A Metáfora da Ética e da Moral

(Controversas ambiguidades para a alegoria do apagamento)

"Neste Carnaval
Em que estamos
A melhor máscara
Para usar
Seria tirar
A que nos está a tapar"
Carnaval de Papel, de Jaime Crespo
In A Rabeca, 1981

A problemática da moral e da ética, na sociedade de comunicação e filosofia da actualidade, é de natureza dupla, o que sem dúvida a faz enfermar de duplicidade bipolar. Primeiro, porque sendo dois temas "queridos" da filosofia social contemporânea exemplarmente (e originalmente) distintos, merecem tratamentos diferentes na caracterização e definição objectiva; segundo porque, potencialmente diferenciados, até nas suas raízes etimológicas (moral, deriva do latim mores, "costumes"; e ética do grego tá éthe, "os costumes"), eles têm assento de igual destaque à mesa do entendimento comum, na expressão popular como erudita: ambos são enunciados como disciplinas do dever do costume, ou costume do dever, que enformam os comportamentos sociais, melhor dizendo, individuais em sociedade, de cuja infracção resulta inevitavelmente a queda no pecado da marginalidade, no raio de acção do indesejável, logo expugnável, pecado pelo qual o único "prémio" alcançado é a morte por solidão, ao contrário da morte solidária, com reconhecimento e rituais próprios, compreendida aqui nas mais diversas facetas ou mortes: a física, ou biológica, a espiritual, a religiosa, a de cidadania, a racional e a social, e até ainda a imaginária. Ou simplesmente, enfim, o ostracismo e esquecimento.
A ética é o mapa de sinais do rosto da humanidade; a moral, a lente de cores intencionais, portanto motivadas, entre as díspares paletas de ver, arrumar e pintar o mundo. Na génese, na teoria e nos resultados. A moral é romana mas a ética é grega. A moral é imperial mas a ética democrática. E essas dessemelhanças criam entre elas uma distância abismal, uma falha geocultural quase intransponível.
Todavia, o que parece óbvio neste emaranhado labirinto de diferenças e semelhanças, é que o homem se apetrechou, tanto da moral como da ética, para fazer sobreviver o seu grupo, a sua comunidade, a sua raça, a sua consciência, a sua cultura, a sua arte, a sua língua, os seus genes, a sua humanidade, através dos tempos e das clivagens de uso, preceitos e costumes, tradições e leis, ao designar para ambos os conjuntos de atitudes e comportamentos, um universo comum, que no grupo, família, clã, tribo, cidade, Estado, ou organização destes, diz respeito e define a natureza das relações interpessoais. Atitudes essas que, necessariamente apreendidas, compreendidas e contempladas por todos, visto que a sobrevivência da sociedade delas depende, como a sua estruturação, coesão e organização, permitindo a cada membro o máximo de expressão nela, mas condicionando-lhe a iniciativa, através de um maquinismo tão simples como a autodisciplina. Tanto assim, que não nos faltam demonstrações históricas de "impérios" secularmente duradouros, com ideologias assentes na prosperidade, riqueza, produtividade, corpo bélico, estratificação social, que notoriamente resistiram ao universalismo expandindo-se sobre o universo, por conquista ou por comércio, apropriação de culturas ou colonização.
Hoje em dia, essa confusão teórico-prática parece ter-se finalmente esbatido: o tronco comum da ética ramificou-se em morais e deontologias, conjuntos de normas, ou tábuas de regras, que numa profissão, ou corporação, regem os deveres e outorgam os direitos. Assim, de acordo com a funcionalidade exigida, e atribuída, podemos encontrar diversas morais (moral cristã, moral da família, moral do Estado, moral conjugal, moral desportiva, moral pagã, moral feminina, moral budista, moral ocidental, moral nórdica, etc.), o mesmo acontecendo com a ética, que no particular se expressa em deontologias (ética científica, ética militar, ética religiosa, ética artística, ética médica, ou deontologia dos cientistas, dos estudantes, dos críticos, dos escritores, dos artistas, dos informáticos, dos astronautas, dos políticos, e por aí fora).
