Os Doutores-Rã: e a literatura de procriação assistida...

Amélie Nothomb, no seu livro, quer dizer: romance, intitulado a Higiene do Assassino (Editorial Presença – 1997), estabelece que há diferentes tipos de leitores, ou que há leitoras/es e "leitoras/es" como há escritores, escritoras, escribas e escrivães, sendo que uns e umas gostam amiúde de fazer-se passar pelos outros ou outras e vice-versa. E que se há quem mergulhe na leitura para ficar encharcado de conteúdos até aos tutanos do córtex – e aqui era bom saber, na anatomia humana, onde é que isso fica!... –, não menos "leitores e leitoras" o fazem maquilhando-se apetrechadas, e apetrechados, com os seus fatos de mergulho, tipo escafandro de não-me-toques que me infectas, para poderem entrar e sair dos livros sem serem tocados pela mínima gota de conteúdo, defendendo-se do veneno das palavras alheias como fazia o diabo da cruz, embora tenha crucificado quantos inocentes pôde através dela, ou melhor dizendo, delas, que cruzes há muitas e de bastos formatos conforme os credos e os pecados a expiar, e para os diabos, quaisquer que sejam, desde que seja para fazer mal ao próximo, menos próximo e distante, qualquer cruz serve. São, os que Amélie denomina, como leitores-rã. Por analogia com os homens que costumam ir ao fundo do mar sem se molharem.
Ora, a bem dizer, se acerca das leituras de uns e outros, umas e outras, tal se pode inferir, não menos legítimo será fazê-lo sobre demais actividades onde é habitual usar, pôr em movimento, estimular, a massa cinzenta com suas célulazinhas, como gostava de referir o Poirot da cristã Agatha, sobre os diferentes cursos e seus cursadores ou cursadoras, corsários e corsárias do intelecto alheio na pirataria do conhecimento, que conseguem a proeza de tirar canudos e canudas, atravessar currículos e currículas, sem nunca terem percebido a mínima das matérias, patavina dos conteúdos, visto que as decoraram para esquecer, que bem melhor o fizeram do que as memorizaram, com o auxílio da sempre copofónica boémia de armar aos corvos, pelo que mergulharam sim senhora, disso não houve a mínima dúvida, mas foi na água do lago d'O Tarro, que suja e insalubre também não presta para mais nada, a não ser para passar barrela a quem, de tão falho aproveitamento, teve por última escolha a sorte que lhe coube de aqui vir parar. Ou juntar lixo, porcarias várias e chamar insectos comuns à putrefacção do meio. E que licenciados no fresco da obradura, hão-de ser os doutores da nossa portugalidade, feitos à medida das caixas dos hipermercados, em que se pode trabalhar sem curso nenhum, nas obras como servente ou nas municipalidades, onde desempenharão actividades, sobre as quais nunca ouviram falar sequer, mas a que a cunha pôde chegar, e o voto valeu no troca por troca autárquico, como sucedeu noutros tempos e continua acontecer na maioria das edilidades, nomeadamente nas alentejanas, que nisso do errar são sempre as primeiras e no acertar, como convém à mediocridade, aliás exemplarmente notória nos transportes, acessibilidades, cultura, requalificação urbana e planeamento, igualmente sempre as últimas, e só se não tiverem outro remédio.
"Ouvide" agora senhores e senhoras, excelências!, uma história de pasmar...
