Os Ovos de Emma

Não é necessária muita concentração para depreendermos que estamos nos arredores de Portalegre. Ao caso, e mais precisamente, entre a Serra do mesmo nome e a Serra de S. Mamede. Há como que um vale, um espaço parado no tempo, entre encostas, onde as ideias e as técnicas andam a passo de caracol. Daqui, semelhante a eco de resfolegar cansado, em ritmo cadente, subtraindo ao silêncio bucólico aquele algo de estertor manso das ravinas no rumorejar dos pinheirais, uma voz soa, qual crepitar líquido dos regatos perenes de início de Primavera. É Emma Maia.
E se Emma vive entre serras, a sua linguagem também; é uma pronúncia rural mas urbana, um dialecto crioulo, que na composição mista arrasta ruídos com reminiscências e intuitos industriais, papaguear de jornaleiros em faina, arenga de ajuste e negócio, franjas da comunicação social em laivos sonoros de telefonia que acompanha o amanho das terras. Acarreta consigo, fundidos com o xadrez da chita, nos estampados do lenço sob o chapéu de feltro preto, na bata garrida a sobrar sobre as calças de ganga, os sinais do género masculino e feminino típicos da mulher que se formou a crescer como os rapazes, a ir aos espargos, tortulhos, ninhos, correr entre estevas e piornos, sacudir o gado ou apanhar fruta. Merendar pão e conduto da mesma mão, enxaguar a garganta com tinto corrente. Pelos olhos entrou-lhe a imensidão do verde e azul serranos, e moldaram-lhe as ancas o calcorrear de granitos não cinzelados. Mas desse estado ao sonho é um saltinho de trepa, que chilreia na nuca, a desinquietar o Alentejo...
Portanto, soletra-lhe a voz utopia quando mal se descuida dos afazeres terrenos. Quer reunir em si a harmonia de tudo quanto é contrário, e prende com atilhos de saudade aqueles que se afastaram. Demora-se nos mandados, afia os suspiros com lembranças avulsas de pormenores singelos. E desagua-lhe o desejo num amor que almeja compromissos de conquista, lutas de consentimento entre rejeições, batalhas quixotescas contra fantasmas que lhe moem, enternecendo, os impulsos de possuir através da dádiva, como se a sociedade pudesse ser uma enorme família, onde o capital afectivo fizesse as vezes das hierarquias ou do dinheiro. E influenciasse deveras o sentido de voto na devoção à coisa pública.
Sensatez. Ingenuidade. Inocência. Eis os três pólos inseparáveis, em redor dos quais lhe flui o sangue e a palavra. Do trigo faz o pão, mas ao joio aproveita-o como rabeira para as pequenas aves de criação. Transparece-lhe o imo na flor da pele e ruboriza perante a surpresa, mais do que deseja revelando-lhe assim amiúde quanto de si escondido quer. E se no crescer se educou, conforme as imposições do meio, ou do corpo, segundo este se lhe modificou, nunca por nunca ser, bruscamente cortou com os ritos, as maneiras, os hábitos, as tradições, os valores, as regras, o quotidiano, da família em que o fez e aconteceu: o pai, empregado fabril, a mãe doméstica, mulher-a-dias na cidade, com casa e algum chão seus.
Saídos da rudeza do campo, para fazer face à carestia de vida e exigências do tempo, não abandonaram todavia essa atmosfera característica da ruralidade em que se crestaram, e que inculcaram, pouco a pouco, dia a dia, embora inconscientemente, na filha. Honravam o trabalho, a partilha, a cooperação, a ajuda entre eles; celebravam os aniversários, a Páscoa e o Natal, mas estes sem exageros nem afectações de religiosidade; dividiam quanto de bom lhes coubesse e auxiliam-se nos revezes, dentro da modéstia de conhecimento que as habilitações lhes propiciavam; incentivavam Emma para auto-suficiência e autonomia, para que lhes pudesse facultar conforto na velhice e dar continuidade à família, em espírito e genes, mas sem a desesperança, hiperprotecção e expectativa que normalmente acometem os casais com filhos únicos. Sem deslumbramentos de maior, nem preciosismos de exigência, eram discretos no convívio, simples nos gostos e afáveis de trato.