Pelo que poderíamos afirmar que a moral é um conjunto de normas e vaticínios de conduta, emitidas e recebidas por um grupo particular (por exemplo, o dos católicos dentro da comunidade cristã, e transmissível pela evangelização ou pregação do catecismo missionário), com a finalidade de manter em funcionamento e garantir a sobrevivência de uma determinada sociedade, manter operativa a sua estrutura organizativa e hierárquica, por cujo desrespeito se efectiva um rompimento com ela, ou onde por infracção se incorre em pecado, pondo o infractor sujeito à respectiva disciplina de correcção socializante, através do maquinismo culpa versus castigo, ou se ingressa na carreia de amoral (designação atribuída a todo aquele que é desprovido de qualificação moral, boa ou má, porque estranho ao domínio dos valores enquadrados, marginal na hierarquia do bem e do mal, e personificação do indivíduo indesejável à comunidade, cuja conduta é contrária à moralidade, em virtude de um defeito de carácter, mau aprendizado das normas, influência diabólica ou ausência de sentido moral), ou de barbárie que professa o imoralismo, designação atribuída, em sentido lato, à doutrina filosófica que subordina e sacrifica os valores morais a exigências oportunistas extrínsecas, que conduzem, assim, eventualmente ao desprezo sistemático de todos os valores morais. Mas que num sentido mais preciso, designa, na linguagem de Nietzsche, o projecto concebido por ele para destruir totalmente a hierarquia de valores estabelecida pela moral cristã tradicional, em proveito de uma nova moral edificada na sublimada visão do super-homem – "o homem é aquilo que tem de ser superado" –, e sobre valores, a maior parte das vezes, diametralmente opostos.
Assim, pacífico é afirmar, que a verdadeira problemática da ética se centra no discernimento entre o certo e o errado, enquanto a problemática da moral se fundamentará na distinção e prescrição do bem e do mal. Isto é, que a ética é a parte da filosofia que avalia e trata das normas relativas à conduta humana, mas numa vertente geral e/ou extensível à generalidade, estudando os fundamentos e princípios básicos da moralidade, enquanto a moral compreende a formatação, confrontação e definição de quadros normativos específicos, apenas aplicáveis por e num determinado contexto (quer social, como religioso). A ética é disciplina filosófica que intencionalmente visa integrar, enquanto a moral é pré-filosófica e emocional, modalidade praticável tão-só pelos seus diversos teores, sob a intenção de excluir.
A moral pode ser, é mesmo, um código normativo de conduta; a ética é a área do "saber praticável" que encerra os princípios, valores, essenciais e basilares, para a existência em compromisso, sob os mais variados e diversos códigos. A moral refere-se aos particulares modos da conduta em relação com um ideal; a ética, aos modos de relacionamento humano com outros humanos, de como entender essa relação sob os prismas da empatia e simbiose, sem pretender fazer do seu discurso essencial uma plataforma universal. E universalista.
A história da Antiguidade Clássica, que foi uma das fontes de onde verteram e em que se forjaram algumas das bases e princípios fundamentais da actualidade, nomeadamente e sobretudo da civilização europeia ocidental, que após os Descobrimentos portugueses veio a ser exportada os demais continentes do Mundo Novo, dita-nos que se a sabedoria, democracia, arte e filosofia foram gregos, o direito e a práxis política que os propagou foram sem dúvida alguma romanos. O curioso é que foi necessária a força imperial dos menos sábios para implantar no mundo o conhecimento destes. Tal como sucede com a ética, que, se não fosse a bestialidade da moral, nunca teria chegado até nós. Que sendo grega a primeira e romana a segunda, originam as diferenças interpretativas suficientes e necessárias para lhe reservarmos estatutos diversos, tal como vemos serem diferentes os estatutos daquele que transporta e do outro que é transportado, em observância com os papéis que desempenham. Ou o tipo de objectividade que exigem ao rigor de quem os estuda. Entre moralismos e preceitos éticos há uma diferença abismal!
Por isso não devemos estranhar, que o primeiro código moral normativo que durou desde a sua intrusão até à actualidade, tivesse vindo de fora do mundo politizado, de fora da esfera europeia do imperialismo romano, qual palimpsesto das eras pré-romanas, e acima de tudo sejamos obrigados a reconhecer, que não sendo romano nem grego mas antes hebraico, utilizou os dois para chegar à Península Ibérica e expandir-se nela, através do cristianismo adjacente à romanização, renovado pela língua grega em formato de Novos Testamentos, onde se repetiam os Dez Mandamentos judaicos reciclando as Tábuas de Moisés, adaptando-as e adaptando-os às necessidades de consolidação e manutenção do Império. Em contraponto com o Juramento de Hipócrates, v. g., que não obstante oriundo da Grécia Antiga, se manteve em vigor, com algumas adaptações de modernização, desde esses longínquos e idos anos até hoje, estabelecendo a deontologia médica, subordinando-a a princípios e valores maioritariamente alheios à medicina, sem os quais a competência médica poderia ter evoluído muito mais, embora com substancialmente menos prestígio, idoneidade, reconhecimento humanitário e confiança popular.