Há muito, muito tempo, vivia na Rua Direita uma velhinha, que tirou um curso superior na Universidade da Agulha (UA), sita ali na esquina da Rua com a Rampa de S. Lourenço, onde então se vendiam também as máquinas Singer. Tirou de letra todo o hardware e software, aprendeu com uma perna às costas o que era uma máquina de costura, para que serve o pedal e onde se enfia a bobine do fio (condutor da narrativa), o que era a correia da cabeça, o tronco da máquina e a caixa baixa de embuti-la. Teve 20 valores na Universidade dos Lavores, que, como saberdes e estardes lembrados, estava pintada de trocadilhos e arabescos para fazer frente aos anagramas da existência, e já na altura era uma coisa importantíssima na arquitectura das ignorâncias com habilitações certificadas. Pois bem: logo que com o canudo chegou a casa, empregou-se numa loja ao lado, por sinal retrosaria de nome e tradição, onde passou a remendar ou cerzir, com o auxílio de polido e luzente ovo, que nem ovo era, por ser de madeira, com agulha fina e preciosa, de igual calibre e quilate do anel de curso que o midinho alçava, todas as meias, incluindo as de vidro, à mão, como sempre fizera desde que se conhecera nas lides laborais e funcionárias, que equivalia mais ou menos a toda a vida. Não porque tivesse tido inúmeras oportunidades de arranjar novos empregos no desempenho das funções para que se formara; não porque não houvesse uma forte aposta governamental (e local) nas novas tecnologias, inovação, empreendedorismo urbano, marketing territorial e comunicação; não porque não lhe houvessem oferecido lugares de destaque, influência e protagonismo na estratégia de desenvolvimento sustentado para a sua família, rua, cidade e região; não. Mas sim porque ela já estava velha para mudar com o aprendizado de novidades, não estava para complicações nem comprometimentos na sua vida, prezava a paz de espírito e tranquilidade, o safe-se quem puder e o não tenho culpa, e menosprezava tudo quanto a obrigasse a pensar, a sentir, tudo coisas que a magoavam profundamente como uma comichão que se tem em pontos do corpo onde se não chega para coçar. E, finalmente, já tinha muita experiência da vida e sabia que todas e todos querem o mesmo e são (igualmente) todas e todos iguais. Pois tinha 23 anos, e isso é muita e qualificada vivência.
Confortante, não é?
Deveras. Sobretudo se pensarmos que essa velhinha agora vai ter uma nova oportunidade, propiciada pela formação contínua e escolaridade para toda a vida, onde lhe será facultada a possibilidade de tirar o mestrado e o doutoramento correspondentes à sua esforçada e consciente e responsável formação, voltar aos bancos da Singer onde lhe ministrarão acções complementares que a apetrecharão das melhores maneiras e procedimentos para ganhar mais fazendo absolutamente o mesmo de igual forma e profissionalismo, sob o coaxar colectivo de "o seguro morreu de velho", "é melhor prevenir que remediar", "remendo a remendo enche a academia o papo", esperando envelhecer tanto mas tanto, até que o envelhecimento seja já tão velhinho mas tão velhinho, que não possa envilecer mais ninguém por falta de força, ânimo e motivo. E fique a esperança de esperanças, que parecem ser dela sempre as últimas golfadas a espernear nas vascas da morte.
"Não se é a mesma pessoa se se tiver comido morcela ou caviar; também se não é o mesmo se se tiver acabado de ler Kant (Deus me livre) ou Queneau. Enfim, quando falo de uma maneira impessoal, deveria dizer «eu e alguns outros», porque a maior parte das pessoas emergem de Proust ou Simenom num estado idêntico, sem terem perdido uma migalha do que eram e sem terem adquirido uma migalha suplementar. Leram, e é tudo: na melhor das hipóteses sabem «do que se trata». Não julgue que estou a inventar. Quantas vezes não perguntei a pessoas inteligentes: «Esse livro modificou-o?» E elas olhavam para mim, de olhos muito abertos e como quem diz: «Porque haveria de ter-me modificado?»" – Disse Amélie um dia através do seu personagem, o Prémio Nobel da Literatura, Prétextat Tach. Bem podia ter ficado calada, que se alguém o leu não lhe tocou; e se lhe tocou, foi apenas no instante imediato que antecede o vómito. Como um plano nacional de leitura que os crânios regurgitaram sem saber como aplicar ou, o que é pior, sabendo muito bem, tão bem, que o aplicam como emplastro de usar e deitar fora quando o analfabetismo funcional está menstruado e sente remorsos por ter fodido tanto, tantas e tantos, mas sempre com camisinha, é claro, para prevenir contra contágios e gravidezes indesejadas. Quer, dizer, com escafandro de quecas para evitar girinos. Girinos e girinas, que nisto da rãnhozice sempre houve, e haverá, respeito pela Carta da Igualdade de Género!...

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