Porém, de restrito vocabulário. E deveras temerosos ante a complexidade da arte, dos mistérios da ciência e tecnologia, dos arrufos e jogos da política ou da agitação cosmopolita. E sentiam-se sinceramente acabrunhados quando lhes faltavam as palavras que lhes traduzissem o que ao momento pensavam, dessem ênfase ao que sentiam. Involuntariamente transmitiram-no a Emma, que lhe avolumou a preocupação e lhe aumentou a relevância.
Por isso, quis ela aperfeiçoar o seu discurso, dar-lhe requinte e substância, socorrendo-se da leitura eclética e diversificada. De jornais, revistas, livros técnicos, estudos científicos e ensaios filosóficos, enfim, literatura. Então, na singeleza da moradia, uma dependência dela, o seu quarto, começou, primeiro sem destoar muito, mas com o correr dos anos, a ganhar uma vida ímpar e peculiar que contrastava com as restantes divisões. A ter personalidade díspar, a acumular mistério, a exigir atenção redobrada, a acomodar presenças que se estranhavam num ambiente tão comezinho e campestre. A compungir os progenitores que, se lá entravam por qualquer motivo corriqueiro, se compenetravam em tal circunspecção, a pontos de o pai ter o cuidado de tirar o boné, se o tinha na cabeça, e a mãe a abotoar o decote até cima.
Os anos somaram-se uns aos outros, naquela cadeia habitual que nos acompanha a idade, e a par deles, multiplicaram-se também esses livros com outros livros, essas revistas e jornais por demais exemplares da mesma índole, até o quarto ter as paredes não forradas de papel, mas de estantes com papel, que mais parecia, não o quarto de dormir que era, e por tal criado fora, mas uma sala de acordar, de vigília, de despertar, de recriar como é qualquer biblioteca, ainda que nas vilas mais sorrateiras do Alentejo profundo. E vai daí, dentro dele, em que Emma ganhara o hábito de apalpar a parte inversa e interior do mundo e da vida, e onde passava a maior parte do tempo, que eram todos os dias e noites se em férias ou fins-de-semana, e apenas as noites se em aulas, lhe deu para rabiscar o que ia pensando em folhas brancas, pequenas e arrancadas dos cadernos diários escolares, em forma de poemas, short-stories, ditados de versejo e rima, pensamentos que lhe acudiam e achava meritórios de guardar escritos para que deles se não viesse a esquecer.
Quando deu por si, eram estes rascunhos já tantos, embora que espalhados entre estantes, gavetas, pastas de arquivo ou cadernos de argolas, que resolveu arrumá-los para os reler, escolhendo de entre eles os que continuavam a ser verdade e melhor espelhavam o que lhe ia na alma. Apurou os critérios de desbaste, exigiu-se com algum rigor formal e de conteúdo, reviu a grafia de outros, em que isso não abonava para a sua compreensão imediata, estabeleceu um local próprio para os guardar, em que estivessem mais acessíveis para os consultar.
Mas como era empreendedora além de fantasiosa, quis que esse local não tivesse uma aparência vulgar, fosse de certa maneira especial, e, em suma, representasse o seu quarto dentro do quarto, como, aliás, ele já o era dentro da casa, e a casa dentro do vale, e o vale dentro da região, e a região dentro do país, e o país dentro da Europa e, ao fim e ao cabo, a Europa dento do mundo.
Portanto, arranjou uma cesta de vime, grandota por sinal e à altura, se considerarmos a diminuta quantidade de textos que lhe restaram da efectiva monda de que foram alvo, numa espécie de ninho com asa, cujo fundo forrou de palhas de centeio, aveia e trigo envernizadas, para maior brilho, ou duração, e menor quebra, colocando-a ao canto esquerdo do quarto, perto da janela para lá dos pés da cama, afim de que o sol das tardes de Inverno, entrando pela vidraça, que estava virada para Ocidente, os iluminasse e aquecesse, os protegesse da solidão do frio, nos dias que passava fora, nas idas e vindas à cidade onde frequentava a escola.