Ora, destes dois "factos" atestados pela História, ainda que mais das intenções do que realmente dos "actos" e dos "corpos", resulta notarem-se já vincadamente os caracteres diferenciados de moral e de ética, se notam bem a especialidade de uma e de outra: embora às suas comuns infracções seja atribuído, não propriamente o valor de crime mas antes de pecado, o código moral é imposto da comunidade (grupo, partido, corpo) para o indivíduo, enquanto o código ético parte de dentro, primeiro da consciência individual para a consciência colectiva, do elementar para o estruturado, do grupo (ou corpo) para a comunidade, formatando-lhe a imagem e as práticas. A primeira, a moral, é uma directriz de direito em lei canónica, sob o fito de gerar culpa e punição; a segunda, é um compromisso de honra e de liberdade, assumido e jurado, no foro da produção de consciência. Aos princípios morais (como aos dogmas) não importa se quem lhe é sujeito os compreenda ou não, desde que os cumpra; mas aos princípios éticos, pelo contrário, o mais importante é a sua aceitação voluntária e compreensão, que lhe trará, consequentemente, o respectivo cumprimento.
Como exemplo de uns e outros aos Documentos A e B, acoplados como [espécie de] rodapés, sendo um o excerto da Bíblia Sagrada, mais propriamente do Antigo Testamento, em Êxodo, 20:1 a 26, e o outro, B, a Proposta para a Nova Ética Científica, de Karl R. Popper, incluída em diversas obras suas, que ilustram o anteriormente enunciado. Ao infractor dos Mandamentos é dada a excomunhão ou penitência, conforme a gravidade do pecado, sem qualquer hipótese de defesa nem apelo; mas ao desrespeito dos princípios éticos, segue-se comummente o processo (às vezes disciplinar) onde se concede a possibilidade de contradição e debate, logo de defesa, que poderá resultar (ou não) em expulsão da classe, corpo colectivo ou grupo. A moral é circular, fechada e rígida; a ética é livre e aberta. A moral é instrumento de pressão de uma sociedade sobre o seu súbdito; a ética é um instrumento da consciência e do conhecimento de que o elemento se socorre para avaliar o seu exercício, bem como para garantir-lhe confiança e aceitação, primeiro dos seus pares, e depois da sociedade.
A ética é, portanto, a deontologia dos filósofos; e a moral, é a dos crentes e militantes – o que metaforicamente, além de verdade vem a dar no mesmo. Tão válido como uma imagem, metáfora disto que é dito dizendo outra coisa, sinais que pintalgam o rosto de uma mulher, sugerindo traços de carácter conforme a sua disposição nele, ou o olhar que pinta as flores, que lhe escorregaram da boca fechada pelo coração dos lábios, conforme a cor que melhor vê.
Mas, sinceramente, agora vejamos... Para que é que foi uma seca tão grande, se a diferença entre ambas, é quase nenhuma? É dose! Bom... É que há por aí muito falso moralismo, bem como muito ético com falta de ética. Aliás, o percurso da deontologia pejada de corporativismo até aos resquícios das vírgulas, ainda está por descrever.
E porque é preciso acabar definitivamente com os carnavais fora de Entrudo, ou com os entrudos fora de Carnaval, tirar as máscaras do fundamentalismo competitivo, desmascarar a essência rubra dos campionismos, que viver em sociedade não é nenhum vaticano obrigatório, ou cúria romana purgativa, em que se estabelecem e cumprem as regras do campeonato da felicidade, arrumando-as em diferentes divisões, escalões e graus de satisfação (pessoal, local, distrital, regional, nacional e global) da paróquia mundial, mas antes a partilha desinteressada da imagem que cada um da vida tem, conjunto de circunstâncias que a tornam sustentável e realizável, se confrontada entre o que achamos que ela é e devia ser, com o que pode ser independentemente da forma de merecê-la, e autenticamente é, sem o nosso parecer ou desejo de influenciá-la. Algo tão sério que apenas nos é concedido representá-lo por metáforas, pejadas de culpa algumas, outras do sentido de a evitar, entrelaçadas e atadas umas nas outras, formando uma rede elástica de salto, de malha mais ou menos apertada, dos quais um, o último nos será impreterivelmente fatal. Ou brincadeirinha de símio com tempo para momices e entretenimentos, na sua ânsia de macaquear os deuses e aspirar à salvação!

