Dick Haskins - O Último Fim

Desde os 25 anos que escreve e, agora com 77, já vendeu sete milhões de livros. Alguns deles, pelas mesmas mãos que os criou, viraram "filme", e considera o género policial, não um espécimen das literaturas fantásticas, tal como a acção, aventura, western, espionagem, terror, ficção científica, cor-de-rosa, para apenas citar os mais conhecidos desta literatura falsamente apelidada de menor, mas sim que o policial é um género sério, quase a chave-mestra da narrativa, uma vez que os "escritores policiais escrevem qualquer tipo de livro, ao passo que os chamados escritores do outro género tentaram o policial e nunca o conseguiram", como afirmou em entrevista a Isabel Lucas, publicada no Diário de Notícias, de 29 de Junho de 2007. Provavelmente esquecendo nomes como Umberto Eco, José Rodrigues Miguéis, Ursula K. LeGuin, Eça de Queiroz/Ramalho Ortigão e Isaac Asimov, quiçá omitindo-os propositadamente para melhor defender a sua dama. De qualquer forma, géneros à parte, um romance é um romance seja em que género for, e o que faz dele maior, ou uma grande obra, é o facto de estar magistralmente bem escrito, ser original, inovador, precioso de estilo e não o modelo (ou figurino genérico) sob que se pautou, que transcreve e em que se enquadra.
Andava a estudar medicina à noite e trabalhava de dia, como funcionário do Ministério das Obras Públicas, só que em vez de fazer uma coisa ou outra, escreveu um livro que, por lhe morar perto, levou à Diário de Notícias, redundando a ousadia no veredicto de "publique-se", coisa que lhe abriu as portas de outras editoras, impulsionando-o para uma carreira "quase" ímpar na letras portuguesas, embora sejam poucos os seus compatriotas que lhe reconheçam o feito, mesmo aqueles que navegam entre as margens do thriller, baloiçando do suspense para o policial à mínima onda, posto que se um pode ser o outro é igualmente verdade o vice-versa, sobretudo porque no primeiro cabem os outros dois ao mesmo tempo.
Portanto Dick Haskins (DH), pseudónimo de António Andrade Albuquerque, além de autor de inúmeros títulos espalhados por aí (EN, Asa, Ática...), foi também director das Edições DH DêAgá, em cuja "Colecção Enigma", do célebre ratinho-sherlock, o que lhe facilitou o escoamento à prolífera verve, na qual se inscrevem romances, novelas e contos, dos quais os mais conhecidos são O Papa Nunca Existiu, O Expresso de Berlim, O Sono da Morte, O Isqueiro de Ouro, A Embaixadora, A Noite Antes do Fim, A Sétima Sombra, Clímax, O Espaço Vazio, Estado de Choque, A Hora Negra, Labirinto, Lisboa 44, O Minuto 180, Obsessão, O Fio da Meada, O Jantar é às Oito, Porta Para o Inferno, Premeditação, Processo 327, Psíquico, O Último Degrau, Quando Amanhã Chegar, além de coordenar as Antologias de contos e novelas dos maiores escritores da Literatura Policial, que curiosamente começam com um conto seu: O Último Fim, onde espelha – ou não – a sua teoria inicial do género, visto que esse conto terá tido propósito e publicação avulsos, de carácter especial, digamos, vindo a lume pela primeira vez no suplemento do jornal O Século, Século de Domingo, de Outubro de 1963, logo no seu 17º ano de exercício (público) da escrita, que noves fora dá oito do ano 1, logo ciclo completo.

Estruturalmente composto por cinco quadros explícitos, identificados e numerados, e três triângulos afectivos, dois concretos e um virtual, formando um painel desdobrável, qual biombo de ocultar outra nudez, DH autoriza transcrever neste conto um Édipo que caiu nas malhas do seu delírio, da sua imaginação excitada pela falta de afecto maternal, sentido abandono de quem se dedica mais à carreira do que ao filho, pondo a ferver no caldo existencial do temor e susceptibilidade, o impulso de um filho que mata o padrasto para vingar a alucinada morte da mãe, que assiste a esse trágico desfecho enquanto na TV se desenrola representativamente outro, também plausível perante as circunstâncias enunciadas.
Ora, acontece que é esse outro fim, o da peça que a mãe representara nesse mesmo dia, cujo êxito ela e o padrasto celebram, ele um veterano do cinema, ela uma jovem talentosa e promissora actriz, no Hollywood dos sonhos e das transformações pontifícias, que dizem respeito às chefias de um sistema ou e uma escola, onde o mendigo pode virar milionário apenas com um toque de magia do aparelho da produção cinematográfica, que se espelha no écran da caixa mágica, que a preceptora (Lucy) de Jimmy, o filho, esquecera ligada por causa do encontro que tivera com o seu namorado(Ed), exactamente na mesma casa e após tê-lo deitado, adormecido e sujeito aos fantasmas da sua solidão. Uma situação real, pelo menos tanto quanto supomos ser aquela em que se encontram os personagens de um conto, outra representada e aqueloutra simplesmente imaginada, enfabulada, concorrem em simultâneo para dois fins, dos quais, o último prevalece. Motivado o suspense, a expectativa, o sabermos nós, os que lemos, mais sobre os seus destinos do aqueles e aquelas que se encontram no enredo, eis que eclode e vinga sobre a narrativa, a síntese confeccionada pelo autor, num empratado feliz que pode ir, ou não, ao encontro dos nossos anseios e previsões, nos surpreende ou choca, conforme a sensação que a notícia espalha.
Porque este conto, esta história, cada novela, cada romance, cada thriller, cada policial, cada suspense, é sempre notícia de crime, alimento que nos sacia a nossa fome sangue, nos expurga a vontade de matar, de nos vingarmos do sonho, mantendo-nos indesmentivelmente inocentes, sem mácula nem mancha de sangue, a não ser aquela que o inconsciente inaudito nos permite observar.
Gostava de pensar que este conto é nuclear à obra do autor, lhe serviu de matriz para outras e mais minuciosas histórias, embora careça de argumentos que o corroborem. Sei o poder do conto, como ele pode tornar-se mais importante que a vida ou a teoria dela. No entanto, nenhum detective pode trabalhar sem equipa e respectivos equipamentos, lupas e coisas assim, para bisbilhotar os bastidores de António Andrade Albuquerque, conhecido pelo discreto autor Dick Haskins (cão e corruptela de actor de cinema – Jack Hawkins), cujo pseudónimo foi mais que isso, mas igualmente um instrumento de ocultação ao serviço de um director editorial, precisamente das Edições DH DêAgá, na concretização de um crime, cujo cadáver todos ajudamos a esconder, não o lendo amiúde nem com a concentração maior que qualquer outro género nos exige, porque o não levamos erradamente a sério, nem por literatura séria, ainda que os seus autores percam o sono por causa de gralhas, quando os seus textos atingem o prelo.
Pois bem: importa tirar esse crime a limpo, denunciá-lo aos quatro ventos, implantar-lhe as cinco chagas, infligir o castigo da memória a quem o cometeu, retirar do quase anonimato o homem que inventou outro homem para poder viver para as letras portuguesas, por letras, com letras e de letras. Algumas a pagar!

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