Agradou-lhe a coreografia, contudo, por pouco tempo, pelo que não demorou muito, por ver assim as suas inquietações fragilizadas e em carne viva, sentindo nas costas nuas as arestas das palhas, a dar-lhe outro arranjo que mais a satisfizesse e lhe emprestasse alguma feminilidade, conforme lhe exigiam as vicissitudes hormonais que a adornavam no seu dia a dia. Ora, como tinha diversos ovos de plástico das pastilhas elásticas, que se vendiam no quiosque junto à escola, onde eram acompanhadas por um brinde, ou boneco de plástico em peças, desmontado, dobrou e enrolou cada um dos seus escritos para melhor lhe caberem dentro, fechando-os de seguida, e envolvendo cada com pratas de diversas cores, que resultou naquilo que podemos avaliar como uma ninhada de ovos coloridos. Data a partir da qual, ia repetir o comportamento e acção, sempre que alguma ideia ou poema lhe ocorresse e fosse tão importante, mas tão importante, que a considerasse uma trágica perda o seu esquecimento.
A mãe e o pai, inicialmente, apenas acharam a decoração graciosa. Depois, ao sentir que aliviava notavelmente a gravidade ao quarto da cachopa, rejubilaram enternecidos, e passaram a entrar lá mesmo quando nele não tinham nada que fazer, tão-só para contabilizar o volume e número de ovos que ia crescendo no cesto. Às vezes, de um dia para o outro somava mais quatro ou cinco, outras passavam-se nove dias sem que se visse aumentarem as novidades nele.
Mas enquanto Emma crescia e baloiçava no vaivém de cidade-campo, casa-escola, o pai dela cometeu dois ou três disparates que desagradaram sobremaneira à mãe, indo-lhe esta dar-lhe outros tantos como contrapartida. Quiseram dizer as suas tristezas, as suas arrelias, e os motivos delas um ao outro, mas quando o pretendiam apenas agravavam ainda mais a situação, discutindo, apontando-se mutuamente erros, aumentando o pesar contristado que a ambos acometia, instalando-se entre si um clima, que podemos chamar agora, de insustentável. E que escondiam da filha, por acharem que a não deviam sobrecarregar com os seus problemas "pessoais", desconhecendo nisto, o que é muito comum a todos, que de pessoais nenhuma questão o é, pelo menos para os filhos, quando os problemas das famílias assolam os próprios pais. O que atirou o casal para uma crise, de certa forma, pungente.
Até que um dia, ao almoço, em que Emma estava fora, a coisa explodiu em termos tais, que quase se tornou impossível estarem um em frente do outro, por ódio ressentido, e desejando ambos não se verem mais. A mãe saiu da cozinha, aflita consigo, sem saber que fazer, dizer e pensar, apenas por não conseguir tolerar olhar o marido, e ver, que ele preferia não comer, e estar à mesma mesa que ela. E entrou no quarto da filha, remexeu nos ovos, deu-lhe voltas e voltas dentro da cesta, tirou um ao calhas, desembrulhou-o, abriu-o, e leu qualquer coisa nele que lhe provocou o choro, e onde uma das suas lágrimas, desbotando várias letras uma mancha na tinta.
Então, retornou à cozinha, de braço estendido, e entregou-o ao marido. Que o leu igualmente, e à medida que o fazia, sentiu esvaziar-se a agonia, a aflição em que vivia, e o torturara ultimamente.
Depois beijaram-se como sabiam, não dessa forma que aparece nos filmes e telenovelas, mas com um tamanho abraço jungido, que aperta as almas umas contra as outras, fundindo-as entre si, e sem permitir qualquer nuvem entre elas.
Do que depois veio a acontecer e sei, não conto mais. Nem onde ela está, nem por onde vai, nem o que lhe aconteceu quando retornou a casa ou lhe acontece agora. Mas juro-lhes que as visitas à família aumentaram numerosamente daí para cá, e que muitas delas, quando de lá partem, deixam o cesto mais vazio do que quando em casa entraram, sendo por isso difícil saber ao certo quantos ovos vai Emma tendo no ninho... E algumas há, que todas as Primaveras, vestem as filhas de branco, com um colar e coroa de flores, de níveas pétalas ao redor de um ovo dourado, ou todas elas de amarelo dourado, tal e qual um sol alado!

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