Doc A

OS DEZ MANDAMENTOS

Então Deus falou todas estas palavra, dizendo:

1 – Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egipto, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim.
2 – Não farás de ti imagem de escultura, nem alguma semelhante do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas de baixo da terra. Não te curvarás a elas, nem as servirás: porque eu, o Senhor, teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a maldade dos pais nos filhos, até à terceira e Quarta geração daqueles que me aborrecem. Não fareis outros deuses comigo; deuses de prata ou de ouro não fareis para vós.
3 – Não tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão: porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão.
4 – Honra a teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor, teu Deus te dá.
5 – Não matarás.
6 – Não adulterarás.
7 – Não furtarás.
8 – Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.
9 – Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.
10 – Não subirás, também, por degraus ao meu altar, para que a tua nudez não seja descoberta diante deles.


Doc B

Proponho, portanto, uma nova ética profissional; sobretudo, porém, não apenas para os cientistas da natureza. Proponho fundá-la sobre os seguintes doze princípios com os quais concluo:
1) O nosso saber conjectural objectivo excede sempre largamente aquilo que uma pessoa pode dominar. Não há, portanto autoridades. Isto é válido também para as especialidades.
2) É impossível evitar todos os erros ou mesmo apenas todos os erros evitáveis em si. Os cientistas cometem permanentemente erros. A velha ideia de que se podem evitar os erros e por isso se está obrigado a evitá-los deve ser revista. Ela própria é incorrecta.
3) Claro que continua a ser nossa missão evitar os erros na medida do possível. Mas precisamente para os evitarmos, devemos começar a dar-nos conta de como é difícil evitá-los e de como ninguém é inteiramente bem sucedido nessa tarefa. Incluindo os cientistas criadores que são guiados pela sua intuição: a intuição também pode induzir-nos em erro.
4) Mesmo entre as nossas teorias mais postas à prova se podem esconder erros; e é missão específica do cientista procurar tais erros. A constatação de que uma teoria bem verificada ou um procedimento prático é falível poder ser uma descoberta importante.
5) Devemos, pois, alterar a nossa posição relativamente aos nossos erros. É aqui que deve começar a nossa reforma ética prática. Pois a antiga posição ético-profissional leva-nos a disfarçar os nossos erros, a escondê-los e a esquecê-los o mais depressa possível.
6) A nova lei fundamental é que, para aprendermos a evitar os erros o mais possível, devemos aprender precisamente pelos nossos erros. Disfarçar os erros é, pois, o maior dos pecados intelectuais.
7) Devemos, portanto, manter permanente vigilância sobre os nossos erros. Quando os encontramos, devemos gravá-los na memória e analisá-los de todos os lados para que lhe cheguemos ao fundo.
8) A posição autocrítica e a franqueza constituem, pois, dever.
9) Como devemos aprender pelos nossos erros, devemos também a aprender a aceitar, sim, a aceitar com gratidão, quando outros nos chamam a atenção para os nossos erros. Quando chamamos a atenção dos outros para os seus erros, devemos lembrar-nos que nós próprios cometemos erros idênticos aos deles. E devemos lembrar-nos que os maiores cientistas cometeram erros. Não quero seguramente dizer que os nossos erros sejam geralmente desculpáveis. Não devemos afrouxar a nossa vigilância. Mas humanamente inevitável que continuemos a cometer erros.
10) Devemos compreender que precisamos dos outros para a descoberta e correcção dos erros (e eles de nós), especialmente também daqueles que foram educados com outras ideias noutra atmosfera. Também isto conduz à tolerância.
11) Temos de aprender que a autocrítica é a melhor crítica; que a crítica, porém, é uma necessidade entre outras. É quase tão boa como a autocrítica.
12) A crítica racional deve ser sempre específica: deve apresentar razões específicas, pelas quais, afirmações específicas, hipóteses específicas, parecem ser falsas, ou argumentos específicos parecem sem validade. Ela deve ser derivada da ideia da aproximação à verdade objectiva. Neste sentido deve ser impessoal.

Peço-lhes que considerem as minhas formulações como propostas que devem mostrar que, mesmo no domínio ético, as propostas podem ser discutíveis e susceptíveis de melhoramento.

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