos nós de nós mesmos, procurando-nos mutuamente, e tanto e insistentemente o fizemos que o conseguimos, para nos voltarmos a contar histórias, incluindo as incontáveis e indizíveis, tais como as que fazem da humanidade um circo e de cada ser humano aquele trapezista, mais ou menos brilhante ou eloquente, que voa sem rede, apenas abraçado ao seu sonho e na única companhia de quem lhe vai dentro. A segredar-lhe nem sei o quê, que nem vale pena aqui repeti-lo!...
Aliás, eu também desconfio, que cada estrela tem um fio, que a mantém dependurada, dessa coisa que é sonhar, que uns dizem ser quase nada e outros muito mais que tudo. Pois que se há vida a baloiçar, que até faz balançar o mundo, então é legítimo que todos o queiram tentar, com o seu fio mais profundo.
Porque se o circo passou e com ele levou a equilibrista afamada, quando partiu, bem deixou, a família que ficou, como os palhaços na estrada!

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